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Segurança jurídica: a necessidade de se evitar o vazio normativo

Outro fundamento a justificar a técnica da interpretação conforme é a segurança jurídica, entendida aqui como a necessidade de se evitar a expurgação de uma lei ou ato normativo do cenário jurídico, gerando um perigoso vazio normativo.

No dizer do saudoso Celso Bastos, “foi sempre o temor e a prudência de declarar uma lei inconstitucional que deram origem às modernas formas de interpretação constitucional, que visam, sobretudo, manter a norma no ordenamento jurídico tendo como fundamento o princípio da economia, da segurança jurídica e da presunção de constitucionalidade das leis e como escopo a busca de uma interpretação que compatibilize a norma tida como ‘inconstitucional’ com a Lei Maior. Parte-se da idéia de que na maioria dos casos essa inconstitucionalidade da norma vai dar lugar a um vazio legislativo, que produzirá sérios danos ao ordenamento jurídico.”

“Nesse sentido, procura-se evitar de todas as maneiras a decretação de nulidade da norma tendo em vista os inconvenientes que ela traz, pois a interrupção

269 ENTERRÍA, Eduardo Garcia. La Constitucion como norma y el tribunal constitucional. 3. ed.

brusca da vigência de uma lei, sem ter transcorrido tempo suficiente para colocar outra em seu lugar, gera um vazio normativo.”270

André Ramos também faz essa análise: “deixando de lado os limites a serem observados quando da utilização desta peculiar técnica de decisão, frise-se que a sua realizabilidade tem como fundamento precípuo assegurar a mantença e eficácia do ato normativo dentro do ordenamento jurídico, na medida em que se tem como assente a idéia de que a declaração de inconstitucionalidade, embora seja um profícuo remédio, apresenta-se, porém, repleta de nefastos efeitos colaterais, dentre os quais se poderia, aqui, pinçar o problema do vazio normativo decorrente da expulsão de um ato normativo do sistema, o qual pode ser mais danoso do que a sua própria manutenção, embora eivada de inconstitucionalidade. Assim, a falta de outras alternativas pode, em muitas situações, compelir o STF a deixar de reconhecer a inconstitucionalidade, como quando a falta da lei (pela declaração de sua nulidade) criaria um vazio normativo insuportável (TAVARES, 2003: 230).”271

Samantha Ribeiro Meyer-Pflug pontifica que “as modernas formas de interpretação constitucional surgem em resposta ao anseio da sociedade de maior segurança, eis que as mesmas visam evitar a declaração de inconstitucionalidade e conseqüente expulsão da norma do ordenamento jurídico, com fundamento em aspectos puramente formais. Estas novas formas de interpretação assumem relevância quando se tem em vista que a inobservância da advertência doutrinária pelos órgãos jurisdicionais responsáveis pelo exercício do controle de constitucionalidade, com emprego apenas dos métodos clássicos de interpretação, que atribuem exagerado valor à literalidade das

270 BASTOS, op. cit., p. 268. Realmente, a interpretação conforme, quando possível, é sempre preferível

à danosa declaração de nulidade de uma norma posta e vigente no ordenamento. A propósito, em excelente artigo, o professor Inocêncio Mártires Coelho, opondo-se à idéia de alguns civilistas de que o Novo Código Civil é inconstitucional por ser adverso aos avanços da Constituição de 1988, faz uma interpretação conforme de vários dispositivos do novo diploma civil. Após uma leitura conforme a Constituição de vários artigos do Código, o professor muito bem conclui: “Afora esses dispositivos do novo Código Civil, muitos outros poderiam ser trazidos à colação para demonstrar como, através da chamada interpretação conforme – e sem violência ao sentido desses preceitos – é possível e necessário dar-lhes significados que os tornem compatíveis com a Constituição, assim como interditar leituras que acarretem a sua inconstitucionalidade”. Cf. COELHO, p. 46-53.

normas constitucionais, ao seu sentido originário pode implicar na proliferação de vício de inconstitucionalidade das leis.”272

No mesmo sentido Flávia Viveiros273:

“Para fazer frente ao medo do vazio jurídico que poderia ocorrer pela só declaração de nulidade de uma lei, no caso de sua desconformidade com a Constituição, os magistrados constitucionais desenvolveram técnicas interpretativas refinadas, no intuito de desempenharem adequadamente sua missão de examinar a constitucionalidade das leis, sem provocar inúteis perturbações da ordem jurídica estatuída.”

“O juiz constitucional, efetivamente, tem horror ao vácuo jurídico. Tal aversão se traduz pela ampla efetividade dada aos valores constitucionais e pela facilitação da penetração dos mesmos em todos os ramos do Direito, evitando, na medida do possível, a criação de buracos negros dentro da ordem jurídica.”

“Desta forma, a preocupação com a segurança jurídica do sistema normativo e o medo do vácuo ocasionaram o desenvolvimento de determinadas técnicas de decisão interpretativas, especialmente na Alemanha, Itália e França.”

“É necessário que o juiz, o qual decidirá a questão da constitucionalidade, utilize técnicas decisionais que permitam assegurar eficazmente o controle da constitucionalidade das leis, sem comprometer a segurança do sistema jurídico.”

A propósito, preocupado em impedir o vazio normativo que as decisões de controle de constitucionalidade podem ocasionar, o legislador pátrio estabeleceu no artigo 27, da Lei 9868, de 10 de novembro de 1999, verbis: “ao declarar a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança

jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro

272 MEYER-PFLUG, op. cit., p.127. 273 CASTRO, op. cit., p. 136-137.

momento que venha ser fixado.”274 Veja-se que mesmo quando não for possível salvar a norma, em razão de evidente inconstitucionalidade, pode a Suprema Corte mantê-la por certo tempo em vigor, se ficar comprovado que a retirada da norma jurídica do ordenamento sem que haja tempo para a criação de outra em seu lugar, poderá causar danos irreparáveis e maiores do que sua própria mantença no sistema.

É interessante notar que a interpretação clássica (juspositivista) impõe ao intérprete métodos formais de apreciação da lei, visando, justamente, a segurança

jurídica, mas no sentido de resguardar a imperatividade e a pretensa objetividade do texto. Para tanto, confere ao intérprete uma função limitada de realizar uma pura operação de dedução lógica, isenta de subjetivismos e excessos que possam subverter a impositividade da norma.

Pode-se compreender por segurança jurídica, portanto, uma interpretação formalista que não contravenha o texto legal, mas também uma interpretação menos inflexível, que impeça o desaparecimento desse mesmo texto normativo do sistema jurídico, criando uma lacuna da lei em razão de sua inconstitucionalidade. E a adoção de métodos menos ortodoxos de interpretação constitucional, desde que utilizados dentro de limites aceitáveis, parece preferível às formas clássicas, porque pode impedir decretações de nulidades da lei que não seriam evitadas se aplicados apenas os métodos propostos por Savigny.

Canotilho, ao citar as modernas formas de interpretação constitucional (“declaração de inconstitucionalidade sem as conseqüências da nulidade;” “situação ainda constitucional mas a tender para a inconstitucionalidade;” “interpretação conforme a Constituição” e “nulidade parcial”), as coloca como métodos para a solução das “situações constitucionais imperfeitas,” tais sejam, situações de inconstitucionalidades que podem ser solucionadas por outras formas menos radicais que a sanção extrema da nulidade total. Diz ele: “A sanção de nulidade com as características atrás assinaladas (no direito civil e no direito administrativo) pode revelar-se uma sanção pouco adequada para certas situações que, embora imperfeitas sob o ponto de vista constitucional, exigem um tratamento diferenciado, não

274 (grifo nosso) CASTRO, op. cit., p. 137. Na Áustria pode também a Corte Suprema, mesmo após

reconhecer e declarar a inconstitucionalidade da lei, estabelecer que ela continuará vigendo pelo período de até um ano após a decisão.

necessariamente reconduzível ao regime da nulidade absoluta. Isto conduziu a doutrina e a jurisprudência a construções mais complexas e matizadas relativamente às sanções aplicáveis a actos normativos desconformes com a Constituição.”275 E mais adiante completa: “Todos estes exemplos do tipo de desconformidade constitucional não reconduzíveis à bipartição radical entre actos normativos constitucionais válidos e actos