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É fato conhecido pelos integrantes das torcidas que os bailes funks foram proibidos em Fortaleza ainda na década de noventa, em decorrência do acirramento das disputas territoriais entre os jovens. Essas disputas, lidas pelas autoridades e meios de comunicação a partir das genéricas categorizações de violência e vandalismo, distribuíam-se entre as conhecidas brigas no salão, furtos nas imediações dos bairros e casos de morte.

A interdição dos bailes funks resultou numa remodelação significativa das torcidas organizadas, principalmente por dois motivos: primeiro, a interdição dos bailes não implicou a dissolução das significações organizadoras das sociabilidades que lhes eram características; segundo, com o fim dos bailes, todo aquele contingente juvenil que os freqüentava migrou para as torcidas organizadas, com a mesma demanda por poder e enfrentamento. E eles migraram organizados, levando consigo o seu espírito de exército. A partir de então, não era mais o baile o princípio organizador destas alas, ou seja, não era mais a divisão entre os lados “lados” A, B e C, que determinava a geopolítica dos bairros, mas sim o critério do pertencimento a uma determinada torcida.

Essa reorganização articulou, paralelamente, uma reconfiguração no mapa dos afetos e das sociabilidades entre os moradores dos bairros. Anteriormente, havia a oposição entre moradores de bairros diferentes e as brigas aconteciam através da invasão do território alheio, melhor dizendo, do bairro do outro, ou então dos clubes onde tinham lugar os bailes funks. Com a transposição das redes de identificações para as torcidas, as oposições e os conflitos passaram a dividir grupos da juventude dentro de um mesmo bairro, a exemplo da divisão entre o Rodolfo Cearamor e o Rodolfo TUF (Rodolfo Teófilo).

E se as torcidas passaram a atrair essa juventude egressa dos bailes, isto não foi por acaso, pois já faziam parte da cultura do funk. Elas foram então tomadas pelos jovens como uma possibilidade de continuidade da sociabilidade do funk, pois ofereciam a regularidade e a continuidade dos encontros entre esses jovens e possibilitavam, ainda, e isso me parece essencial, o efeito de arena, ou seja, o tempo- espaço da experiência pura da competição, visando garantir, através do conflito, status para o bairro e, em decorrência, dignidade social e pessoal para seus moradores e combatentes.

Estádio Castelão. Cearamor Mondubim

Desta forma, acho conveniente categorizar como sociabilidade de conflito essa forma específica de sociabilidade, comum aos jovens participantes das torcidas organizadas, que investem nas rivalidades territoriais. A sociabilidade de conflito seria a marcação mais importante da identificação dos torcedores organizados, ou seja, a disposição e a necessidade do conflito, que remete a uma normatividade específica, com uma simbologia própria e um campo específico de demandas e expectativas em relação à vida. Esta formação cultural peculiar foi forjada ao longo dos percursos juvenis pelos bairros pobres de Fortaleza, e apresenta-se como característica incontornável do ”torcedor de bairro”, ou seja, dos que não abrem mão do conflito e da rivalidade. Eles seriam os que mais intensamente investiriam nesta forma de sociabilidade, como indica um funcionário da Cearamor: “com o pessoal de bairro, não tem como conversar com eles”.

Como eu já havia afirmado, a interdição do baile funk não ocasionou a dissolução imediata das alas, que permaneceram até o começo desta década como uma marcação fundamental da torcida. Todavia, a sua extinção se afasta dos dias atuais em quase uma década, e eu mesma conversei com dezenas de integrantes de torcidas que sequer chegaram a participar de um baile, pois na época eram crianças pequenas demais para fazê-lo. Então, como explicar a permanência da estética do funk na torcida? Estética que aciona uma formação cultural peculiar, alicerçada na simbologia, na normatividade, nos valores e nos códigos comuns à ambiência do baile.

Analisando as montagens de cerca de cinqüenta alas da Cearamor, é possível traçar uma resposta para tais questões22. Essas montagens, pequenas músicas contando apenas com algumas frases, quando muito dez ou doze, foram construídas para anunciar o bairro e, obviamente, os seus moradores. Desta forma, elas precisavam de fato ser curtas e, ainda assim, contar com alguns elementos estruturantes:

1. O nome da ala, que ocasionalmente trazia em seguida o nome do bairro ou da aliança de bairros que a constituíam;

2. Uma definição de si mesma, ou seja, da ala, e dos seus integrantes; 3. Anunciava a vinculação com a Cearamor, principalmente quando a participação nas torcidas se tornou o canal articulador fundamental da sociabilidade de conflito dos jovens. Ocasionalmente trazia uma definição ou significação para a Torcida Organizada;

4. Descrevia a sua capacidade de intervenção junto ao inimigo e as conseqüências para o outro desta ação;

5. Por fim, havia sempre uma necessária definição degradante do adversário, ou melhor, da torcida adversária.

Cito para exemplificar e permitir a visualização da estrutura da montagem:

Ala Ideal, o terror do mano a mano, Espanta Tuf gay,

Deixa os pilantra chorando Os moleque são malvado, Não dispensa ninguém não. Acaba com tricolor Se tocá a explosão

Oba, oba, Tuf gay vai passar mal, Matador de cú vermelho,

Cearamor Ala Ideal.

Em sua imensa maioria, as montagens catalogadas apresentam uma grande semelhança, quando não há a repetição dos significados, definições a práticas. O conjunto circular de significações que se estende por toda a malha urbana de Fortaleza, e mesmo por municípios contíguos à cidade, pode ser entendido como uma rede que alinhava a experiência social de um número significativo de jovens numa mesma trama simbólica.

De fato, são muitos elementos que tornam a montagem um texto denso, mesmo que extremante curto. O mais óbvio, e que por ser tão claro às vezes escapa à percepção do pesquisador, consiste na necessidade de exaltação do bairro, o que pode parecer paradoxal, posto que estes bairros caracterizam-se pela escassez de equipamentos urbanos e alojam pessoas cuja existência é perpassada pela carência material. Neste ponto é necessário um cuidado na categorização desses bairros. Observando a localização dos bairros que compõem as torcidas no mapa da cidade, pode-se perceber que muitos se enquadram na definição de Wacquant:

Comunidades estigmatizadas, situadas na base do sistema hierárquico de regiões que compõem uma metrópole, nas quais os párias urbanos residem e onde os problemas sociais se congregam e infeccionam, atraindo a atenção desigual e desmedidamente negativa da mídia, dos políticos e dos dirigentes do Estado. São locais conhecidos, tanto para forasteiros como para os mais íntimos, como ‘regiões-problema’, ‘áreas-proibidas’, circuito ‘selvagem’ da cidade, territórios de privação e abandono a serem evitados e temidos, porque têm ou se crê amplamente que tenham excesso de crime, de violência, de vício e de desintegração social. (WACQUANT, 2005: 7)

Mesmo em bairros que não podem ser definidos como favelas, como, por exemplo, a Parquelândia, o Centro, ou mesmo o Conjunto Ceará, é forçoso afirmar que, mesmo nestes bairros, existem divisões internas, a partir das quais é possível perceber uma parte da população que, mesmo experimentando a carência e a privação material, educacional etc, ainda garante, através de arranjos familiares, a própria subsistência, escapando do padrão inferior dos que vivem em favelas dentro destes bairros já empobrecidos. A exemplo, o bairro Bom Jardim, cujos moradores fazem referência constante à “favela de lá de dentro”, descrita como um lugar perigoso, ocupado por vagabundos, ladrões e traficantes, uma espécie de enclave de degradação e perigo social, uma chaga em meio ao bairro já debilitado pela pobreza e pelo abandono.

Conversando com os torcedores organizados, é possível perceber com clareza que mesmo aqueles provenientes de bairros mistos ocupam lá os lugares menos favorecidos. Esta leitura se faz através da observação de sua fala, de sua escrita, quando há, das respostas às perguntas simples que, muitas vezes, requerem uma segunda e terceira explicação. Não falo aqui de uma fala carregada de gírias e criações juvenis de linguagem, ou da escrita cifrada dos sites de conversação, falo de uma inabilidade, da carência de termos, da incompreensão, da dificuldade de articular uma resposta mesmo quando esta se refere a assuntos e temas que lhes são familiares.

O torcedor organizado se coloca, portanto, como aquele que sofre, em gradações mais ou menos intensas, os efeitos drásticos da “violência estrutural”, ou “violência vinda de cima”, descrita por Wacquant, como o motor de dualização da metrópole, ao passo que “ameaça não apenas marginalizar os pobres, mas condená-los à redundância social e econômica direta”. Essa marginalização, como espero ter demonstrado, se dá de duas formas. A primeira, e mais evidente, através da aglutinação dos segmentos empobrecidos nos bairros periféricos da cidade, ou seja, na sua margem, no seu limite. A segunda se constitui na proliferação de fronteiras dentro de bairros mistos ou pobres, além das quais residem os marginalizados ao extremo, os que vivem na margem além da margem. Ainda segundo Wacquant, a violência “vinda de cima” contaria com três componentes principais:

(1) desemprego em massa, persistente e crônico, representando para segmentos inteiros da classe trabalhadora a desproletarização que traz em seu rastro aguda privação material; (2) exílio em bairros decadentes, onde escasseiam os recursos públicos e privados à medida que a competição por eles aumenta, devido à imigração; (3) crescente estigmatização na vida cotidiana e no discurso público, tudo isso ainda mais terrível por ocorrer em meio a uma escalada geral de desigualdade. (WACQUANT, 2005: 29)

Este é o caso do Barroso II. Este bairro, melhor dizendo, o grupo composto por moradores jovens de lá, é considerado, dentro da torcida, sob o peso de forte estigma pessoal, social e espacial. Eles são definidos pela geopolítica urbana juvenil como os que não estão nem aí, os que não têm nada a perder, os perigosos, os que brigam e roubam, aqueles com quem o diálogo é quase impossível. Justamente por isso, me interessei por este bairro em particular, e foi quase com devoção que entrevistei seus torcedores organizados. Diante da importância de asseverar a necessidade de mergulhar na experiência sócio-cultural dos grupos estigmatizados, em busca da apreensão dos sentidos que eles conferem às suas práticas, possíveis apenas no contexto particular de suas existências, recorro mais uma vez a Wacquant:

Devido à aura de perigo e pavor que envolve seus habitantes e ao descaso que sofrem, essa mistura variada de minorias insultadas, de famílias de trabalhadores de baixa renda e de imigrantes não-legalizados é tipicamente retratada à distância em tons monocromáticos, e sua vida social parece a mesma em todos os lugares: exótica improdutiva e brutal. [...] A marginalidade urbana não é a mesma em todos os lugares e há pouco exotismo sobre ela. Seus mecanismos genéricos e suas formas específicas tornam-se inteligíveis se estiverem ligados à matriz histórica da classe, do

Estado e do sistema hierárquico característico de cada sociedade. (Wacquant, 2005: 7 – 8)

Atenta à advertência do autor, antes de continuarmos, é preciso tentar esclarecer um nó de significados entre as noções de ala, bairro, comando e gangue.