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Salviano e Delfino: da conversão à corrupção

CAPÍTULO II A LITERATURA CALLADIANA E O DIÁLOGO COM A

2.2. Uma tríade calladiana

2.2.1. Salviano e Delfino: da conversão à corrupção

Em Assunção de Salviano, primeiro romance de Antonio Callado, percebem-se fatos muito polêmicos: questões agrárias, revolução e comunismo. Entre esses, destaca-se a religião. A obra narra a história de Manuel Salviano, um carpinteiro ateu envolvido em questões políticas do Partido Comunista que se faz fingir de beato com o propósito de conquistar a confiança do povo através de um discurso religioso. O seu propósito final era transformar uma procissão de Nossa Senhora da Conceição numa verdadeira revolta, chamada de “Operação Canudos”. Nessa oportunidade, pretendia revelar ser um comunista e desmoralizar os padres, os quais ele tanto detestava.

Toda essa aversão consistia no fato de Salviano pensar que os padres estavam sempre do lado dos mais fortes. Contudo, o fato é que ele, que não

admitia uma Bíblia dentro de casa, começa a se converter diante de suas próprias pregações.

De cunho introspectivo e psicológico, o romance Assunção de Salviano retrata a experiência de um ateu que se converte perante a camada popular, perante a situação de um povo oprimido. Salviano passa a enxergar nos padres da época uma voz de Deus que aconselha e que se torna luz para um povo tão carente de conhecimento.

A respeito da trajetória de Salviano, percebe-se que a cada nova pregação para o povo, algo lhe inquietava:

Mas naquele dia em que devia falar na sua conversão e em Deus, Manuel Salviano, depois de sentar no caixote, pousou os olhos no chão, em vez de olhar seu grupo. Os de pé, descansando numa perna como cegonhas amarelas, saíam daquela modorra equilibrista e se deixavam escorregar pela parede até sentarem no chão, coçando o dedão. Estranhavam a demora de Salviano em começar. João da Cancela, postado à esquerda de Salviano, de cócoras no chão, pintava seu pito de barro, também um tanto intrigado com a demora. Finalmente, Salviano, enchendo o peito amplo, e coçando uns fiapos de barba no queixo, começou:

- Home, esta vida da gente é mesmo uma coisa esquisita... A gente sabe tão pouca coisa que um belo dia a gente descobre até sobre a gente mesmo coisas que ninguém havia de dizer... Eu que estou aqui sempre falei nos padres que vivem com a boca cheia de reza e de amor pelos pobres mas que na vida mesmo de verdade estão sempre com os donos dos gados, das fábricas, das árvores. Sempre falei mal deles mas outro dia só é que vi que eles eram... homens de Deus. (LEITE, 1982, p. 17 – 18).

Através do trecho, percebe-se que Salviano refletia sobre seu discurso e sobre suas leituras da Bíblia. Todo aquele fingimento de beato se intensificava na sua profissão de fé. Sua visão sobre a Doutrina Católica e os padres começa a mudar. Embora haja uma forte crítica à hipocrisia dos padres, o texto apresenta um início de conversão católica por parte de Salviano. As reticências na narrativa marca uma voz em constante reflexão sobre aquilo que ele mesmo diz. Ele representa, no excerto acima, a voz do ex-cético.

Desse modo, esse contexto literário representa uma forma singular de conversão religiosa. As circunstâncias de farsa em contato com a camada pobre e

popular o fazem enxergar sentidos para a vida e os valores que devem ser encarados como importantes para a condição humana.

Em contraposição a esse personagem, Delfino, de A Madona de Cedro, caracteriza-se como personagem que tem sua fé abalada. A proposta de conseguir dinheiro fácil o coloca num remorso que o faz permanecer 13 anos sem se confessar.

Sendo assim, esses dois personagens intrigantes apresentam vozes de crença pessoal. Salviano, que era ateu, vai se convertendo e incorporando seus próprios sermões bíblicos feitos às camadas populares durante o dia; tornando-se então reflexo para si mesmo durante a noite. Isso acontece mesmo sem sua pretensão. Trata-se de uma conversão que nasce da vivência e das leituras bíblicas.

Nestas circunstâncias, Salviano, personagem do romance de 1954, desiste então dos sonhos políticos de revolução e do partido, assumindo sua crença. Em oposição, Delfino Montiel, o fiel e católico praticante do romance de 1957, torna- se um homem com a fé corrompida. Tudo por conta dos desejos pela amada Marta e das armadilhas que o dinheiro fácil pode proporcionar, como veremos mais detalhadamente no decorrer deste capítulo.

Nesses primeiros romances, especialmente, evidencia-se que Callado insere no seu projeto literário diálogos singulares de crença e fé da religiosidade da época, associados às problemáticas da sociedade. Tudo isso numa conjuntura de que os fatos reais podem se tornar lendas populares, inclusive de cunho religioso, cujos aspectos literários e da religião se misturam.

Conforme Martinelli, os personagens configurados por Callado em suas tramas experimentam formas de crescimento, amadurecem numa tomada de consciência histórica e social. (MARTINELLI, 2006, p. 54). Isso é notório nos dois personagens aqui retratados. Delfino ganha um caráter messiânico, a exemplo de Jesus na cruz, como será detalhado no terceiro capítulo. De igual forma, Salviano abandona o título de líder popular para se posicionar como Messias. Duas obras que imbricam uma relação com elevação: Salviano é morto em uma conotação confusa de ascensão aos céus; e Delfino, subindo a escada da basílica em

companhia de sua esposa, perdoado pela mesma e se esvaziando completamente da culpa e do remorso pelos erros cometidos.