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O segundo período : “ o estado científico ”

O segundo período – o estado científico – é, para Bachelard, uma etapa de transição e preparação para o novo espírito científico. O estado científico concede o selo de uma cientificidade marcada pelo método e pelo rigor da delimitação do saber científico e da sua respectiva diferenciação do saber do conhecimento comum. “A ciência moderna substituiu a meta utópica pela certeza mediante a exigência de um aperfeiçoamento ou desenvolvimento constante”.70 É nesta ciência desenvolvida ao

longo do século XVIII que Bachelard encontra o início de um desenvolvimento na relação entre o sujeito que desenvolve o conhecimento científico e os objetos frutos desta análise. Ao contrário do primeiro estado, o segundo não aceita uma simples análise a priori dos objetos como científicos como um saber estruturado.

Bachelard aponta para uma objetividade científica que é fruto do rompimento com o estabelecimento de conceitos estruturados pura e simplesmente sobre a experiência primeira, pois todo o processo de objetividade, se devidamente experimentada e verificada, busca a reavaliação das observações primeiras. Ele percebe então esta ciência como uma reavaliação conceitual, não apenas sobre a observação dos objetos mas, principalmente sobre as metodologias empregadas nas pesquisas e desenvolvimentos destes. Para Bachelard, a dúvida metódica deve ceder lugar à constituição de uma problemática a partir da correlação entre as observações verificadas.

69 AFEC (BACHELARD: 1996. 23).

“Em lugar do dualismo de exclusão do sujeito e do objeto, em lugar da separação das substâncias metafísicas cartesianas, vemos em ação a dialética de um acoplamento entre conhecimentos objetivos e conhecimentos racionais”.71

Com o desenvolvimento da ciência moderna, vem à tona agora um mundo onde a ciência desenvolve-se não mais por um impulso mágico, que emana da nova realidade de descobertas e observações, mas antes por um impulso racional, que emana do espírito,72 onde o “espírito científico” que progride não pode se contentar

mais em pensar as experiências somente em seus traços mais significativos ou expressivos. Faz-se necessário que ele “pense todas as possibilidades experimentais” presentes na nova forma de se fazer ciência.73 O mesmo espírito que progride, que

evolui, busca construir um mundo à imagem da nova racionalidade, onde os fundamentos conceituais e metodológicos da ciência moderna agora serviriam como um ponto norteador para a cultura científica ocidental européia. O ocidente parecia entregar sua gestão ao aparato técnico científico.

Percebe-se que o problema em relação à ciência moderna é que, durante sua evolução, ela foi apagando as suas origens, esquecendo as questões cotidianas que culminaram no seu aparecimento. 74 Parece que todo o conhecimento científico desta

época funda-se numa conduta onde o critério fundamental não é o homem mas o conhecimento objetivo em si. Com isso, ocasionou-se um isolacionismo científico como se a ciência se bastasse para a sua própria existência e desenvolvimento; o indivíduo parecera perder a importância em detrimento da metodologia e do processo de verificação. A ciência parecia não mais querer sair do laboratório pois, ele é

“(...) essa invenção genial por meio do qual os cientistas controlam o ambiente para que as experiências se realizem segundo as condições previstas pelo paradigma: desse modo, os resultado serão sempre transponíveis ... sob condição de controlar o ambiente por intermédio de um laboratório equivalente, ou

71 CANGUILHEM, Georges.. A epistemologia. Portugal: Ed. Setenta, s/d. p. 132. 72 ONEC (BACHELARD: 1985, 19).

73 ONEC (BACHELARD: 1985, 54).

74 FOUREZ, Gérad. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências – São Paulo: Ed. da

possuir um ambiente totalmente equivalente àquele onde se obtiveram os resultados”.75

Tudo parecia apontar, além do isolacionismo científico, para o consequente isolacionismo do cientista. Para Bachelard, esta retenção das “verdades científicas” não era bem vista. Para ele a ciência deveria se processar na coletividade, entre os demais espíritos.

“De fato, a verdade científica é uma predição, ou melhor, uma pregação. Convocamos os espíritos à convergência, anunciando a nova científica, ligando o pensamento à uma verificação: o mundo científico é, pois, nossa verificação”.76

“ Não falta senão um pouco de vida social, senão um pouco de simpatia humana para que o novo espírito científico (...) ganhe o mesmo valor formativo que uma nova economia política (...). Para muitos cientistas que prosseguem com paixão a vida sem paixões, o interesse dos problemas presentes corresponde a um interesse espiritual primordial onde a razão desempenha o seu destino”.77

Podemos expressar o interesse que Bachelard reconhecera na necessidade da atividade coletiva do “espírito científico” utilizando-nos das palavras de Alan Chalmers para descrever um pouco da trabalho científico criado por uma coletividade: “as pessoas não constroem o conhecimento sozinhas, a partir do nada. Nascemos todos em um cenário epistemológico onde já existe muito conhecimento e variados métodos para a sua produção, ampliação e aperfeiçoamento”.78

É desejo do “espírito científico” a construção de uma “ciência nova” que possa desobstruir as ações de uma dada cientificidade acostumada a posicionar-se como foco de estruturação e desenvolvimento social. Não se pode pensar que isto poderia ser encontrado na cientificidade vigente do “estado científico” pois este mesmo desenvolvimento não levava em conta a uma participação mais ativa da própria

75Citação de B. Latour (1982) retirada da obra “A construção das ciências – introdução afilosofia e a ética das ciências”, de Gerard Fourez (São Paulo: Ed. da UNESP, 1995, p. 166).

76 ONEC (BACHELARD: 1985, 18). 77 Ibid. p. 148.

comunidade onde a ciência se instalara. Ao retratarmos uma participação maior do corpo social, é fazemos valer um termo cunhado por Bachelard para expressar não somente uma comunidade de cientistas ou pesquisadores mas, principalmente, uma conjunto de indivíduos com a finalidade específica de desenvolver ciência e fazer com que a mesma desenvolva o indivíduo em um âmbito coletivo : “a cidade científica”.79

“Parece que o caráter social das ciências físicas se manifesta precisamente pelo evidente progresso dessas ciências. O trabalhador isolado deve confessar que não teria conseguido descobrir isso tudo sozinho. O progresso dá a essas ciências uma verdadeira história do ensino cujo caráter social não pode ser desprezado. A comunhão social do racionalismo docente e do racionalismo discente (...) confere ao espírito científico a dinâmica de um crescimento regular, a dinâmica de um progresso certo, (...)”.80

É operada uma evolução desta “segunda etapa” quando a ciência agora passa a ser desenvolvida não mais dentro de ambientes restritos ; “no século XVIII, a ciência interessa a todos os homens cultos. A idéia geral é que um gabinete de história natural e um laboratório são montados como biblioteca”.81 Bachelard defende que o fator “ciência –sociedade” se restringia a um grupo privilegiado que poderia ter acesso não somente ao corpo técnico mas também ao plano de elaboração das idéias científicas.”O fato de oferecer uma satisfação imediata à curiosidade, em vez de benefício pode ser um obstáculo para a cultura científica. Substitui-se o conhecimento pela admiração, as idéias pelas imagens”.82

“A ciência moderna procura promover a aliança da explicação com a dominação. A efetiva explicação dos fenômenos propicia ao homem, como se começou a apregoar a partir de Francis Bacon, conquistar poder sobre eles. Torna-se, por isso, arma fundamental no enfrentamento das forças cegas da natureza que põem em risco a sobrevivência”.83

79 AFEC (BACHELARD: 1996, 24).

80 CANGUILHEM, Georges. A epistemologia. Portugal: Ed. Setenta, s/d. p. 148. 81 AFEC (BACHELARD: 1996, 40).

82 Ibid. p.16.