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Se lutas por reconhecimento, logo, haverá de se ter uma cidadania ativa

4. POTÊNCIAS DE VIDA E A PRÁXIS DO SLAM DA QUENTURA: “RESISTIR PARA

4.2. Se lutas por reconhecimento, logo, haverá de se ter uma cidadania ativa

A partir da abordagem da luta por reconhecimento de Axel Honneth (2003) me proponho a avançar, dar um passo a mais do que o espírito livre de Nietzsche (2005). Pensando numa questão contemporânea relativa à nossa cultura que, por inúmeras vezes, foi e é constantemente criticada por rappers, poetas, poetisas e poetes marginais, destaco o conceito de luta por reconhecimento.

Outro ponto importante a salientar é que as pessoas que contribuíram com suas vivências e foram apresentadas até aqui não falam de realidades em suas poesias. Explico melhor: os(as) artistas apresentados(as) não falam de suas realidades, eles e elas falam na realidade, colocando-se na força de ação, buscando transformar suas fisionomias. Destaco isso porque as poesias marginais, assim como muitos raps, falam de forma nua e crua e, muitas vezes, podem ser confundidas com incitação à violência. Exemplo disso é uma poesia de Layze chamada “Revolução”:

[...] Nós tamo indo pra luta Com sangue no zói, Armando até os dente, Cheio de rima no pente E dando tiro de ideologia

Estourando essa tua cabeça vazia [...]

Outro exemplo é a poesia de Fran Nascimento intitulada “Do que me engasga”:

[...] A PAZ ESTÁ PROIBIDA Eu não sou da paz

Não sou mesmo não. Não sou. Paz é coisa de rico. Não visto camiseta nenhuma, não, senhor. Não solto pomba nenhuma, não, senhor.

Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque.

A paz é muito branca. A paz é pálida. A paz precisa de sangue. Ah! Tirar minha paz, digo,

Não sou adestrada, silenciosa, pacífica [...].

Nessas poesias é notória a agressividade, mas não há uma proposta de violência física, e sim estética. Em um artigo que publiquei em agosto de 2019, “Blvesman no discurso de resistência: o rap de Baco Exu do Blues”, falo sobre a questão da violência positiva gangster, a partir da ideia de Hegel (2007), que aborda a autoconsciência e a dialética do senhor e do escravo. Ora, se ser autoconsciente é uma autopercepção reflexiva, isto é, ser consciente do seu eu, uma percepção de si mesmo enquanto sujeito consciente, logo, a consciência se torna emancipada em relação a situações de opressão (SILVA NETO et al., 2019).

Em outras palavras, quando as poesias vem à tona com seus discursos de protesto, de não-paz, essa paz branca, como diz Fran, elas dirigem-se a inúmeras características do eu de seus supostos antagonistas: sociedade racista e opressora para uma grande maioria populacional

negra, periférica e empobrecida (SILVA NETO et al., 2019). Quando Layze e Fran manifestam seus versos polêmicos e agressivos para chamar atenção, reivindicar um lugar, reconhecimento e respeito, elas estão atacando o eu de seus antagonistas de forma direta, nua, crua, sem aceitar manifestações normativas de embranquecimento social colonizado.

A luta trazida para os versos violentos de Fran e Layze é de vida ou morte no contexto nacional, como já destaquei no capítulo anterior, e perpassa uma exigência de reconhecimento, de que o eu dessas poetisas slammers seja visível. No entanto, essa forma de lutar só ocorre, para Hegel (2007, p. 114), “mediante a superação da vida do outro”, isto é, a liberdade é alcançada a partir dessa ação. No contexto em questão, interpreto essas palavras de forma não literal, em que “superação da vida do outro” não significa necessariamente a morte do outro e diz mais respeito às “[...] pequenas revoltas diárias, quando podemos pensar e criticar o nosso mundo” (VEIGA-NETO, 2005, p. 26) em prol de menos desigualdades e reconhecimento. Dito de outro modo, a violência mencionada aqui não se refere a manifestações da morte do outro de forma literal, mas à superação de situações de opressão (SILVA NETO et al., 2019).

Essas constatações foram importantes para introduzir o conceito de “luta por reconhecimento” de Axel Honneth (2003). A concepção de luta do autor é fundamental porque, diferente de Nietzsche que critica os falsos princípios igualitários propostas pela burguesia e destaca, por exemplo, a busca pelo que há de mais nobre no ser humano, Honneth (2003) ressalta que são necessárias propostas e ações que forcem as classes dominantes a escutarem as classes dominadas.

Poesias como as que venho citando ao longo desta pesquisa ganham corpo e estatuto político porque buscam vincular identidades de jovens empobrecidos(as) e negros(as) às lutas por reconhecimento tanto pessoal como social. Quando Bicha Poética fala de sua luta, logo no início da sua entrevista, ela relata os silenciamentos e o escancarar da voz, que rasga o acordo enganoso da cordialidade e desfaz o mito da democracia racial brasileira15.

[...] Foi onde eu comecei a conhecer... esses movimentos e eu comecei a entender a minha existência como algo político, né?! Uma existência política mesmo que... o meu corpo, por onde ele ia, ele fazia política de uma forma silenciada, né?! Silenciosa, assim. Mas... desde que eu comecei a entender, foi eu cheguei até o Slam, né?! Questão de todos esses movimentos, aí eu comecei a me inteirar de quem eu era, de onde eu vinha, que já existiam algumas outras pessoas que já tinham passado por

15 Gilberto Freyre (2001) aborda a escravidão no Brasil em seu livro Casa-Grande & Senzala com um formato de

bons senhores. O mito do bom senhor é uma interpretação simplista e preconceituosa de Freyre, que põe a escravidão como um mero episódio sem importância, que nada interferiria na harmonia entre exploradores e explorados durante o processo de formação nacional.

essa trajetória de vida e que já tinham tombado na luta, e foi onde eu fui me descobrir enquanto pessoa, assim.

É nesse contexto de luta por reconhecimento que devo chamar atenção para o

que Axel Honneth (2003) diz sobre o “progresso moral na dimensão do reconhecimento”. Parto de um viés psicanalítico para pensar sobre essa dimensão moral dos conflitos sociais, mencionando a clínica extensa pensada por Herrmann (1991), que propôs que a psicanálise atue como método de ruptura de campos.

Figura X - Fran e Bicha Poética na final do Slam da Quentura (23ª edição).

Fonte: Vicente Sousa e Dedita Ferreira – Acervo Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas – LABOME.

Em relação ao Slam da Quentura e a qualquer manifestação periférica a ruptura que acredito ser necessária é a do campo do pensamento e da cultura eurocêntricos, inaptos para alcançar as diversidades culturais que constituem o Brasil e de fazer investir numa proposta emancipatória. Ela se vê bloqueada por uma constituição estrutural racista e bastante desigual, baseada em uma bio-necropolítica.

Esse racismo à brasileira, o crime perfeito, ainda hoje alimenta a cultura cordial e o mito da democracia racial, trazendo consequências nefastas para a sociedade brasileira, especialmente a mais empobrecida. Foi preciso a luta dos movimentos negros, principalmente dos anos de 1980/1990, de acordo com Iray Carone e Maria Aparecida Bento (2012), para que o Brasil admitisse que é, de alguma forma, racista.

Se hoje temos uma discussão implantada na sociedade pelas políticas de ação afirmativa – que ainda estão em curso – foi graças ao movimento negro e a suas lideranças a partir da década de 90. Se hoje admitimos que o Brasil não é uma democracia racial e que existe racismo no chamado paraíso racial, é porque o movimento negro se fez ouvir (CARONE; BENTO, 2012).

E mesmo com esse rompimento com o véu que mascarava o mito e a cordialidade, percebe-se que as formas de racismo ainda continuam veladas, não ditas, nas entrelinhas das microrrelações. Exemplo disso é a continuidade dos homicídios de pessoas negras no Brasil indicada pelos dados do Atlas da Violência (2019), em que há seguimento do processo de aprofundamento da desigualdade racial no país. O crescimento na taxa de homicídios de negros em alguns estados foi alarmante: Rio Grande do Norte teve o maior índice, 333,3%, seguido por Acre (+276,8%), Ceará (+207,6%) e, por fim, Sergipe (155,9%) (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019). Os estados que tiveram maiores crescimento das taxas de homicídios foram os da Região Nordeste.

Diante disso, a luta por reconhecimento se torna ainda mais importante e, segundo Axel Honneth (2003), ela se dá de três formas: reconhecimento do amor, do direito e da estima, que desenvolvem, quando estabelecidos em conjunto, as condições sociais, que permitem que as pessoas cheguem a formas positivas de ser, agir e pensar.

É importante salientar que essa visão não diz respeito a uma relação meritocrática, muito menos de autoajuda, mas sim a aquisições cumulativas de autoconfiança, autorrespeito e autoestima. E como adquirir isso em meio às consequências de aproximadamente três séculos de opressão e barbárie cometidas pelo processo de escravidão e massacre das populações menos favorecidas?

Axel Honneth (2003) afirma que a integridade do ser humano se estabelece, muitas vezes, pelo reconhecimento dos três níveis descritos e que categorias morais como “de ofensa” e “sentimento de rebaixamento” surgem quando as pessoas são submetidas a ações de “reconhecimento recusado”. Nesse sentido, as lutas contra o sentimento de injustiça e desrespeito podem ser compreendidas não apenas como luta social, de resistência, mas também como exercício do papel moral de busca por reconhecimento.

Na poesia de Fran, “Do que me engasga”, ela relata esse processo de progresso moral por reconhecimento:

[...] ouça...com atenção, ouça... O silêncio te frustra?

Lugar de escuta assusta

Mas eu sou muralha, fortaleza, Viçosa, Cariri, Sobral Eu vim de longe, vim de lá pequenininha

Aprendi a construir o novo em recortes de livros Que me foram dados no fundamental

E vi que fundamental mesmo são nossas bases, Os nossos e nossos corres,

Que no final ninguém socorre e é só corre!

Não sou médio, superior, mas sou fundamental para alimentar as cadeias (Não as públicas) nem as de mão-de-obra barata,

Mas as cadeias produtivas de circuitos culturais Aquele vetin ocioso, da esquina,

Hoje produz sua batalha de MCs! E quando disse em certa poesia Que da periferia surgem potências, Cuidado! Matamos o estado das bases Criamos a nossa educação

Na construção de mundos em que consideram a nossa existência Aí está nossa resistência!

Cuidado! Levamos o estado à falência múltipla de todos os órgãos Prosseguimos

Recriando o vital Matando a moral

Rap de beco a beco fatal [...]

A “moral morta” citada por Fran é justamente essa moral que impõe ações opressivas, de morte-em-vida, de ofensas carregadas de sentimentos de rebaixamento para as pessoas empobrecidas, periféricas, negras. Quando ela menciona em sua poesia que na periferia existe potência há uma práxis educativa alicerçada por meio de formas de arte, como a poesia marginal. É através desse tráfico poético que muitos(as) jovens conseguem subverter a ordem e estabelecer, de forma coletiva, reconhecimentos de amor, direito e estima.

As potências de vida são, para além de uma forma de escrita, maneiras para as juventudes periféricas se encontrarem, manifestarem seus sentimentos e serem reconhecidas, muitas vezes “na marra”, forçando de “goela abaixo”. Tendo em vista a realidade nacional de política de morte, ser poeta, poetiza ou poete marginal é nadar contra a corrente, é ser o oposto do que o estado de exceção diz, é não se assujeitar às normativas embranquecidas, europeizadas e racistas.

Note-se, no entanto, que quando falo das potências de vida por meio das poesias, que intitulei no início da pesquisa como letramentos de reexistência, não afirmo que essas formas de reexistir abarcam uma plenitude suficiente para resolver os problemas de séculos de escravidão, desigualdades e exclusão. Pauto-me na ideia de que essas formas de arte marginal são um alicerce interessante para sobreviver e subverter as normativas, manifestando formas de afetos, educação e saúde, ações que políticas públicas não alcançam, mas que são importantes para essas juventudes.

Enquanto pesquisador percebi uma “vontade de verdade” (NIETZSCHE, 2005) por parte dos membros do Slam da Quentura, que buscam provocar rupturas com comodidades e mitos sociais, travando uma gramática de guerrilha que reconhece, em consonância com o próprio Nietzsche (2005), as inverdades como condições de vida, indo de encontro a propostas perigosas de valor, além do bem e do mal.

Em outras palavras, a estética violenta, crua e nua da poesia marginal é compreendida como práxis fundamental de afirmação do espírito livre contestatório. Para além disso, são potências da vida nas relações de poder que perpassam condições primordiais para

que as juventudes mudem os conformismos perante a realidade de desigualdades, exclusão e empobrecimento e encontrem seus lugares de reconhecimento.

4.2.1. “Não quero tomar teu espaço: só quero meu lugar de fala”

Um termo importante a ser destacado é o que Pedro Demo chama de “pobreza política”. O termo “pobre” não remete apenas à questão econômica, mas à política também. Para ele, a pobreza não é sinônima de ausência de bens materiais, pois a “pobreza é carência politizada, no sentido de a carência servir para o favorecimento de alguns em detrimento de muitos” (DEMO, 1996, p. 1) e gera conflitos como: o político, em que há uma apropriação de bens e poder por poucos e uma maioria que fica de fora, porém “ficar de fora não é termo correto, porque, sendo pobreza parte integrante desta sociedade, os pobres estão dialeticamente incluídos, embora na margem, na periferia, tal qual numa unidade de contrários” (DEMO, 1996, p. 2).

O que se constata, de fato, é essa pobreza política permeada por mecanismos de poder dos quais o estado de exceção se utiliza para engessar as práticas de inclusão de cidadania para uma maioria populacional. Dessa forma, o que se apreende de Pedro Demo é a noção de pobreza política como carência de cidadania, que possivelmente é a questão mais grave para os(as) empobrecidos(as), uma vez que essa falta lhes restringe, impedindo-os(as) de serem protagonistas de suas próprias histórias.

A crítica que Pedro Demo faz às políticas públicas se concentra na lógica já discutida ao longo deste capítulo, na qual a política sobre os corpos extermina suas emancipações. O que se busca, nesse caso, são governos que se baseiem em um viés participativo da comunidade e das juventudes, instigando a emancipação política e a consciência crítica que “[...] leva a uma consciência ética, a uma responsabilidade; uma responsabilidade que vem de dentro e não de fora, imposta” (ROSO et al., 2002, p. 75).

O estado de exceção permanente baseado em uma política de morte tem como alvo as populações menos favorecidas e prega o não reconhecimento do(a) sujeito(a) enquanto detentor(a) de direito. Devido a isso, muitas pessoas não compreendem seus direitos, não criticam as artimanhas governamentais de poder, não se atentam às cobranças, por exemplo, por melhores condições em instalações de medidas socioeducativas ou pela oferta de cursos no PRONATEC que representem os anseios das juventudes locais. Como afirma Pedro Demo (1996, p. 9), “é correto partir do pobre, se o quisermos como sujeito participativo, mas é contraditório deixá-lo na pobreza. Parte-se da pobreza para sair dela [...] na verdade, o sistema não teme um pobre com fome, mas teme um pobre que sabe pensar”.

É justamente por conta desse “pensar” de forma crítica que a luta por reconhecimento se mostra tão essencial dentro das mecânicas das relações de poder. Lutar por reconhecimento é compreender as condições em que se encontra e não apenas se assujeitar a delas. Essa luta é a trajetória para chegar a uma riqueza política, de participação social, uma cidadania ativa que supera a submissão a grupos, a governos e interesses de uma minoria do poder. Segundo Pedro Demo (1996) “é a sociedade organizada que define o papel e o espaço do Estado, não o contrário”.

Portanto, uma cidadania ativa no contexto nacional só se dá mediante a luta por reconhecimento e pela coletividade. As potências de vida dentro das relações podem apontar mecanismos que subvertem a ordem, mostrando práxis de transformação e possibilitando alcançar a participação social e a cidadania ativa. “Tomar aquilo que é nosso por direito” foi uma das frases que ouvi bastante durante a observação participante nos encontros do Slam da Quentura. É uma declaração que me fez compreender que desde a Constituição de 1988 e a criação das políticas públicas, como o ECA, por exemplo, o que ainda prevalece é uma cidadania negada para a população negra, de periferia e empobrecida. Como não ser negada com uma política esquadrinhadora que escolhe quem vive e quem morre?

Layze fala em sua poesia “Revolução”:

[...] calma aí, só queremos de volta O que por direito é da gente! A gente sabe que tu teme à nós Que estamos às margens, meu irmão, Escuta a nossa voz

Porque é daqui

Que tu vai ver explodir essa revolução!

Assim, ela processa a gramática de significação na língua, que, segundo Bakhtin e Voloshinov (2010), estabelece a distinção entre signo e sinal. Segundo esses autores, sinal é unívoco, isto é, possui o mesmo significado independente de ambiente e necessita apenas ser reconhecido (BAKTHIN; VOLOSHINOV, 2010). Em uma poesia marginal, por exemplo, há alguns padrões técnicos de performance poética que constituem a dimensão sinalética da obra e só precisam de uma atitude de reconhecimento.

Já quando pensamos no signo é essencial que ele seja compreendido e não apenas reconhecido, pois sua significação está diretamente orientada pelo contexto, dada a sua natureza polissêmica (BAKTHIN; VOLOSHINOV, 2010). Esses mesmos elementos, no discurso de uma poesia marginal, possuem tanto uma dimensão sinalética como uma sígnica. Cada elemento linguístico pautado por Layze no trecho citado de sua poesia está orientado por um

contexto específico da obra, ambiente esse que inclui não unicamente um enunciado (no caso, a própria obra), mas todo um conjunto discursivo em que a poesia em questão se coloca.

Entender os efeitos de sentido que se manifestam em uma poesia é, portanto, evidenciar as relações dialógicas, estabelecendo conexões e potencializando a imersão de diversas vozes que constituem os enunciados poéticos. O objetivo de toda essa discussão é esclarecer que as poesias marginais citadas aqui estão acopladas às histórias de vida dos poetas, poetisas, poetes e slammers. São manifestações marginais que lutam por reconhecimento, são potências de vida que extrapolam a normatização imposta e denunciam as inúmeras formas de massacre dentro da realidade brasileira de política de morte desde a sua constituição.

O que defendo neste capítulo são políticas de juventudes que não primem pelo encarceramento e morte, mas sim pela potencialização das decisões, desejos e capacidades de transformação singulares (HARDT; NEGRI, 2005), tendo como consequências não a delinquência e a pobreza política, mas o desenvolvimento de espaços comuns que possibilitem um olhar apurado e crítico sobre ações governamentais impostas.

Para isso, é necessário compreender mais um conceito: o “lugar de fala” a partir da visão de Djamila Ribeiro (2019), haja vista que a compreensão sobre lugar de fala é essencial quando se põe em pauta o racismo estrutural. O âmago deste conceito é perceber que o “falar” não se restringe apenas à ação de emitir palavras, mas de poder existir (RIBEIRO, 2019).

Ainda a respeito de lugar de fala, proponho que se pense numa construção histórica baseada na exclusão, nas desigualdades e na morte e no fato de que para determinada população brasileira o “tomar o que é por direito” vincula-se diretamente a uma luta por reconhecimento, uma evidência de potência de vida que pauta-se numa constante práxis de luta e fome de existência.

Pensar em lugar de fala é entender que pessoas precisam se posicionar como manifestantes, exercendo sua luta de poder existir com cidadania ativa, e também refutar a historiografia tradicionalista e hierarquizadora de saberes, oriunda da hierarquia social (RIBEIRO, 2019). É errôneo acreditar que lugar de fala possui um caráter essencialista que pauta a ideia de que somente o negro pode falar sobre racismo ou, por exemplo, apenas mulheres negras podem falar sobre feminismo negro. Djamila traz a ideia de que lugar de fala trata de uma luta por direito de existência digna e direito à voz, é questão de “[...] lócus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência” (RIBEIRO, 2019, p. 64).

Figura XI - Lançamento do livro A Poesia Falada invade a cena em Sobral: poetry slam no interior do Ceará na final do Slam CE, que teve sua primeira edição sediada na cidade de

Sobral. Na foto estão presentes as pessoas que fizeram parte do livro: slammers, rappers, membros(as) da organização do Slam da Quentura e professores universitários.

Fonte: Vicente Sousa e Dedita Ferreira – Acervo Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas – LABOME.

O foco desse conceito é trazer à tona as condições sociais que constituem determinadas populações das quais, por exemplo, a maioria dos slammers do Slam da Quentura faz parte e quais são as possíveis experiências que essas pessoas compartilham em grupo. É primordial, além disso, não reduzir a teoria do lugar de fala apenas às experiências, pois, como já venho discutindo até aqui, existem estudos sobre as opressões estruturais que impedem que sujeitos(as) de certos grupos, como as juventudes negras e periféricas, tenham direito à fala, à humanidade (RIBEIRO, 2019).

Ser negro ou negra não garante reflexões filosóficas e críticas sobre o racismo