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Capítulo 4: O problema da transição

4.2. Segundo enfoque

Devo agora considerar outro expediente hermenêutico: a tentativa de resolver problemas de interpretação interna pelo traçado de linhagens extra-textuais, como uma perícia, partindo das testemunhas e das pistas deixadas, de reconstituição da biografia do autor, entendida como o conjunto de singularidades de sua vida e intenções historicamente localizadas.

Urge levantar, antes de tudo, algumas desconfianças sobre a possibilidade de demarcação de fronteiras temporais. O maior obstáculo à tentativa de localização do ponto de inflexão do pensamento de Montaigne é o fato de que a linha do texto não necessariamente coincide com a linha temporal, pois o processo de inserções de comentários ocorre não somente de edição para edição, mas também dentro de uma mesma edição244. Dito de outro modo, não nos podemos fiar na linha do texto nem na linha da história pessoal de seu autor para traçar a trilha reta de uma eventual transição de uma postura a outra.

Munido de tais considerações propedêuticas, passarei, doravante, em revista algumas das propostas de leitura por remissão biográfica, não sem antes rever as etiologias de transição levantadas em hipótese no primeiro enfoque.

Quanto às hipóteses levantadas (de Starobinski e Friedrich, da exemplaridade ou do deslocamento temporal progressivo ou regressivo), não podemos lhes fornecer suporte a partir dos fósseis históricos extratextuais ou intratextuais, até onde pode ir minha módica cultura historiográfica; mas quero fazer notar que nenhuma delas torna-se imediatamente invalidada por isso. Supomo-las pela nossas próprias experiências ao ler os textos de Montaigne e preenchemos – deveríamos fazer de outro modo? – os espaços vazios da nossa ignorância (ou o abismo hermenêutico de que falei na “Introdução”) pela nossa própria e irrenunciável sensibilidade ao tema.

Os unitaristas que admitiram a existência de alguma mudança (ainda não falemos em ‘evolução’, que supõe desde já uma preferência pela segunda atitude) acompanharam-na pela exclusiva remissão aos dados biográficos do autor. Boon245, por exemplo, procura entender o trajeto do livro como uma mudança pessoal e, para tanto, leva à frente um breve estudo biográfico. Na sua opinião, a “lucidez”, que alguns estudiosos teriam confundido com estoicismo, era prescrita quando Montaigne ainda se via envolto em obrigações públicas e não sofria tanto da saúde, enquanto que o enaltecimento da diversão é proposto depois de se desfazer daqueles deveres e ao estar sujeito aos males de que veio a morrer ulteriormente246. Ora, com esse argumento, Boon não está provando que não há evolução quanto à questão da morte nos Ensaios, mas sim dando-lhe uma explicação causal, por remissão à vida do autor. Outros comentadores que acompanham o itinerário biográfico do autor, mais coerentes, parecem tê-lo percebido e afirmam que há de fato uma evolução.

Entre esses vários intérpretes, desde Villey, é comum afirmar que há uma passagem da exemplaridade espelhada nas mortes relatadas da Antigüidade clássica (Sócrates e Catão, principalmente) para a vivência própria das experiências cruciais de proximidade247, passando pela exemplaridade de pessoas próximas. Ora, se a biografia do autor é remetida a uma entidade fora do texto, não podemos tão ingenuamente tomar as experiências cruciais de proximidade ao morrer como determinantes, uma vez que, assim mostram alguns estudiosos, Montaigne já padecia do mal que havia de se intensificar com os anos e a experiência da queda, ela mesma, já teria ocorrido antes do início da escrita dos Ensaios; embora naturalmente a velhice e a doença avancem com o passar do tempo. É antes a relação teórica de Montaigne com essas experiências que muda248.

Villey entende a mudança de posição do autor dos Ensaios como resultante, além das experiências pessoais249, da influência de leituras diferentes (preferência crescente por Plutarco e Lucrécio no lugar de Sêneca e Cícero250), empreendendo a monumental tarefa de rastreamento de pistas biográficas e bibliográficas (livros presentes em sua biblioteca, referências e citações etc.). Consideração tardia a partir dos restos de um rastro, o resultado dessa biografia intelectual bem como suas diretrizes têm sido contestados recentemente, sobretudo, mostrando-se que as relações de Montaigne com suas fontes são muito mais sutis e

245 Boon, 1971, p. 40 e confessadamente em p. 77. 246

Boon, 1971, pp. 75-76.

247 Muitos desses intérpretes baseiam-se, sobretudo, nas linhas finais da camada A do II, 6. Ver por exemplo:

Lyas, 1993, p. 123 passim e Starobinski, 1968, p. 932 passim.

248

Como procurei mostrar no final do capítulo 3.

249 Villey, II, p. 391. 250 Villey, 1976, II, p. 111.

escorregadias e não podem servir de indícios seguros para as divisões rígidas da evolução farejada por Villey.

Como já havia dito na “Introdução”, a relação de Montaigne com os papéis que lhe passavam sob os olhos é fluida. Uma das precipitações mais graves da genealogia de Villey é considerar a ocorrência de um índice certo ou quase certo de datação como próprio a um bloco geralmente delimitado em um capítulo. Ora, um traço característico do trabalho de Montaigne com as criações alheias é o recorte e a reelaboração, qual um novo quebra-cabeça cuja configuração é diversa do original. É perfeitamente possível que o escopo de alguns dos indicadores de Villey seja menos abrangente, principalmente no caso de uso de exemplos; talvez esse escopo seja simplesmente uma parte do capítulo, um parágrafo, um período, uma frase ou ainda parte de uma frase. Uma citação explícita ou implícita não puxa consigo a adoção do conjunto de um corpo de doutrina filosófica. No que tange às implícitas, que para nossos olhos zelosos pelos direitos autorais pareceriam plágio, não há uma atitude desleal de deturpação; levanto a hipótese de que depois de ler uma frase de seus autores prediletos, ela ressoava na mente de Montaigne no decorrer de seu dia-a-dia, harmonizada ou dissonante com os sons de sua vida, e flutuava proclamando independência das suas origens. Desse modo, as razões de assentimento e propósitos de destinação de uma idéia não necessariamente são os mesmos.

Diante das considerações acima, só nos restam dúvidas céticas sobre a verdade e o alcance interpretativo das etiologias biográficas levantadas e, com o conhecimento que atualmente possuimos, de quaisquer outras que por ventura possam ser pensadas.

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