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Sam, Cam e Jafé e o surgimento das línguas para os Makurap

CAPITULO 02 SOBRE NÃO FALAR A MESMA LÍNGUA: ENTRE OS

2.2. Discurso, tempo e loucura

2.2.2. Sam, Cam e Jafé e o surgimento das línguas para os Makurap

Na Bíblia, por outro lado, a humanidade passou a ser realidade somente após a expulsão de Eva e Adão do paraíso. A partir de então, Eva engravidou de Adão e deu à luz a Caim e Abel, seus primeiros filhos, que se tornaram adultos e também procriaram, até chegarem a Noé, um dos descendentes de Adão. Noé também teve filhos: Sem, Cam e Jafé. Javé, como era chamado Deus, decidiu por fim a todas as outras pessoas da terra e escolheu Noé para ser seu ―servo fiel‖, e este foi designado por Javé para que construísse uma enorme Arca e nela colocasse somente sua família, as pretendentes de seus filhos e um casal de cada animal da terra.

Assim, fez Noé. Dilúvio. Quando finalmente as águas secaram, Noé, então, saiu de sua arca, fez um altar para o Senhor e ofereceu alguns animais em sacrifício. A partir disso, Javé decidiu ser benevolente com os homens e não mais amaldiçoá-los ou destruí-los com água, e assim deu início às raízes, do que os cristãos acreditam ser, a atual humanidade. E foi dessa descendência de Noé que

nasceu Nemrod, filho de Cam, que ficou conhecido como o primeiro homem poderoso da terra.

Nemrod recebeu de seu pai a túnica de peles que cobriu Adão e Eva ao serem expulsos do Paraíso. O poder de Nemrod, por vezes, foi associado à túnica, pois, quando passou a usá-la se tornou mais forte e invencível em suas batalhas, visto como, ―[...] um valente caçador diante de Javé, e é por isso que se diz: ‗Como Nemrod, valente caçador diante de Javé‘‖ (BÍBLIA, Gênesis, 10, 9). E assim, Nemrod foi proclamado rei, reinando em Babel, Acade e Calné, na terra de Senaar.

Sendo Babel a mais conhecida e importante cidade de seu reino, Nemrod, também ficou conhecido como o maior blasfemador da época, grande promovedor de orgias e idolatrias a vários deuses de madeira e pedra. O Rei Nemrod conseguiu, então, que o seu povo ficasse desacreditado de Javé. Nemrod ainda teve a ideia de construir uma torre que elevasse ao máximo seu povo aos céus, para que cultuassem seus deuses e se tornasse inviável que fossem espalhados pela face da terra e, com isso, só ascenderiam. Segundo o livro de Gênesis,

O mundo inteiro falava a mesma língua, com as mesmas palavras. Ao emigrar do oriente, os homens encontraram uma planície no país de Senaar, e aí se estabeleceram. E disseram uns aos outros: "Vamos fazer tijolos e cozê-los no fogo!". Utilizaram tijolos em vez de pedras, e piche no lugar de argamassa. Disseram: "Vamos construir uma cidade e uma torre que chegue até o céu, para ficarmos famosos e não nos dispersarmos pela superfície da terra". (BÍBLIA, Gênesis, 11, 1 – 4).

O grande problema dessa ideia é que ela contrariava duas das regras importantes de Javé. Naquelas épocas, era importante que os povos migrassem para que novas nações fossem constituídas, pois deveriam se espalhar pela face da terra, no intuito de procriação. A segunda diz respeito ao culto a deuses pagãos, pois, oficialmente, somente Javé deveria ser cultuado como o Deus de todos, o mais poderoso e mais sábio. Javé, então, resolveu descer, ―Então Javé desceu para ver a cidade e a torre que os homens estavam construindo.‖ (BÍBLIA, Gênesis, 11, 5), e foi então que o nosso objeto de estudo, a língua, tornou-se a arma mais poderosa. E a única arma capaz de parar os homens que desafiavam o poder divino,

E Javé disse: "Eles são um povo só e falam uma só língua. Isso é apenas o começo de seus empreendimentos. Agora, nenhum projeto será irrealizável para eles. Vamos descer e confundir a língua deles, para que um não entenda a língua do outro".

Javé os espalhou daí por toda a superfície da terra, e eles pararam de construir a cidade. Por isso, a cidade recebeu o nome de Babel, pois foi aí

que Javé confundiu a língua de todos os habitantes da terra, E foi daí que ele os espalhou por toda a superfície da terra. (BÍBLIA, Gênesis, 11, 6 – 9) O nome Babel faz referência à confusão, que se estabeleceu como um castigo divino que, segundo a Bíblia, originou as várias línguas do mundo. Nesta perspectiva, a criação sempre é um ato divino, de um deus superior.

Já na narrativa Makurap, a criação das diferentes línguas se dá por razões bem diferentes, não associadas à presença de um deus poderoso, entretanto, neste caso, também houve uma grande confusão.

O irmão mais sábio decidiu ensinar às pessoas que vieram de dentro da terra a língua Makurap. Eles resolveram, então, colocar o pessoal em fila. Um foi para o lado esquerdo e o outro para o lado direito.

O irmão mais sábio, no seu lado da fila, ensinou às pessoas a língua Makurap. O outro, como já era de esperar, para desespero de seu irmão, agiu de outra forma. Ele ensinou o Makurap, mas também ensinou as línguas Jabuti, Urudão, Suruí, Tembé, Tupari, português, inglês. Enfim, as línguas de todos os povos do mundo...

Quando os dois irmãos se encontraram no meio da fila, o irmão mais sábio quase não acreditava no que estava acontecendo. As pessoas falavam línguas diferentes e já nem se entendiam direito. (SILVA, 2003, p. 45)

Assim, ambas as narrativas tratam da questão da multiplicidade de línguas como algo negativo. Na ―Torre de Babel‖, a diversidade linguística é apresentada como um castigo, imposto por Javé, desarticulando uma organização, uma insubordinação. E podemos pensar essa atitude, vinda dos céus, como uma ditadura.

Na narrativa dos Makurap, a diversidade linguística é primeiramente considerada uma brincadeira do irmão mais esperto. No entanto, há outros panos de fundo nesta narrativa, já que a ideia, que partiu do irmão mais velho, de se ensinar uma só língua aos povos que saíram da terra, buscou limitar o povo a seguir somente suas vontades, assim como Javé com a imposição da multiplicidade de línguas. E da mesma maneira como aconteceu em Babel, na narrativa Makurap houve por parte do irmão mais esperto uma transgressão à regra imposta por outro, considerado o sábio e com fama de incontestável.

Logo, há nas duas narrativas uma amostra da questão de poder em que está envolta a linguagem. E com isto, vimos o quanto os ―sábios‖ e ―incontestáveis‖ podem facilmente manejar a diversidade linguística a seu favor. De modo que o ―saber-poder‖ está visível quando em ambas as narrativas nós encontramos personagens que tentam impor uma língua ou várias línguas no intuito de se

manterem no poder. Por fim, seja como um castigo divino ou uma astúcia do ser humano, a diversidade linguística representa um mecanismo de poder, em que alguns vão utilizá-la para estabelecer uma hegemonia e outros como forma de resistência.