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FIGURA XI: CASAMENTO DE PRIMOS CRUZADOS BILATERAIS

2.4 Sangue (quase) terminado

Após algumas de minhas provocações sobre as possibilidades matrimoniais de meus interlocutores, eu soube ser aceitável o casamento de Ego feminino com filhos de primos paralelos patrilaterais (filhos de irmãos). Isto veio à cena depois que fui surpreendida, em abril de 2013, com um caso de casamento que, até aquele momento, parecia-me impossível. A filha de um dos filhos de Kubähi e Wadjidjiká havia sido entregue em casamento ao filho do irmão mais novo de Kubähi, e a moça estava residindo na casa de seus sogros, e de sua cunhada. Esta última já havia aconselhado a menina recém-casada a não deixar “o marido solto”.

Sabendo ser problemática a situação, eu instigava alguns comentários a respeito. Wadjidjiká me dizia estar um tanto brava (descontente) com o caso, e argumentava que a menina poderia se casar não com o cônjuge atual, mas com um filho dele. A mãe da menina

76 Viveiros de Castro (1996, p. 63) admite ser possível a desposabilidade de todos os primos de segundo grau, embora não tenha o autor encontrado um caso etnográfico que o demonstre. Sobre isso, ele diz: “teríamos assim uma espécie de super-kuma” (id.). A regra do tipo kuma é a seguinte: “uma vez cruzado, sempre cruzado, de modo que os descendentes de paralelos de mesmo sexo em todas gerações seriam paralelos, e todos os outros seriam cruzados (Trautmann, 1981 apud Coelho Souza, 1995, p. 201, nota 12). Para o tipo de cruzamento kuma, ver acima a tabela IV sobre os tipos de cruzamento.

162 dizia publicamente tê-la “entregue” em casamento pois sabia de seu namoro escondido. Essa atitude parecia uma tentativa de antecipar-se à opção frequente pela fuga por parte de casais enamorados, e que por vezes são explicadas pelos jovens rapazes como modo de contornar as prestações uxorilocais que marcam a fase inicial de alguns casamentos.

Além disso, a nora de Wadjidjiká (e atual sogra do rapaz), dizia não aguentar mais a falta de cuidado de sua filha com a própria tia paterna (cunhada, assim, da furiosa mãe). A mãe da menina pedia-lhe que cozinhasse para sua tia paterna, mas a jovem não estava preocupada em agradar a irmã de seu pai. O pai da menina, sabendo então do namoro, resolveu “entregar logo”, para que a situação se oficializasse na aldeia. Foi assim que Wadjidjiká tornou pública a união, ao aconselhar os noivos de mãos dadas, em meio aos seus parentes na aldeia. Estavam todos reunidos em torno de um cocho cheio de chicha. Contundente como de costume, Wadjidjiká dizia que a jovem não devia ficar com raiva de seu marido e tentar matá-lo, e evocava sua própria situação, pois ela mesma havia sofrido muito, mas nunca pensou em deixar seu velho ou em brigar com ele.

De um tio paterno da jovem e primo paralelo patrilateral do rapaz, eu ouvi que sua mãe Wadjidjiká aprovava a situação, pois ela achava que os Kurupfü eram muito poucos, e deveriam aumentar. De fato, eu já ouvira da própria viúva de Kubähi sobre seu desgosto em perder uma neta que se vai para outra aldeia: tomada em casamento, a menina iria “aumentar o parente dos outros”. Comecemos por esta questão para tentar destrinchar os significados envolvidos na união matrimonial aqui em foco77.

Para iniciarmos o deciframento das uniões com parentes que ocupam posições paralelas, é preciso observar primeiramente os enunciados nativos sobre as substâncias corporais, as quais, sublinhe-se, aparecem como objetificações de seus procedimentos de humanização. Assim, essas substâncias são os meios pelos quais se expressa a convergência de afeccções ou a similaridade de corpos que é atestada ou verificada não na presença da susbtância qua substância, mas no comportamento de ou entre parentes. De seus enunciados quero destilar o que me pareceu ser o caráter “pronominal” das substâncias, isto é, menos a

77 Por falta de fôlego, não irei explorar as possíveis ressonâncias com o dito “casamento árabe” (casamento com a prima paralela patrilateral, num ambiente patrilinear), que poderia propiciar comparações relevantes. Nos próximos tópicos do presente capítulo, eu abordarei as relações entre cunhadas, articuladas a um componente de afinidade que se insinua na relação entre irmãos de sexo oposto. Também abordaremos as relações de substituição (isto é, a compressão geracional) entre parentes de mesmo sexo de gerações consecutivas, principalmente relativas às posições M e D. A questão da baixa densidade populacional será explorada no final do capítulo, ao observarmos estar em jogo igualmente uma guerra contra os espíritos que têm sua matriz na disputa de cônjuges.

163 ideia de que a identidade de substância implique a existência de corpos iguais ou semelhantes, e mais a noção de que corpos iguais/semelhantes/humanos expressem essa semelhança por meio de formas objetificadas como ‘substância’. Desconfio ser por este motivo que as substâncias indígenas normalmente parecem ser tão fugidias, impossibilitando sua identificação de maneira inequívoca, pelo simples fato de que se transformam facilmente umas nas outras: sangue, chicha, leite materno, etc. Como já afirmava Viveiros de Castro faz algum tempo, tratam-se de substâncias metafóricas ou metonímicas e, neste sentido, expressam um grupo sociológico, não fisiológico (Viveiros de Castro, 1986: 439, nota 88).

Uma formulação sobre a qual quero inicialmente chamar atenção é aquela que diz serem as mulheres as que “aumentam os parentes dos outros”, e que está imbutida numa teoria da concepção segundo a qual se diz que os homens, por meio das relações sexuais durante a gestação, formam o corpo de seus filhos. Segundo meus interlocutores kurupfü, os homens “trabalham para formar o corpo” de seus filhos e os olhos são os primeiros a serem fabricados pela introdução de substância masculina no útero feminino. Contou-me uma interlocutora wajuru algo similar ao que dizem também os Kurupfü:

“A mulher só recebe e gera o sangue do homem. Na verdade, o filho já vem do homem, o filho é do homem. Minha avó e meu avô já diziam a palavra: “quem tem filho é o homem ”. E quando nasce mulher já falam que ela vai aumentar os parentes dos outros. Quando está o pai junto com a mãe ele vai ajudando a formar, durante a relação sexual. Vai se movimentando e se formando. Quando é mãe solteira é perigoso a criança até nascer doente”.

Estamos diante de uma teoria da concepção ativada nas conversas em que eu visava esmiuçar as assunções em torno da patrifiliação. Nessas conversas, a substância (noção de) “sangue paterno” era tomada como capaz de produzir o corpo de seus filhos (bebês) antes do nascimento. Devo esclarecer que essa noção de “sangue paterno” é remetida com alguma ambiguidade ao “sêmen masculino”. De todo modo, trata-se de uma substância que aparece, justamente, como ícone de uma relação entre homens e mulheres, e que só aparece como figura neste sentido, ainda que seja, de todo modo, invisível. Assim é que essa ação paterna (função conteúdo exercida pelo homem) necessita, contudo, de uma função continente

164 feminina para se realizar78. O útero feminino torna-se recipiente para a substância masculina: a

mulher recebe o sangue/sêmem do homem, nela inserido através da atividade sexual repetida. Se essa relação conteúdo/continente não for exercida pelo pai e pela mãe da criança, respectivamente, entram em cena sérios riscos à saúde e completude do corpo do bebê, e que só poderão ser observados no momento de seu nascimento – tema, aliás, bastante recorrente nas etnografias amazônicas79.

O substantivo djeoromitxi para útero, djiri tekä, pode ser traduzido como “a caixa do bebê”, pois a partícula tekä (“caixa”) é designativa de todo tipo de recipiente: cestos para o armazenamento de alimentos, potes para o armazenamento da bebida fermentada feita de mandioca, garrafas, etc. O ato feminino de conter (e transformar) a substância masculina descreve uma ação tão significativa quanto exercer a função conteúdo, reservada aos homens durante a gestação; nada sugere, afinal, que a função continente seja menos importante que a função conteúdo. O que parece estar em jogo é uma relação figura-fundo em que, durante a gestação, é a substância masculina que se faz figura de uma relação [homem=mulher], para a qual o continente permanece como fundo. Com efeito, não pode passar despercebido o que me diziam: “na verdade, é o homem que tem o filho”, conforme pude escutar diversas vezes. Essa formulação é baseada em duas observações: a primeira refere-se à função conteúdo masculina durante a gestação; a segunda, é realizada no pós-nascimento, quando se observa que as crianças têm a aparência física de seus genitores masculinos. Essa observação é muitas vezes seguidas da expressão: “o sangue do homem é forte”.

Mas isso não é tudo. Muitas vezes escutei dos homens que eles mesmos tinham sangue de suas mães: “eu sou um pouquinho makurap”, me disse certa vez um amigo observando que as pessoas do patrigrupo de sua M o respeitavam como parente. Tendo em vista a suplementação da constituição da pessoa à partir do sangue provindo de seu MF, para prosseguirmos, é preciso então distinguir duas “inversões” relativas às substâncias aqui abordadas.

A primeira que abordaremos, chamarei de inversão/conversão, quando a função continente feminina (na gestação) se converte em conteúdo e uma continuidade aparece entre Ego (f/m) e seus parentes maternos (o patrigrupo/subgrupo de sua M) no pós-parto.

78 Agradeço ao comentário iluminador de Márcio Silva, quem me sugeriu a possibilidade da distribuição continente/conteúdo segundo uma solução de gênero.

79 Ver, por exemplo, a etnografia de Peter Gow (1991) sobre os Piro da Amazônia peruana, e de Vilaça (2002), sobre os Wari’.

165 Essa continuidade estaria expressa em enunciados sobre a mistura: ter ‘sangue’ do grupo da M. Como algo que corta, interrompe a continuidade agnática, a substância feminina distancia os paternos entre si, possibilitando p.ex. os casamentos paralelos patrilaterais. Neste caso, a transformação é analógica:

Fcdo (homem) : Fcte (mulher) : : Fcdo (mulher) : Fcte (homem)

FIGURA XV: Transformação analógica da pessoa

I- gestação II- pós- nascimento F ctn= mulher F ctn= homem visível [barriga/útero] [corpo/ aparência paterna] F ctd= homem F ctd=mulher invisível [esperma] [sangue de MF]

Note-se que não há nenhuma torção para este caso, mas um quiasma. O que isso quer dizer é que a consubstancialidade masculina passa para o fundo, contra uma figura de continuidade

166 feminina agora ‘substancializada’ no discurso. Entretanto, vê-se aqui uma pequena complicação: se a substância, como objetificação de relações, faz às vezes de figura (vs. fundo) na oposição conteúdo/continente80, essa evidência/saliência do conteúdo só se realiza após o parto. Trata-se do conteúdo/substância que vamos ver na semelhança entre os filhos e o F. Este conteúdo que na gestação é esperma, se transforma em sangue paterno, quando se passa da teoria da concepção para o discurso sobre a consanguinidade. Na gravidez, o que se vê é apenas a mãe como termo da função continente. O corpo do bebê fabricado pelo homem (na letra indígena) é visível; mas seu conteúdo patrifiliativo, sua substância enquanto tal, não. A substância (esperma) que é termo na oposição Fcto (homem) : Fcte (mulher), em vigor na gestação (o esperma como objetificação da relação/congruência homem + mulher), mas ali invisível, se revela como substância visível apenas na pessoa nascida, enquanto aparência (do)/ corpo do filho.

Assim, é somente quando a mulher deixa de “conter” (esconder) a substância (esperma -> criança), é que a continuidade F -> Ch se dá a ver (na aparência das Ch). Para que esta continuidade perca saliência, e os casamentos paralelos patrilaterais sejam possíveis/justificáveis, é então preciso que a mulher assuma uma função conteúdo. Agora, no contexto pós-parto, em que o conteúdo masculino virou continente (= corpo), o continente feminino vira conteúdo, algo invisível, mas que emerge no discurso (como era o caso do esperma masculino fabricando o bebê): “tenho um pouco de sangue d(o grupo d)a minha M”, diziam-me frequentemente os homens81, contando com a provisão de leite materno e bebida

fermentada fornecidos pelas mulheres ao filho (chicha/leite ->sangue).

A segunda distinção sobre as substâncias abordaremos adiante, ao observarmos o que acontece quando a função conteúdo da mulher se torna visível: neste caso, não mais estaria em jogo uma relação analógica, mas uma dupla torção, do tipo Fórmula Canônica do Mito. O

80 Quero dizer que o que é saliente (figura) na teoria da concepção é o papel masculino, enquanto que o papel feminino (continente) parece ser minimizado (fundo); essa assimetria, que expressaria a relação [homem+mulher] na gestação, é objetificada pelo esperma.

81 A etnografia de um grupo tupi-mondé pode trazer alguma luz para o caso em análise. Segundo João Dal Poz Neto, o parentesco cinta-larga revela um “dimorfismo sexual assimétrico” como “traço básico de sua cosmologia”, indicando, não obstante, “a relação entre uma substância (o princípio agnático), que se reproduz e se conserva idêntica a si, e uma forma (o metabolismo uterino), capaz de acolher e reproduzir a diferença alheia (Dal Poz 2004: 119)”. Passível de ser extendida à teoria da gestação djeoromitxi, entretanto, tal formulação cinta-larga deixa escapar, em relação ao contexto com o qual estamos lidando, um ponto que julgo importante: o fato de que a razão (relação) das relações agnáticas e as uterinas aparecer, no pós-parto, ora difratada no corpo masculino (os homens têm os dois sangues), ora obscurecida no corpo feminino. Assim, é preciso também, para o nosso caso, pensar na função conteúdo exercida pelas mulheres e nas relações visibilidade e invisibilidade que as substâncias masculinas e femininas entretém em cada momento (gestação e pós-parto).

167 suporte também se transforma e o conteúdo visível feminino é a chicha. Quero por ora enfatizar o seguinte: no caso djeoromitxi e povos vizinhos, o fluxo de relações codificado nas substâncias só pode assim o ser justamente porque as substâncias que aqui abordamos (sangue, esperma, chicha, leite materno), são sempre a objetificação de uma relação mesmo que, como figura, elas possam permanecer invisíveis ou obscurecidas. Talvez aqui vemos colapsar a diferença entre fluxo de substância e fluxo analógico, pois as analogias realizadas pela ação masculina podem ser, contudo, cortadas ou bloqueadas pelo fluxo de substâncias femininas. Refiro-me principalmente à função conteúdo que as mulheres assumem no pós- parto.

Esse bloqueio fica evidente nas escolhas matrimoniais. Ao doar uma mulher a uma outra unidade de troca, os doadores garantem que os filhos desta união não sejam do mesmo patrigrupo que eles, ainda que seja preciso, como veremos, mais uma intervenção feminina para que o fluxo de substância masculina possa se enfraquecer e, assim, abrir a possibilidade de novas uniões matrimoniais. Isso porque é a relação entre a substância masculina provinda da gestação (esperma - > sangue) e a substância feminina fruto da relação entre mães e filhos no pós-parto (leite/chicha -> sangue do MF), o código por meio do qual imaginam-se as possibilidades matrimoniais. O conteúdo masculino é, nas próximas gerações, re-direcionado pelas trocas matrimoniais: case-se com quem não é parente, ou melhor, com “parente já quase terminado”, como dizem, para expressar a não identidade de grupo agnático entre os cônjuges. Todavia, não obstante essa aparente desconsideração do patrigrupo materno para fins matrimoniais, por vezes os homens se casam com mulheres pertencentes ao patrigrupo de suas mães ou avós (paterna ou materna) contanto não sejam, com efeito, do mesmo patrigrupo que eles mesmos pertencem. Veremos adiante diagramas que representam as possibilidades matrimoniais com a categoria wirá segundo as soluções/transformações da “filiação complementar” expressas pelos djeoromitxi, justamente em termos do ‘sangue materno’ (i.e. do patrigrupo materno)82.

82 Utilizo a ideia de “filiação complementar” (Fortes 1959) de maneira mais ou menos frouxa, pois claro está que Fortes tinha em mente uma complementação ao pertencimento grupal, sendo este fortemente marcado pela descendência (atributos jurais transmitidos num idioma genealógico). Para Fortes, filiação seria “the fact of being the child of a specified parent” e descedência “the genealogical connection recognized between a person and any of his ancestors or ancestress […] defined as any genealogical predessor of the grandparents or earlier generation” (1959: 206-7). Assim, para Fortes, “only unilineally bounded groups may be called descent groups, and unilineal genealogical criteria for memberchip of groups may be called descent” (Scheffler 1966: 541). Deste modo, argumenta Scheffer, “Fortes exclusion of groups having other than unilineal genealogical criteria of entitlement to membership from the category descent groups and his exclusion of cognatic descent-constructs from the category descent

168 Por meio das ações femininas de fornecer o continente para a gestação dos filhos de seus maridos, e da suplementação de conteúdos que essas mulheres inscrevem no corpo de seus filhos homens já nascidos, pode-se visualizar as futuras possibilidades de casamentos das linhas agnáticas que assim se insinuam como “entes trocadores”. Mas essas linhas são elas mesmas frutos do processo de constituição do parentesco que precisa, vez ou outra, recalcar a sua própria história: é preciso esquecer (obscurer) algumas analogias (relações) para poderem se estabelecer outras, casando-se com parentes deste modo tornados distantes e que são codificados pela posição wirá. Neste sentido, a sugestão de Coelho de Souza (2004, p. 54; nota 6) acerca da irrelevância da diferença entre substâncias inatas e substâncias adquiridas é aqui pertinente. Segundo esta autora, a recusa em distinguir entre inato e adquiridoaqui teria o poder de “altera[r] potencialmente o lugar que a substância passa a ocupar na economia dos argumentos: as conexões substanciais deixam de poder ser identificadas a um substrato dado e imutável das relações de parentesco — estatuto que ocupam em nossa ontogenia” (ibid.).

Creio que a formulação de Armando Moero para a relação wirá se sexo oposto possa nos ajudar a começar a esclarecer tais casamentos:

“O wirá não faz muita parte do sangue, por causa disso, porque o pai das crianças já não pertence muito àquela família, como é que se diz? A família que realmente descende. Não tem mais família sanguínea mesmo, tem diferença já no sangue. Esse daí que pode ser wira da gente. Não pode ser da descendência derive from his holisticstructural-functional perspective” (1966: id). Neste sentido é que Fortes teria restringido a categoria “grupo de descendência” para grupos onde, justamente, descendência é o único critério de pertencimento (Scheffler 1985: 03) e não somente a fiiação. Segundo Scheffler, Fortes “realised, that where a relationship of descent is jurally the basis of entitlement to a status, that relationship is bound to operate by placing persons in categories of group (1959: 208)” (Scheffler 1985: 8). Se esta relação de descendência é o que agruparia as pessoas, este agrupamento seria necessariamente um grupo corporado, mesmo que “the corporate possesion is as imaterial as an exclusive common name or an exclusive cult” (Fortes 1959: 208 apud Scheffler 1985: 09).

Mesmo que Fortes tenha distinguido entre filiação e descendência, e a esta última tenha permitido “possessões imateriais”, é ainda preciso ter cautela para não lermos o material djeoromitxi em termos de uma simples complementação que a primeira faria sobre a segunda. O problema é imaginarmos que se poderia ter grupos de descendência no sentido que Fortes estabeleceu no ambiente djeromitxi onde, justamente, a relação com “ancestrais” tem algum rendimento somente até a geração dos avós. A transformação que os Djeoromitxi operariam sobre o conceito de “filiação complementar”, argumentarei adiante, é marcada pela dividualidade e por relações figura/fundo: não se trata propriamente de uma complementação a algo já dado, mas de construções que ocorrreriam “em paralelo” e que teriam o poder de desestabilizar uma a outra. Essa desestabilização é realizada ao longo das gerações e transformaria esses grupos (“de descendência”, se quisermos) desde o seu interior, por meio da filiação uterina e da intensa exogamia de patrigrupo ali observada.

169 daquela pessoa não. A tia às vezes casa com uma pessoa diferente, que não seja da família sanguínea, então pode casar [com sua filha] ”.

É o fluxo de sangue masculino o que permite a conceitualização da não-identidade grupal dos cônjuges. Mas existe uma condição suplementar a esta elaboração, pois a constituição da pessoa a partir do sangue que pode ser mapeado por via uterina (a função conteúdo invisivel assumida pela mulher no contexto pós-parto) ocorrerá no momento do esquadrinhamento das possibilidades matrimoniais de um indivíduo. Tenho a impressão que os homens realizam os cálculos matrimoniais a partir daqueles que podem ser traçados em linha uterina, casando-se com uma parenta cognática de sua própria mãe83.

No contexto da troca matrimonial dos Djeoromitxi e dos povos aliados, as relações uterinas são observadas pelo ponto de vista masculino. Os homens casam-se com mulheres com as quais eles podem traçar relações a partir de sua mãe – por isso se diz que “o parentesco pode começar a voltar novamente, para não ir longe demais”. É bastante comum que a mãe ou avós maternos da esposa sejam do mesmo povo que a mãe ou avós maternos do marido. Estas relações são a base para as formulações sobre a multiplicidade de substância interna aos corpos masculinos, provinda da memória dos casamentos anteriores dos quais esses corpos são frutos – lembremos que os homens me falavam de uma multiplicidade (de sangue) interna aos seus corpos, se referindo principalmente ao sangue de seu MF.

Simultaneamente, e este é um ponto importante, no contexto matrimonial as mulheres assumem uma continuidade substancial com seu grupo agnático e isso faz com que,

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