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SALINAS FORTES, 1976: 106.

No documento Rosseau: democracia e representação (páginas 39-45)

CAPÍTULO II: VONTADE GERAL E SOBERANIA POPULAR

II.1. Vontade Geral, Vontade Particular e Vontade de Todos

63 SALINAS FORTES, 1976: 106.

humana e ao predomínio definitivo do amor próprio. Esta evolução, embora natural, não se faz de acordo com os planos da Providência. Ao lado desta, há uma outra história possível, que para efetivar-se tem necessidade da colaboração do Legislador. Esta ação leva, pois, a adotar o caminho oposto a que nos traça o segundo Discurso.64

O caminho oposto ao do segundo Discurso seria a saída do estado de natureza seguindo diretamente para a sociedade descrita no Do contrato, sem passar pelo estágio de corrupção descrito no segundo Discurso. Neste estágio de corrupção também há uma transformação da natureza humana, que Salinas descreve como sendo uma “má alteração”. Esta se contrapõe à desnaturação, e seria a boa alteração.

O indivíduo, nas sociedades em que o pacto não se cumpre, torna-se, cada vez mais, o centro do universo, preferindo a tudo o seu interesse particular. A boa

desnaturação, ao contrario, visa à constituição de um indivíduo que busque acima de

tudo o interesse comum, transformando o indivíduo independente em mera parte de um todo mais perfeito. O paradoxo desta desnaturação é que, ao mesmo tempo em que se faz contra a natureza _ já que anula o indivíduo independente _ ela se apóia na natureza, já que nada mais faz do que propiciar o desenvolvimento do amor de si, criando as condições para que ele se converta no amor da ordem ou amor da pátria pelo bloqueio das manifestações do amor próprio.65

Rousseau nos avisa, no entanto, que a transformação tem seus limites. Isto quer dizer que em uma comunidade demasiado corrompida ou jovem demais o processo acima descrito não é possível. Uma comunidade muito jovem, isto é, recém formada, ainda não está preparada para formar um único corpo e aceitar a vontade geral como sendo a sua própria vontade. Por outro lado, a corrupção da sociedade pode chegar a um nível praticamente irreversível, em que os indivíduos não podem ser reeducados por legislador algum e, portanto, não têm condições de alcançar o verdadeiro enunciado da vontade geral. Isso porque, não havendo de fato uma sociedade legítima, mas apenas um agregado de indivíduos agindo cada um de acordo com interesses próprios, também não haveria uma vontade geral, haveria apenas um agregado de vontades particulares. Quando a vontade

64 Idem: 106. 65 Idem: 106.

particular se conforma à vontade geral, encontramos a virtude, que colabora no estabelecimento de um Estado republicano, a ser descrito no próximo capítulo.

Vimos então que em Rousseau existem vários níveis de vontade: a vontade geral, que se trata da vontade do corpo formado por toda a comunidade política (por todos os cidadãos); a vontade particular de um indivíduo ou de um grupo formado apenas por uma pequena parcela dos indivíduos da sociedade; e a vontade de todos, que é a soma de todas as vontades particulares e que não deve ser confundida com a vontade geral. A vontade geral, conforme dito, somente pode existir e ser estabelecida por uma comunidade política legítima, dentro de uma República.

Correspondendo ao enunciado da vontade geral e, conseqüentemente, pertencendo ao interesse público, as leis devem estar acima dos interesses particulares. Quando o contrário acontece, os abusos resultantes culminam na sociedade corrompida da qual Rousseau deseja se afastar. No Discurso sobre a economia política, ele cita essa questão:

Logo, os abusos são inevitáveis e as suas conseqüências funestas em uma sociedade em que o interesse público e as leis não têm nenhuma força natural e são continuamente assediadas pelo interesse pessoal e pelas paixões do príncipe e dos membros dessa sociedade.66

Governado pela vontade geral, que visa o bem comum, o Estado pode ser considerado republicano.

CAPÍTULO III: DA DEMOCRACIA

A república idealizada por Rousseau tem aspectos e condições que precisam ser conhecidos. É a partir dessas condições ideais que podemos encontrar, dentro de uma república, as possíveis formas de governo. Já foi dito que um Estado legítimo deve ser republicano. Tal legitimidade foi buscada por contratualistas como Hobbes e Locke, cada um a seu modo. O que possibilita a legitimidade do Estado é, segundo Rousseau, ser o interesse público a meta do governo. Vemos isso em seu conceito de república:

Chamo pois de república todo o Estado regido por leis, sob qualquer forma de administração que possa conhecer, pois só nesse caso governa o interesse público, e a coisa pública passa a ser qualquer coisa. Todo o governo legítimo é republicano.67

Uma república é um Estado governado pelo povo, unicamente no interesse deste. Daí a origem do termo ‘república’ (= res publica: a coisa pública). Mesmo que não haja uma democracia, ou seja, mesmo que o próprio povo não esteja no governo, as leis somente se tornam tais quando ratificadas pelo povo, no interesse deste. Somente dessa forma o governo do Estado encontra sua legitimidade, independentemente da forma de administração que nele for adotada.

Numa república, a soberania não pode ser representada, pertencendo unicamente ao povo o poder de decidir o que pode ou não ser estabelecido como lei. Quando a república se apresenta sob a forma de uma democracia, as atividades executivas também são exercidas diretamente pelos cidadãos. Mas em hipótese alguma, para Rousseau, as atividades legislativas podem ser exercidas por representantes. Mesmo que no Estado exista alguém encarregado de escrever as leis, cabe somente ao povo acatar a elas através de voto.

Em Rousseau é explícita a separação entre o poder legislativo e o poder executivo. Tal separação não se dá somente no que diz respeito à atividade exercida: há também uma diferença em termos de sujeição. Isto porque aquele que executa as leis é um mero

funcionário de quem as ratifica. Estamos falando do governo, no primeiro caso, e do

soberano, no segundo. Em um Estado republicano, a soberania pertence ao povo e não pode ser alienada. Em outras palavras, o poder legislativo, em um Estado legítimo, somente pode ser exercido pelo povo, único detentor do poder soberano. A lei ratificada pelo soberano é a expressão da vontade geral sobre a qual já se falou. Levando-se em conta que a vontade geral não pode ser transferida, ou representada, o mesmo se diz do poder legislativo. Ninguém pode expressar de maneira cem por cento correta uma vontade que não lhe pertence. Quando o poder legislativo é corretamente e diretamente exercido pelo povo, o Estado é republicano, logo, legítimo. Além de mero funcionário do soberano, Rousseau apresenta o governo civil na dependência do soberano para realizar sua tarefa. Tal idéia aparece no Discurso sobre a economia política através de uma comparação entre a casa paterna e o governo civil:

(...) e existirá sempre uma extrema diferença entre o governo da casa, onde o pai tudo pode ver com os próprios olhos, e o governo civil, cujo chefe nada pode ver a não ser através dos olhos dos outros.68

A autoridade soberana aparece, nessa mesma obra, como sendo distinta do que Rousseau chama de governo. O direito legislativo do soberano aparece como um dos pontos de distinção, visto que o governo não o possui.69 É muito importante não confundir em Rousseau o governante com o chefe de uma nação, dotado de poderes ilimitados sobre ela. Lembremos que o único contrato legítimo existente, segundo o genebrino, é o do pacto social descrito no Do Contrato. Submeter-se a um chefe está longe de ser um contrato. O pensador deixa isso bem claro no capítulo XVI do livro III do Do Contrato e é aí que se encontra a crítica contratualista de Rousseau. Se tivermos em conta o que diz essa parte da obra, podemos ver que a crítica enfoca especificamente esse ponto: não há pacto legítimo de submissão de todo um povo a uma só pessoa.

Já vimos que Hobbes apresentava um pacto entre os indivíduos que envolvia a submissão de todos ao seu soberano. Este, enfatizamos, seria um homem ou uma assembléia de homens. O pacto hobbesiano procurava, dessa forma, defender o absolutismo. Rousseau difere dele ao apresentar o contrato como um pacto que se dá entre cada indivíduo e o todo formado por eles. Locke, por sua vez, traz, além do contrato entre

68 ROUSSEAU, sd: 149. 69 Idem: 152.

os indivíduos, a confiança dos poderes executivo, legislativo e judiciário ao governo. Segundo ele, ambos poderes têm o mesmo peso, e são transferidos ao governo, que também é uma pessoa (ou grupo de pessoas) diferente do povo. Rousseau novamente mostra seu diferencial ao defender a supremacia do poder legislativo, que pertence unicamente ao povo, sem a possibilidade de transferência ou representação.

Soberania e poder legislativo fundem-se na figura do povo contratante. Sendo o pacto firmado entre cada indivíduo e o conjunto destes, cabe unicamente ao povo o poder soberano, que se trata da autoridade máxima e inquestionável. Cabe necessariamente ao povo ratificar suas leis, visto serem estas a expressão da vontade geral. O governo, que se ocupa da execução daquilo que já está prescrito pela lei, é considerado mero funcionário do soberano por ser encarregado de uma função secundária. Exprimir as vontades do corpo cabe somente a este: no caso, o povo. O ato de executar aquilo que pede uma vontade já expressa é uma função que pode ser delegada a outro.

Este tipo de organização do Estado, em que impera a vontade geral e onde ela é expressa em leis pelo povo, sem mediações, é o modelo republicano do genebrino. Esta definição de república, contudo, tende a ser confundida com a de democracia. É importante não confundir as definições com as quais Rousseau trabalha. Uma das interpretações mais comuns de democracia que temos atualmente se iguala à definição de república utilizada por Rousseau. Nesse sentido, quando atribuímos, hoje, a legitimidade de um Estado à forma democrática de governo, na verdade estamos nos referindo aproximadamente àquilo que o genebrino entendia por república. Falamos então de um Estado em que existe a participação popular nas decisões mais relevantes, geralmente no que diz respeito à eleição dos governantes. Para o genebrino, contudo, o Estado que delega o governo a uma pessoa ou grupo, deixa de ser uma democracia. Ao mesmo tempo, continua sendo uma república na medida em que o legislativo permanece inalienável e intransferível. A forma em que as decisões, com base na vontade geral, são executadas, depende do tamanho e demais estruturas do Estado.

No documento Rosseau: democracia e representação (páginas 39-45)

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