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Os segundos atos, em virtude de serem as porções mais compridas ou, pelo menos, as mais complexas e estratificadas, são os mais trabalhosos de comparar, então entendeu-se apresentar pontos de comparação.

Faróis

O segundo ato de Patrícia Portela tem uma divisão que diz respeito à estrutura externa do livro. A sua divisão por capítulos muito curtos, inclusive nas porções do livro que têm narrativa, torna a experiência por parte do leitor ainda mais fragmentada. É difícil dizer que qualquer momento da ação está a conduzir a um outro. Cada uma das cenas é-nos apresentada como um momento solto, quase desconexo dos outros, criando a sensação de que existe tempo a passar entre cada um dos vislumbres oferecidos. Essa pulverização da ação, que se vai extremando com o decorrer do segundo ato, não é replicada em nenhum dos outros livros em análise.

Quem faz experiências desse género, isso sim, é Joana Bértholo. Em O Lago Avesso, os momentos soltos de narrativa que são introduzidos ao longo da obra têm uma relação forte com o que Patrícia Portela faz em O Banquete. A um nível não tão exagerado, talvez, mas dento do mesmo tipo de lógica, Gonçalo M. Tavares em

Jerusalém também espalha os seus fios narrativos, relativos a diferentes personagens,

ao longo de momentos curtos. Assim, um fio narrativo em arco, como vimos no capítulo relativo a O Banquete, dispersa-se e perde-se. Até esse momento, no entanto, poderia ser comparado ao fio utilizado por Valério Romão em Autismo.

Em oposição, surge Afonso Cruz, que seguindo uma modelação clássica cria uma ação ascendente e outra descendente que por inerência do modelo se estratificam naturalmente e encontram os seus faróis. Ao impor à sua história um pico emocional, Afonso Cruz obriga-se a criar uma cena (que está citada, quando Isa se apercebe de que é feliz) em que demonstra esse mesmo pico. Outros momentos estruturais típicos também estão delineados no capítulo onde se analisa Para Onde Vão os Guarda-

Chuvas. Assim, e devido ao modelo estrutural mais rigoroso que Afonso Cruz escolhe

para o seu romance, é obrigado a criar cenas farol, e a construir na direção das mesmas. A discussão sobre se Para Onde Vão os Guarda-Chuvas tem três ou cinco atos (Anexo 2: 22) é justificada precisamente por causa desta estratificação clara da ação do romance.

João Tordo em As Três Vidas tem, tal como Afonso Cruz, marcadores claros para os quais a narrativa nos conduz. Apesar de a narrativa de Afonso Cruz ser mais comandada pela ação e decisões de personagens estranhas ao núcleo de personagens principais e em As Três Vidas o contrário se verificar, a narrativa de João Tordo também vai ter faróis muito marcados. Procurando que o seu arco narrativo nunca estagne, o autor lisboeta vai semeando os momentos decisivos de forma mais ou menos regular e espaçada para poder provocar picos de tensão.

Valério Romão, cuja narrativa também não tem uma tendência ascendente ou descendente clara ao longo do romance, usa um espaço como âncora. Ao contrário de João Tordo ou Afonso Cruz, cuja narrativa se vai espalhando pelos mais diversos lugares, efabulados ou reais, Valério tem na sala do hospital um núcleo, condicionando o leitor para aceitar esse espaço como farol. Ao recentrar a ação no seu espaço kafkiano, Valério Romão vai sempre centrando o leitor, gastando mais ou menos tempo "fora de água" (Anexo 1: 16)

Assim, e como podemos observar, os quatro autores têm visões muito diferentes sobre como pontuar a sua narrativa. Portela distribui-a em doses pequenas e intermitentes, Afonso Cruz escolhe os seus pontos-chave de acordo com uma estrutura tradicional, Tordo de acordo com um ritmo mais ou menos constante, e Valério Romão utiliza um referente espacial como nó central e ponto de tensão.

Inversões

Não faz sentido, n'O Banquete, falar-se de inversões em termos do desenrolar da ação. Antes que se pudesse atingir qualquer tipo de clímax, deixa de existir um fio narrativo. A presença da personagem "ele", um misto mefistofélico e faustiano, faz com que a narrativa ganhe uma tonalidade onírica e se pulverize demasiado. No entanto, enquanto temos acesso a essa continuidade, é difícil encontrar argumentos no sentido de haver algum tipo de ação ascendente, ou sequer descendente. Daí ter sido escolhido um modelo em arco para representar a estrutura narrativa enquanto ela existe.

O único autor em que existe, sim, uma inversão total da narrativa é Afonso Cruz. A partir do momento em que Isa admite a sua felicidade, prenunciando também a sua perda, a ação começa a descer imediatamente. Poucas páginas depois, Mudaliar recebe a notícia de que não se poderá casar com a irmã de Elahi e a narrativa começa a cair. Este tipo de estrutura é bastante invulgar na literatura portuguesa contemporânea, até porque deixa mais ou menos implícito um final trágico previsível. Talvez por isso o leitor presuma com tanta frequência que é esse o caso em Para

Onde Vão os Guarda-Chuvas. Situação essa que desalenta o autor, que tinha

construído um final em aberto. A grande maioria do romance contemporâneo, português e não só, oferece algum tipo de equilíbrio no terceiro ato, e isso é mais difícil de conseguir com estruturas em pirâmide.

Nunca é demasiado recordar que Gustav Freytag, quando propôs a sua pirâmide, se baseou não em romances, não em prosa de ficção, mas sim em produção dramática. Tragédias, especificamente. Dos quatro livros em estudo, apenas um tem características trágicas, e esse é Autismo, de Valério Romão. No entanto, a sua estrutura não é uma estrutura tradicional trágica. A dimensão trágica da narrativa

apenas é revelada na última página do romance. Valério Romão explora a ambivalência do modelo em arco até ao último suspiro.

Como é visível na Fig. 3, a história de Autismo funciona mais em arco do que propriamente com vértices. Mais do que medir melhorias ou piorias na condição emocional das personagens, o arco de Valério Romão tem a ver com a tensão sentida pelas personagens na sala de espera. Assim, dificilmente se poderá falar de uma inversão em Autismo.

As Três Vidas, de João Tordo, por sua vez, aproximam-se mais da obra de

Valério Romão, com arcos de personagem. Os de João Tordo, no entanto (porque são três), têm mais relação com a persecução dos seus objetivos por parte das personagens do que propriamente com tensão. Ainda que se possa comparar a demanda incessante do protagonista P para satisfazer Camila e Millhouse Pascal com a necessidade visceral de Rogério e Marta de abrir a porta e ter acesso, finalmente, ao filho.

Assim, apenas no caso de Afonso Cruz tem sentido falar-se em inversões. Aquilo que se pode referir, isso sim, é a peripécia presente no final do romance de Valério Romão, mas essa está fora do segundo ato, e por um motivo válido, a peripécia.

Poucos autores reproduzem, na literatura portuguesa contemporânea, uma estrutura em pirâmide. Os arcos, pela sua ambivalência, são mais frequentes. Ricardo Adolfo, no entanto, que já referimos com a sua obra Mizé - Antes Galdéria que

Normal e Remediada, também faz esse livro numa estrutura tradicional.

Curiosamente, com peripécia no final.

Rigor

Ao falar da estrutura do segundo ato, um dos temas que importa comparar, e que volta a recordar a citação de Hanif Kureishi do segundo capítulo, é o rigor com que é seguido um modelo estrutural ao longo do mesmo. Geralmente, e Afonso Cruz é certamente excecional nesse sentido, a literatura contemporânea vê pequenos primeiros atos, terceiros atos curtos também, e uma grande quantidade de informação, responsabilidade e artifícios estruturais a acontecer no segundo ato e nas fases de desenvolvimento da narrativa.

Patrícia Portela pensa o rigor de uma forma bastante diferente da dos seus outros três colegas. A organização rigorosa de todas as peças do seu puzzle literário consome-a, e gastou, como já foi referido anteriormente, praticamente tanto tempo a colocar todos os elementos da sua obra por ordem como a escrevê-la. O Banquete, e os seus fragmentos, funcionam como um Livro do Desassossego para o qual foi encontrada uma ordem. O rigor existe, então, para a estrutura externa do livro. Não há espaço desperdiçado, e o fio narrativo perde-se por completo nesta organização de pensamentos e ideias.

Valério Romão, pelo contrário, organiza cada um dos momentos da sua narrativa com precisão cirúrgica. A intenção de continuamente manipular o que o leitor está a sentir manifesta-se não só numa escrita sôfrega de frases curtas como também na forma como os vários momentos da narrativa, desde os mais banais aos mais crispados, se alternem, quase com um número de páginas fixo ao longo do romance.

Este rigor não é replicado por Afonso Cruz ou por João Tordo. Ligeiramente mais relaxados na forma como lidam com os faróis das suas narrativas, tanto o figueirense como o lisboeta vão deixando que os seus romances tenham momentos de acalmia e reflexão que conduzam o leitor a cada um dos momentos de maior importância na narrativa. A existência de marcas claramente definidas, de faróis a partir dos quais a ação já não pode recuar, não significa que elas estejam espaçadas com algum tipo de critério pré-definido.

Como já era por demais evidente nas análises individuais de cada uma das obras, a ideia de rigor, a própria noção, não é consensual entre os três autores. Patrícia Portela e Valério Romão, cada um à sua maneira, encontram num sublimar do rigor formal a maneira de atingir os seus objetivos. Outros autores, que já anteriormente foram associados nesta tese a Patrícia Portela, têm também uma aproximação mais rigorosa à forma, casos de Gonçalo M. Tavares ou Joana Bértholo. Afonso Cruz e João Tordo tendem a procurar uma estética mais orgânica, assim como David Machado ou José Luís Peixoto.

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