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I. Adentrando o campo: atores e processos de mudança

4. Sadomasoquismo erótico, BDSM e Fetichismo

A emergência da categoria BDSM entre adeptos em âmbito internacional, unificando as diversas siglas que a compõe – bondage e disciplina (B&D ou B/D), dominação e submissão (D&S ou D/s) e sadismo e masoquismo (S&M, SM ou S/M), parece ter uma origem incerta. O Dicionário “The New Partridge” de Gírias e Inglês Não-

23 O Second Life é, segundo Bohrer (2016: 25), “uma plataforma virtual 3D de interações com base na

Convencional”24, publicado em 2006, registra o termo “BDSM; BD/SM” fazendo referência ao ano de 1969 como o momento em que teria ocorrido a unificação das práticas sob os acrônimos mencionados como uma subcultura nos EUA. Segundo outra fonte, a abreviação teria sido provavelmente cunhada no início dos anos 1990, a partir das redes conectadas pela lista de discussão alt.sex.bondage25, sendo que o registro mais antigo do termo ainda possível de ser localizado na internet estaria em um grupo do Google, cujo post dataria de 1991.26

Livros produzidos por ou a partir de praticantes estadunidenses entre os anos 1970 e 1990 apresentam uma série de categorias. “Hard Corps”, livro fartamente ilustrado publicado em 1977 por um fotógrafo e um artista gráfico, situa-se na interconexão entre

SM e leather a partir de localidades como Los Angeles, Chicago e Nova Iorque. As

categorias que aparecem são leather, sadomasochism, sadist, masochist e, mais frequentemente, SM, que é citado como ritual, psicodrama e como algo em torno do qual se articula sociabilidade. Em “Coming To Power” (1981), editado coletivamente pelas integrantes do Samois, uma organização S/M lésbico/feminista estadunidense, as categorias acionadas são: lesbian/feminist S/M, Lesbian S/M e Power & Trust, sendo S/M definido como uma forma de erotismo baseada na troca consensual de poder. “Leatherfolk” é uma coletânea editada em 1991 por Mark Thompson, com o objetivo de compilar textos sobre o underground leather, no contexto de adoecimento e morte de muitos integrantes da comunidade vitimados pela epidemia do HIV/AIDS e ataques sofridos “a partir de dentro e de fora do movimento gay” (THOMPSON, 2004 [1991]: xi; tradução livre). Este livro cita as categorias S/M, radical sex e leather.

“The Second Coming”, coletânea editada em 1996 por Pat (Patrick) Califia e Robin Sweeney, se apresenta como continuação do livro “Coming To Power” e traz as categorias S/M dykes, S/M, Leatherdyke, leather community e leather-S/M-fetish

24The New Partridge Dictionary of Slang and Unconventional English: Volume I, A-I Eric Partridge.

Routledge, 2006: 109.

25 Senhor Verdugo, praticante brasileiro que escreve um dos blogs referência no país, comenta que a lista

de discussão alt.sex.bondage era, inicialmente, um dos únicos espaços na internet que permitiam o debate de questões relacionadas ao kink. Tendo em vista a quantidade de spam que passou a ter, e também para ampliar o escopo de práticas contempladas na discussão, surge em seu lugar o soc.subculture.bondage-

bdsm, lista que manteve ligações com o site brasileiro Desejo Secreto, tendo esse sido o escolhido para a

tradução para o português de sua lista de perguntas mais frequentes – FAQ List. Mais informações sobre essas listas podem ser encontradas na dissertação de Bruno Zilli (2007) e no blog: https://senhorverdugo.com/o-papel-da-alt-sex-bondage.html. Acesso em: 01.Fev.2017.

community. A introdução tematiza dois pontos importantes: as mudanças ocorridas na

comunidade leather de um modo mais amplo e nos grupos de apoio para lésbicas S/M nos quinze anos que separam esta coletânea da publicada anteriormente pelo Samois; a explicação dos motivos pelos quais se passa da categoria SM/lésbico-feminista para leatherdyke.

Segundo as editoras, as mudanças ocorridas na comunidade SM nos EUA nos 15 anos posteriores à publicação de “Coming To Power” foram muitas e tiveram, em grande medida, a ver com a própria publicação do livro, considerado um verdadeiro legado deixado aos outros grupos sadomasoquistas que o sucederam. A obra teria alterado profundamente o discurso sobre o desejo e a pornografia lésbica e desafiado as convenções sobre o que significaria ser mulher, lésbica ou feminista, bem como alcançado lugares que um grupo de suporte local jamais alcançaria. As transformações se refletem na formação de grupos S/M de mulheres, que passaram a existir em quase todas as grandes cidades dos EUA, além da presença das praticantes na internet e convites para debates em universidades, coisas inimagináveis nos anos 1980. A mídia e a indústria do entretenimento de massa passam a abordar mais o S/M, embora de modo muitas vezes estereotipado, associando S/M e crimes sexuais. Tais estereótipos estavam naquele contexto se convertendo em políticas públicas, que se voltavam contra a comunidade em nome de combater a violência (Califia e Sweeney, 1996: XII-XV).

A categoria leatherdyke, presente no subtítulo do livro, ganha explicação em sua introdução, tendo sido uma escolha deliberada das autoras, a fim de marcar uma posição “dentro do mundo de políticas identitárias”, desafiando os limites da categoria

lesbian S/M através das demandas por reconhecimento das mulheres transexuais e

bissexuais, em clara crítica aos valores do feminismo radical da década de 1970.

Embora a noção de comunidade S/M seja a mais acionada ao longo do livro, há na introdução a menção à categoria leather-SM-fetichista, em referência à comunidade mais ampla. Isso talvez fosse um reflexo das discussões que estavam sendo realizadas naquele período, tendo em vista que este livro, bem como os outros acima mencionados, não fazem referência ao acrônimo BDSM. Isso indica que provavelmente a categoria não era massivamente utilizada antes de 1996 e estava restrita a determinados círculos, tendo surgido a partir de diálogos no online – sem desconsiderar que os

praticantes que dialogam por meio das NTIC27 também eram praticantes de comunidades

offline.

Nesse contexto, ocorre a criação do emblema BDSM, a partir da imagem de bases celtas de um triskelion, um redemoinho de três pernas ou braços que emanam de um ponto central. O símbolo, criado e patenteado em 1995 por um artista plástico estadunidense, pressupõe a unificação das práticas agregadas no acrônimo BDSM, sendo cada uma das partes representativa de uma das seguintes siglas: B&D, D&S e S&M (Facchini, 2008: 181, nota 111). Esse sentido atribuído ao emblema fortalece a hipótese de que a adoção do termo BDSM e tudo que ele implica em termos da convivência de uma diversidade de práticas tem uma relação com um momento em que essa produção de comunidade se dava também por meio do online, na segunda metade dos anos 1990.

Figura 3. Emblema da comunidade SM. Extraído do blog:

https://senhorverdugo.com/origem-do-emblema-bdsm.html. Acesso em: 07.Jan.2017. Já o surgimento das categorias SSC (São, Seguro e Consensual) e RACK (Risk

Aware Consensual Kink, do inglês, Perversão Consensual Ciente de Risco) estaria ligado

a uma série de questões fundamentais para o BDSM (Zilli, 2007), como as noções de

consentimento, saúde e segurança, fundamentais na busca por legitimação. O conceito

de SSC teria surgido, segundo Bruno Zilli, “em relação ao reconhecimento do papel da violência na erotização típica do BDSM” (: 69). Ortmann e Sprott (2013) indicam que a articulação do SSC como um valor teria ocorrido pela primeira vez em um documento redigido em 1983 pelo grupo Gay Male S/M Activists, de maneira a evitar que as plays realizadas pelos praticantes de S/M pudessem ser tomadas como criminosas ou reflexo de alguma doença mental (: 36). O consentimento “torna-se o ponto central de fixação do

conceito de BDSM enquanto algo legítimo e não patológico. Ele é complementado pela noção, um pouco difusa, de bem-estar físico e psíquico expressos pelo São e Seguro” (Zilli, 2007: 69). Já o conceito de RACK teria surgido, segundo o autor, de forma a dar maior ênfase aos perigos envolvidos nas práticas BDSM. As controvérsias mais recentes envolvendo as disputas por estes conceitos, seriam, segundo Ortmann e Sprott (2013: 37), especialmente no sentido de sugerir uma substituição de uma categoria pela outra. Segundo uma parcela dos praticantes, o ideal de segurança contido no conceito de SSC seria impossível de ser atingido, sempre existindo um risco inerente às práticas.

O livro Coming To Power (1981), já mencionava as noções de negociação,

segurança emocional, safeword28, consensual exchange of power (troca consensual de

poder), bem como fala sobre AIDS e questões de saúde nas práticas, possuindo inclusive um capítulo intitulado “How To Stay Health and Play Safe”. Isso indicaria que os elementos mobilizados pelas noções de SSC e RACK já estariam presentes em organizações comunitárias dos EUA, inclusive para além da comunidade leather gay na passagem para os anos 1980. A publicação do DSM-III em 1980, embora tenha definido que o desvio sexual das normas sociais não constituiria em si um transtorno, renomeou- as como “parafilias” e alocou-as na categoria “Transtornos psicossexuais” (Weismantel, 2014: 29). No caso do sadismo e do masoquismo, entretanto, qualquer encenação de fantasia constituiria uma doença mental. Sendo assim, podemos pensar que as primeiras formulações do SSC, em 1983 provavelmente ocorreram como resposta a essas mudanças realizadas no DSM-III.

Relatos de pessoas que pesquisaram junto a praticantes brasileiros no começo dos anos 2000 indicam que provavelmente a utilização do acrônimo BDSM na

comunidade nacional tenha se dado na passagem dos anos 1990 para os 2000. Jorge Leite

Júnior, que pesquisou junto a grupos que se reuniam em São Paulo no final dos anos 1990, entre eles o SoMos, utiliza a categoria S&M mas relata: “É sob esta sigla, BDSM, que a aqui chamada ‘cultura S&M’ têm se apresentado e referido a si mesma nos últimos anos” (Leite Júnior, 2000: 19, nota 46). Tudo indica que se tratava de um processo de transição no uso de categorias para se referir à comunidade. Regina Facchini, que manteve contato

28 Safeword é traduzido do inglês geralmente por “palavra de segurança”. Leite Jr. (2000: 27), que faz uso

do termo em português em sua monografia, afirma que “quando dito pelo masoquista (ou eventualmente pelo sádico) é sinal de que algo está errado e a cena deve parar. Esta palavra pode ser usada tanto por se alcançar um limite físico ou psíquico como por um acontecimento inesperado indesejável. [...]A palavra de segurança dá o limite concreto da cena”.

com praticantes desde o início dos anos 2000 e realizou observação etnográfica entre 2004 e 2014 na cena paulista, relata em tese defendida em 2008:

A sigla BDSM refere-se a “bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo”, um conjunto de práticas de conteúdo erótico. A sigla é também definida por oposição ao termo baunilha (usado para indicar o sexo convencional ou pessoas que não estão envolvidas em BDSM). Segundo os

sites nacionais de internet, que servem de referência à rede de pessoas que

conheci em campo, BDSM implicaria, necessariamente, a consensualidade (que integra a tríade São, Seguro e Consensual – SSC -, característica fundamental do que se chama de “BDSM erótico” por oposição a formulações de cunho patologizante) e a distinção entre a play (jogo/cena) e a realidade. Algumas das pessoas com quem conversei em campo fazem uma distinção entre SM e BDSM, atribuindo à primeira categoria um caráter mais “tradicional” por oposição à diversificação e mesmo uma certa “mistura excessiva” da segunda, que compreende um rol maior de práticas, cujos adeptos nem sempre seguem os padrões da liturgia e rituais prezados por muitos praticantes do SM. Considero, no entanto, que esse campo é muito mais complexo e que as diferentes concepções acerca de temas como liturgia,

dominação profissional, relação entre sexo e BDSM e distinções entre consensualidade e risco compartilhado não estão limitadas a determinadas

práticas agregadas (Facchini, 2008: 175).

O trecho reforça a hipótese de que a passagem dos anos 1990 para os 2000 corresponde a um momento de mudança nos modos de classificação da comunidade. Se na pesquisa de Jorge Leite Júnior (2000), na virada para os anos 2000, o acrônimo havia sido recentemente adotado, na tese de Facchini, com material produzido em meados dos anos 2000 a partir de espaços de encontro presenciais, seu uso parecia majoritário, embora pessoas mais velhas na comunidade tivessem reservas com relação às mudanças e/ou certa “diluição” dos cuidados que poderiam estar implicadas na incorporação de mais práticas ao modo como a comunidade se autorrepresentava.

Embora a categoria sadomasoquista continuasse a ser usada, em meados dessa década, praticantes ligados ao site Desejo Secreto utilizavam BDSM, assim como a categoria BDSMista, para se referir aos adeptos. No Clube Dominna falava-se em BDSM, mas também eventualmente em SM: apesar de ser responsável pela organização das comemorações anuais pelo Dia Internacional do BDSM desde 2004, Mistress Bela, que também moderava uma lista chamada BDSM SP, num diálogo com Glauco Mattoso no evento de 2010, relatava que faz questão de usar a palavra sadomasoquismo sempre que possível – “porque o pessoal fala BDSM, mas fala escondidinho. Não, tem que falar:

‘Sou sadomasoquista’ – e que pessoalmente desconhecia “o preconceito da sociedade de que todo mundo fala”.

O primeiro livro de Wilma Azevedo, “A Vênus de Cetim” (1986) apresenta a noção do Sadomasoquismo Erótico, que seria aquele realizado dentro dos limites da consensualidade e segurança, melhor discutida no capítulo III desta dissertação. Em 1998, Wilma Azevedo ainda se referia ao SME (Sado-Masoquismo-Erótico) em seu livro “Sadomasoquismo Sem Medo”, por oposição ao SMM (Sado-Masoquismo-Maldoso) e ao SMP (Sado-Masoquismo-Psicopático), trazendo uma lista de definições elaborada a partir dos termos que cunhou ao longo de suas obras (Anexo 1). A autora continua a fazer a distinção entre sadomasoquismo erótico e patológico em suas entrevistas mais recentes veiculadas no meio televisivo.

Essa distinção se mantém presente de alguma forma em toda a produção de classificações mobilizada no meio, embora não tenha observado um uso corrente dos termos cunhados por Wilma por parte dos praticantes com os quais tive contato, nem nas publicações de alguns grupos fetichistas da rede social Facebook, cujas publicações acompanhei ao longo desta pesquisa. Contudo, como indica Zilli (2007), toda uma densa rede de blogs e sites sobre o tema podia ser visto no início dos anos 2000, boa parte deles trazendo material produzido em outros países, especialmente nos EUA.

Mais recentemente, as categorias fetichista e kink vêm sendo mobilizadas nessa mesma direção. Se Glauco Mattoso já falava bastante em fetiche no livro “Manual do Podólatra Amador”, em diálogo crítico com os que chamou de maníacos das

taxonomias patológicas, o termo reaparece no meio a partir das salas de bate-papo do

portal Terra e de festas como a Fetiche do Rio de Janeiro29 e a Luxúria, festa fetichista realizada na cidade de São Paulo.

A categoria kink se refere a sexualidades não-convencionais, incluindo desde as práticas mais tradicionais do BDSM até mesmo aquelas onde não ocorre intercâmbio de poder, aparecendo em oposição ao termo straight. Seu uso parece se difundir no meio BDSM paulistano a partir da adesão de praticantes a uma rede social internacional de

fetichistas, o FetLife, desde o final dos anos 2000. Convém observar que a categoria kink

passou, nos últimos anos, a ser incorporada à sigla BDSM na Espanha (ainda que não de maneira homogênea), resultando na categoria BDSMK (às vezes grafado como BDSMk).

Em 2015 surge em Madrid uma associação denominada “BDSMK”30 que, a partir de um manifesto, inaugura suas atividades, que consistem em encontros, palestras e atividades de conscientização da população da cidade acerca de suas práticas.

Até onde pude observar, o primeiro registro online da categoria data de 2009 na página da associação sadomasoquista espanhola, “Golfxs con princípios”, num post de um praticante que afirma que, da mesma maneira que se adicionou a letra Q (de queer) na sigla LGBT:

[Seria uma] boa ideia fazer o mesmo com BDSM: também usar às vezes essa sigla, BDSMK, para falar de festas, reuniões ou grupos mais amplos que os que tradicionalmente associamos ao BDSM. Grupos que incluam também (...) os que, sem usar nenhum papel hierárquico em suas relações, gostam de muitas práticas mais além das típicas e que raramente são vistas com bons olhos pela maioria. 31

A diversidade classificatória na comunidade é muito grande e, com a popularização da internet e a diversificação dos espaços de sociabilidade online e offline, tem se modificado com uma velocidade difícil de ser acompanhada. Em meio a um sistema classificatório tão complexo, Facchini (2008) afirma que, por vezes, é difícil inclusive nomear o objeto de uma pesquisa a fim de poder dizer algo a seu respeito. Ao finalizar um período de pesquisa junto a grupos de praticantes, a pesquisadora optou pelo uso da categoria BDSM, ou de sua variante na ideia de BDSM erótico, para falar das redes de praticantes que conhecera a partir das atividades do SoMos, do Dominna e de listas de discussão, sites e redes sociais na internet.

Nesta dissertação faço uso de três destas categorias, sendo a noção de

sadomasoquismo erótico utilizada em seu sentido êmico, e BDSM/SM como categorias

que acabaram sendo popularizadas e, ainda que também êmicas, são de uso mais corrente fora do meio.