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Seguindo os passos da rainha de Sabá

No documento Da Minha Terra a Terra (páginas 78-81)

8 “Outras Américas”

22. Seguindo os passos da rainha de Sabá

Minha reportagem sobre as montanhas da Etiópia, da cidade de Lalibela ao Parque Nacional do Simien, foi uma das primeiras feitas em digital. Talvez tenha sido também a mais bela e interessante viagem de toda a minha vida. Surgiu como um desafio: quase ninguém se aventurava por aquelas regiões quase desconhecidas. Fui avisado de que eram perigosas. Eu aguentaria fisicamente? E se quebrasse uma perna, fosse mordido por uma cobra, como seria socorrido?

No outono de 2008, percorri ao menos 850 quilômetros a pé em montanhas que não podem ser atravessadas de outra maneira. Caminhei por 55 dias, não por estradas, mas por trilhas sem intervenção humana, mas que, de tanto serem percorridas, há milênios, formavam um caminho. Não existe levantamento topográfico preciso da região. Subi três vezes acima de 4200 metros. No nível mais baixo, estávamos a mil, 1500 metros. Ao mesmo tempo que escalava picos de rara beleza, remontava o curso da história.

Eu havia sido aconselhado a desconfiar dos autóctones. Dois guardas armados com Kalashnikovs escoltavam a mim e minha pequena caravana de tropeiros e burros que transportavam nossos mantimentos. Com exceção dos garotos apavorados ao verem pela primeira vez um branco, e ainda por cima careca, fomos maravilhosamente bem recebidos em todos os lugares, tanto que rapidamente dispensei nossos guardas. A cada dois dias, graças a meu telefone por satélite, eu contatava a Géo-Découverte, uma organização suíça especializada na concepção de itinerários para cientistas. Juntos, planejamos minuciosamente meu périplo. Eu informava minha posição GPS, e eles me diziam se eu continuava na direção correta.

Malcom, meu guia etíope, era um homem fenomenal, e como rimos juntos! Era engenheiro agrícola, conhecido de meus amigos suíços da Géo-Découverte. Ele nunca tinha percorrido aquele caminho. Era o chefe da expedição. Um maratonista etíope também nos acompanhava; era quem levava o material fotográfico, pois os burros o sacudiriam demais. Eu carregava o corpo das câmeras. Para recarregar as baterias, transportávamos painéis solares, muito leves e dobráveis, e pequenas baterias secundárias para armazenar energia. Quando chegávamos às aldeias, eu

recarregava a bateria das câmeras, do telefone, do barbeador — raspo a cabeça todos os dias desde 1994, pois certa vez fui infestado por parasitas quando usava cabelos compridos e barba.

Fazíamos uma média de vinte a trinta quilômetros por dia, muitas vezes sobre cascalho, a baixas temperaturas em grandes altitudes e sob muito calor próximo aos 1500 metros. Vimos neve, pois atravessamos terras muito áridas. Às vezes passávamos quatro, quase cinco dias sem nos lavar. E quando encontrávamos um riacho, todos se atiravam na água. Combinávamos cinco, seis horas de descanso, lavávamos as roupas e, depois de secas, voltávamos a andar. Era difícil, mas, ao mesmo tempo, era uma boa vida. Em certos trechos, sabíamos que eu era o primeiro ocidental a passar por ali, as populações locais não se lembravam de algum dia terem visto um. Fiz um mergulho incrível num mundo judaico-cristão que se assemelha de modo impressionante à Igreja descrita no Novo Testamento.

Os etíopes são semitas e se apresentam como descendentes da rainha de Sabá e do rei Salomão. Eles se orgulham de ser o único povo da África a não ter sido colonizado. Muitos judeus etíopes, os falashas, partiram para Israel nos anos 1980. Mais de 60% da população é cristã (e 30%, muçulmana). A cristianização remontaria ao século IV, com a conversão do rei Ezana. A tradição cristã

monofisista* perdura no país, à margem das outras comunidades ortodoxas

orientais.

Por duas ou três vezes, quando chegamos em certas aldeias, exaustos, as mulheres vieram a nosso encontro. Elas tiraram nossos sapatos e, com um pouco de água, lavaram nossos pés. Depois os beijaram, acariciaram. Éramos como o Cristo na cena dos Evangelhos!** Foi comovente. Sempre recebíamos presentes,

comida e outros dons. Nada nos faltou ao longo de toda a viagem. Nossos dezoito burros estavam carregados com massas, cereais, latas de atum, queijo processado e outros mantimentos que se conservam por meses, pois pensamos que não encontraríamos nada no local. Mas em toda parte fomos recebidos como convidados de honra. Conheci uma população generosa e comovente.

Assisti a ritos celebrados em igrejas trogloditas que nos devolviam ao seio da terra e ao início dos tempos. As missas são como longas melopeias recitadas em ge’ez, a língua litúrgica de origem semítica que reagrupa todos os abissínios que falam cerca de duzentos dialetos diferentes. Era magnífico, mas eu já esperava encontrar algo do gênero. Em contrapartida, a viagem me revelou uma verdade fabulosa da qual nunca suspeitei: todas as terras férteis que alimentaram os egípcios, sobre as quais lemos, relemos e cuja história estudamos, provêm das

montanhas etíopes. A civilização de faraós que está na origem da nossa e de nossas religiões frutificou graças à terra vinda dos picos abissínios. Parece improvável, mas ali descobri o segredo da fertilidade do Nilo.

Seu lodo nasce naquelas montanhas, pois a erosão de seus picos, que caem nos vales circundantes, forma cânions tão grandes quanto os do planalto do Colorado, nos Estados Unidos. Carregado pelas chuvas, ele se une aos riachos que deságuam no rio Tekezé, o maior afluente do Nilo Azul que, quando de sua confluência com o Nilo Branco, no Sudão, torna-se o Nilo propriamente dito. Diante daqueles grandes cânions, tive vontade de dizer obrigado. Obrigado por tudo o que aqueles povos trouxeram à humanidade, por sua contribuição a uma história que tanto me fez sonhar durante a infância. Fiquei bastante comovido de poder sentir o papel que aquela terra e aquelas pedras desempenharam no destino do planeta. Compreendi a que ponto os minerais têm um lugar importante em nosso mundo. Tocando aquela terra, pensei: ela também está em mim. Nós dois somos parte do mesmo planeta. Vivemos a mesma história.

Por fim, cheguei à conclusão de que não há muita diferença entre mim e aquela terra, não mais do que entre mim e a iguana de Galápagos. O Projeto “Gênesis” me ensinou que tudo está interligado e que tudo está vivo. “Gênesis” é minha declaração de amor à natureza. E por isso não me fez esquecer dos seres humanos, pois estes também são elementos dessa natureza maravilhosa.

* Os monofisistas afirmam que Cristo tem uma única natureza, divina. Eles se opõem à doutrina das duas naturezas, divina e humana.

** Na passagem do Evangelho chamada de Unção em Betânia (12, 1-3), João descreve Maria de Betânia lavando os pés de Jesus.

23. Um mundo em

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