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3. Maior que o chão que pisa - constituição de uma rede

3.1 Se fazendo notória – mecanismos usados para construção de redes

Maria Luiza não está sozinha. Essa afirmação não se faz verdade somente pela questão espiritual, mas também por uma questão fundamental da rede que criou a partir de suas relações sociais. Estar na situação em que se encontra a líder quilombola é temer, mesmo que com apoio, pelo pior dos acontecimentos e viver sem poder depositar plenamente sua confiança naqueles que não são da sua comunidade ou da sua família (na cidade de Ubá).

Tais condições garantem não somente que Luiza faça sua existência ser reconhecida fora de Ubá, como a coloca em uma posição de exposição pública, já tendo ocupado lugares como Universidades Federais e Estaduais além de casa públicas, como Câmaras Municipais, de Vereadores e a Cidade Administrativa de Minas Gerais.

A líder quilombola, como várias outras lideranças de povoados negros e indígenas, beira uma situação que tem a possibilidade de desapropriação da terra, do desaparecimento, o apagamento e a destruição como realidade, ―eles tratam a Luiza como se ela fosse invasora‖ (Paulo Azarias em entrevista). Presa a essa realidade, a liderança e seu povo buscam maneiras de se articular em prol de sua sobrevivência e aí faz sentido a composição de uma rede como Luiza a fez.

O que traz Paulo Azarias54 em sua fala supracitada demonstra a reprodução direta de uma visão construída através do processo colonialista. Durante esse processo, há a construção de uma noção baseada na ideia de ―conquista‖ da terra, em que os responsáveis pela invasão de terras chamadas classificadas como ―sem donos‖ produzem uma narrativa que busca atrelar a posse da terra invadida como sua.

Logo, a narrativa trabalhada por aqueles que passam a ocupar um espaço de poder na terra agora definida como pertencente aos colonizadores, é de uma definição

53 Deixa-se claro nessa nota que o alcance da líder quilombola é maior do que eu possa alcançar no tempo que foi feito o trabalho etnográfico, assim, os componentes de suas redes que serão abordados assim fazem parte de uma pequena parte que foi possível contatar no tempo de 5 meses.

54 Interlocutor presente nesse trabalho onde suas falas serão mais presentes posteriormente.

64 inversa de quem agora a detém e de quem a invade. A partir disso se encontra os perigos da narrativa colonialista como traz Chimamanda Ngozi Adichie em seus escritos:

[...] Então, é assim que cria uma história comum: mostre um povo como uma coisa, como apenas uma coisa, repetidamente, e será o que eles se tornarão.

É impossível falar sobre uma única história sem falar sobre poder. Há uma palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu sempre lembro que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é "nkali". É um substantivo que livremente se traduz: "ser maior do que o outro". Como nossos países econômicos e políticos, histórias também são registradas pelo princípio do "nkali". Como são contados, quem como conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder.

Poder é uma habilidade de não contar a história de uma outra pessoa, mas criar a história definitiva de uma pessoa. [...] Comece uma história com flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece uma história com o estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem uma história totalmente diferente.55

Essa é a ideia propagada por aqueles que anteriormente e hoje mantêm poder político e econômico sobre Ubá. A comunidade que lá habita há séculos, muito antes de se existir uma prefeitura, de existirem os atuais governantes e todo seu centro urbano é tida como invasora de uma terra, a partir de uma construção colonialista daqueles que um dia ―descobriram‖ as terras habitadas por indígenas brasileiros. Esse próprio termo, ―descobrimento do Brasil‖, é algo discutido pela descolonialidade como uma das invenções colonialistas para manutenção de relações de poder que funcionam como epicentro da marginalização que afeta Maria Luiza e sua comunidade.

[…] Em outras palavras, começo a sofrer por não ser branco, na medida que o homem branco me impõe uma discriminação, faz de mim um colonizado, me extirpa qualquer valor, qualquer originalidade, pretende que seja um parasita no mundo, que é preciso que eu acompanhe o mais rapidamente possível o mundo branco […] (FANON, 2008, p. 94)

55

Palestra da autora nigeriana, Chimamanda Ngozi Adichie, para a plataforma digital TED, a transcrição se encontra como a oficial, traduzida pela própria plataforma. Encontra-se em:

65 Ubá é uma cidade, como dito antes, do interior do sudeste mineiro. Com pouco mais de 150 mil habitantes, de economia majoritariamente industrial (moveleira) e rodeada por uma elite rural que transita entre morar no centro e nos limites da cidade (onde há condomínios de luxo). Em quesito geográfico e de relevância econômica na zona da mata mineira, a cidade contribuiu com 0,46% do PIB do estado de Minas Gerais56, mesmo tendo uma relevância histórica57 (ignorada pela própria população da cidade) no movimento de abolição da escravatura, não se faz presente como uma das principais cidades do estado. Esse fato acaba por mascarar ainda mais a luta de Luiza e a partir disso, suas consequências também.

De forma a buscar apoio onde sabe que vai ter de fato alguma ajuda, Luiza entende que parte considerável da população da cidade não se preocupa com ela e sua comunidade e tenta de várias formas causar um isolamento e estrangulamento até que perca suas terras e não tenha para onde ir, ―eles me olham como se eu fosse lixo aqui meu filho‖ (entrevista com Luiza).

Logo, o fato da líder espiritual buscar constituir uma rede de apoio com foco em outras cidades e outros estados não se encontra só na questão de receber algum auxílio, mas também de se fazer pública e conhecida em uma estratégia de trazer atenção e notoriedade à sua existência, ação que a tira de uma invisibilidade e a coloca no mundo público.

Mesmo que isso não represente o que Luiza e sua comunidade acham de si, exemplifica muito bem o que traz Frantz Fanon (2008) ao analisar as consequências das relações de poder criadas pelas noções racializantes, mesmo que sejam minoria populacional.

Ainda uma vez, pedimos ao autor alguma circunspecção. Um branco, nas colônias, nunca se sentiu inferior ao que quer que seja; como o diz tão bem Mannoni: ― Ele será endeusado ou devorado‖. O colonizador, se bem que ―em minoria‖, não se sente inferiorizado. Há na Martinica duzentos brancos que se julgam superiores a trezentos mil elementos de cor. Na África do Sul, devem existir dois milhões de brancos para

56 Dados da Fundação Pinheiro, 2015.

57 Há evidência material no Centro Cultural Gymnásio São José, da presença da Princesa Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bourbon-Duas Sicílias e Bragança na antiga Fazenda Liberdade. A presença da Princesa no local foi para ordenar a soltura dos negros ali escravizados, no museu também há evidência que teria sido a primeira Fazenda a libertar escravos no país.

66 aproximadamente treze milhões de nativos, e nunca passou pela cabeça de nenhum nativo sentir-se superior a um branco minoritário. (FANON, 2008, p. 90)