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Capítulo 3 – Salvação e autognose pátria

7. Salvação e autognose pátria

Temos de admitir que este capítulo, ao menos aparentemente, foge um pouco do nosso propósito inicial, que é propor uma leitura de Directa como uma tentativa de se interpretar o fenômeno Portugal. Nos primeiros dois capítulos, pretendemos mostrar de que forma essa interpretação é feita, e esperamos ter atingido nosso objetivo. Mas o que dizer deste capítulo, centrado, até o momento, numa análise do protagonista Aníbal a partir da doutrina marxista e do pensamento do padre Teilhard de Chardin? Teríamos, agora no final, nos afastado demais do nosso propósito inicial?

Se o leitor teve paciência até aqui, com certeza terá um bocadinho mais para ler esta justificativa, que tem ares de conclusão.

Em 1978, numa entrevista já referida por nós na introdução, Nuno Bragança afirma o seguinte: “Não sei de salvação que não brote do conhecimento socrático, o de nós mesmos” (1978c: 42).

Ao dizer isso, Nuno Bragança quer chamar a atenção para um tipo de conhecimento ao qual dá o nome de “ver-ouvir primordial”, cujo segredo ninguém

108 conhece melhor do que as crianças. Mas à medida que somos socializados na “mentira do ‘habitual’”, vamos nos esquecendo desse segredo. Cita, então, Rimbaud e a sua poética do “desregramento dos sentidos”. Também diz que o cinema seria uma forma de reaprendizagem desse conhecimento primordial, que, não obstante a hipertrofia do mental, permanece oculto dentro de todos nós.

É verdade que o conhecimento de que falamos nesta dissertação é de outra natureza. Não se trata de uma redescoberta do “poder inteligente dos sentidos”, como diz Nuno Bragança nessa entrevista, mas de um tentativa de entender o que é Portugal, com todo o peso de sua história, e, consequentemente, o que é ser português. Portanto, estamos a falar de dois tipos distintos de “conhecimento de nós mesmos”, embora ambos pressuponham o exercício de trazer à luz elementos constitutivos do nosso ser que se encontram em estado de latência.

Apesar disso, acreditamos que os termos autognose e salvação, tal como aparecem no romance Directa, guardam uma relação profunda entre si.

Ora, não existe ação política sem conhecimento. Este princípio, aliás, está na base da doutrina dialética. Vejamos o que diz Henri Lefebvre a esse respeito:

A análise das formações económico-sociais do passado constitui já uma análise do devir histórico. É ainda desta análise que a dialéctica marxista extrai as previsões, as palavras de ordem, as apreciações.

Para a dialéctica, o possível não se desliga do realizado [...]. O devir engloba estes vários aspectos; o possível é apenas uma tendência profunda do real.

Por conseguinte, a política marxista é uma política fundada no conhecimento. As directivas de acção baseiam-se numa análise das situações (1975: 119, 120, itálico nosso).

Assim, parece-nos claro (como, aliás, já dissemos anteriormente) que o que motiva o militante-intérprete Aníbal no seu esforço de compreender o passado e o presente português é justamente o desejo de construir um Portugal-outro. Afinal, é impossível modificar o país sem conhecê-lo a fundo.

Mas ainda estamos no domínio da sociologia científica e suas implicações políticas. Para falar de salvação, é preciso adentrar o domínio do sagrado. E há quem identifique certa “tonalidade profética” no marxismo, com a sua esperança no advento do Messias e a promessa de uma sociedade terrena fraterna, onde todos os homens encontrariam a redenção (D’Arcy, 1964: 38). Será a “visão de uma sociedade sem

109 classes” a transplantação para o campo da política “das esperanças dos judeus num reino messiânico”? (D’Arcy, 1964: 9).

Diz George Steiner que foi dos “Profetas que a imaginação ocidental absorveu a esperança de que há esperança” (2006: 31). Doutrinas políticas como o marxismo teriam bebido dessa fonte – o livro de todos os outros livros: a Bíblia Sagrada81:

A viagem para fora do Egipto, através do deserto e a caminho de uma terra de ‘leite e mel’ ainda por governar, é tão paradigmática para os Pilgrim Fathers ao dirigirem-se para o Novo Mundo, como o é para o programa marxista de emancipação proletária. [...] A nossa história, nos casos em que existe esperança, encontra-se ainda naquela árdua travessia para Canaã” (Steiner, 2006: 44).

Mais adiante Steiner afirma que, na “sua essência, o marxismo é o Judaísmo impaciente”, já que o “Messias tem demorado demasiado tempo para chegar” (2006: 90). E como a espera messiânica arrasta-se ao longo de séculos e mais séculos, o “messianismo socialista e marxista” antecipa-se, objetivando a implantação do reino da justiça pelas mãos dos próprios homens, aqui e agora. Steiner diz que há pouca coisa na “doutrina marxista-leninista” que não seja referido em Amós, o mais antigo dos livros proféticos, sobretudo no que diz respeito à maldição lançada por Deus sobre os ricos e sua condenação da propriedade.

Mas, para o “cristão progressista” Aníbal, o Messias já apareceu. Jesus cumpriu a profecia de Isaías. Deve-se agora preparar a Sua segunda vinda. E para que isso ocorra é necessário ser vigilante e não ter medo; afinal, o Salvador disse: “Não temais” (Bragança, 1968: 144). É preciso, segundo Chardin, ser “co-operário” de Deus, pois a Parusia só virá, e com ela a salvação e a plenitude da presença de Deus, se a Terra estiver apta social, cultural e politicamente. Portanto, cumpre aos homens transformá-la, e o começo de tudo, da perspectiva do militante português Aníbal, é transformar Portugal, derrotando o fascismo e construindo um país-outro, onde haja uma igual divisão das riquezas e a tão esperada justiça social. Um Portugal onde se realizem os princípios cristãos e que, por isso, esteja mais próximo da comunhão do Reino de Deus.

81 Pode-se dizer que a Bíblia ocupa, para George Steiner, o centro do cânone literário ocidental: “Todos os

nossos outros livros, por muito diferentes que sejam no tema ou no método, se relacionam, ainda que indirectamente, com este livro dos livros. [...] Todos os outros livros [...] são como centelhas, muitas vezes, obviamente, distantes, lançadas pelo fogo incessante de um fogo central. [...] Nenhum outro livro é como ela; todos os outros livros são habitados pelo murmúrio dessa fonte distante [...]” (2006: 9, 10).

110 Evidente que tal tarefa não é só portuguesa. Salvar o mundo requer uma extraordinária conjugação de esforços, para além das fronteiras nacionais e continentais. A “trepadela” na montanha exige a união de todas as sociedades humanas. A parte que cabe a Aníbal e seus companheiros nessa grandiosa tarefa é transformar o pequeno retângulo, a finisterra situada entre a Espanha e o imenso Atlântico, por onde os portugueses deram início à unificação de todo o mundo no século XV.

Para fazê-lo, porém, é necessário, antes de tudo, conhecê-lo. A salvação pátria depende de sua gnose.

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Conclusão

“Senhor, falta cumprir-se Portugal!”

Que jaz no abismo sob o mar que se ergue? Nós, Portugal, o poder ser.

Que inquietação do fundo nos soergue? O desejar poder querer.

Fernando Pessoa – “Tormenta”

Tudo é incerto e derradeiro.

Tudo é disperso, nada é inteiro. Ó Portugal, hoje és nevoeiro... É a hora!

Fernando Pessoa – “Nevoeiro”

No capítulo anterior tentamos mostrar que o futuro em Directa é algo que se pressente com um misto de esperança e medo. Daí o uso da expressão “optimismo trágico”, tomada de empréstimo de Claude Tresmontant em seu estudo sobre a obra de Teilhard de Chardin.

Vimos de que forma a personagem Aníbal, enquanto praticante da virtude ou asceta, trabalha incessantemente pela melhoria do mundo. Ele encara a luta política como um “imperativo ético” (Loureiro, 2015: 130), já que de seu esforço depende o prosseguimento da marcha evolutiva, em cujo termo, segundo a doutrina escatológica, os seres humanos unir-se-ão a Deus num mundo renovado e harmonioso (Lemaitre, Quinson, Sot, 1999: 113). A esperança de que iremos todos ressuscitar no final dos tempos é o que mantém Aníbal vigilante. Afinal, mais do que temer o juízo derradeiro, ele crê que seus esforços são necessários para tornar a Terra cada vez mais apta para esse fim sobrenatural, embora tenha plena consciência das limitações de seu “labor aparentemente microscópico” (Bragança, 2017: 383). Já dizia o primeiro verso de “Padrão”, poema de Mensagem: “O esforço é grande e o homem é pequeno” (Pessoa, 1979: 60). É uma tarefa inglória nadar contra a corrente, e Aníbal sabe que não há garantias nessa “roletada”: “investia totalmente os supostamente melhores anos da minha vida, numas guerras que poderiam ser derrotas” (Bragança, 2017: 387).

112 Nessa escalada evolutiva em direção ao pináculo, a “trepadela contemporânea” consiste, aos olhos do militante Aníbal, em “resolver de vez e para todos a premência das necessidades do homem faber, para que um homo sapiens (e portanto também pictor) pudesse emergir em todo o mundo” (384). Ao que parece, a “trepadela contemporânea” é a revolução – a construção do socialismo e, em algum lugar do futuro, a realização definitiva do comunismo.

Não uma revolução que leve Portugal a uma nova ditadura, à semelhança de outros países que passaram pela experiência socialista; tampouco uma revolução burguesa que conduza o país para os “eurodólares”. Citando a Ode Marítima, é preciso “Acordar para

dias mais directos que os dias da Europa” (387). É preciso imaginar outro futuro para

Portugal.

Mas qual seria este? Qual a saída histórica para Portugal, “a única a valer dores e torturas e noites sem dormir”?

Podemos adiantar que não há em Directa – e talvez em lugar algum – uma resposta definitiva para essa pergunta, senão a expressão de uma ideia um tanto vaga da tarefa que o povo português tem pela frente no difícil e nebuloso caminho que leva à edificação de uma sociedade mais justa e igual. Para expor qual seria essa tarefa e esse caminho, estabeleceremos uma breve relação entre Directa e Mensagem, lembrando que essa relação é sugerida pelo próprio Nuno Bragança tanto no prefácio do romance (quando explicita a influência de Mensagem no processo de criação de Directa) quanto nos “mosaicos textuais” dos capítulos 17 e 18, formados por excertos de alguns poemas do livro de Fernando Pessoa.

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