Rawls acredita encontrar seis diferentes concepções do bem na filosofia prática kantiana, sendo que estas diferentes concepções são construídas em seqüência, uma a partir da outra. Com a explicitação deste tópico, Rawls pretende esclarecer “a prioridade do justo
e o reino dos fins como o objeto a priori da lei moral” (LHMP, p. 219) na filosofia prática
de Kant.
Rawls denomina a primeira concepção do bem de “razão prática empírica
irrestrita” (LHMP, p. 220). Esta concepção relaciona-se com o primeiro passo do
procedimento do imperativo categórico, onde não há nenhuma restrição acerca das informações disponíveis ao agente. Trata-se apenas de sua racionalidade isoladamente
considerada, ou seja, ainda sem as restrições do razoável, ao formular máximas e buscar concretizar sua concepção de felicidade.
A segunda concepção do bem relaciona-se com o quarto passo do procedimento do imperativo categórico, a já anteriormente mencionada concepção das “necessidades humanas verdadeiras”. Esta concepção tem importância neste passo para garantir um conteúdo objetivo à lei moral, já que “Kant supõe diferentes agentes terem diferentes
concepções de sua felicidade” (LHMP, p. 221). Portanto, se a avaliação de um “mundo
social ajustado” é feita a partir de uma determinada concepção de felicidade, as máximas que são aprovadas pelo procedimento do imperativo categórico serão relativizadas àquele agente particular com sua concepção de felicidade específica, não sendo passíveis de validade universal.
A terceira concepção do bem “é o bem como a realização na vida cotidiana do
que Kant chama fins permissíveis, isto é, fins que respeitam os limites da lei moral”
(LHMP, p. 222). São aqueles fins cujas máximas passam pelo teste do procedimento do imperativo categórico, ou seja, cujo “mundo social ajustado” associado a tais máximas satisfaz as duas condições de aceitabilidade a partir da perspectiva de agentes ideais. Assim, aqueles fins cujas máximas não passam pelo teste têm de ser revisados ou abandonados, não importando a intensidade do desejo ou o quanto tais fins são racionais da perspectiva do agente - deste modo fica expressa a prioridade do justo (as exigências do razoável) sobre o bem (as demandas da racionalidade). Rawls enfatiza que a partir desta concepção do bem “o contraste com uma doutrina moral teleológica tal como o
utilitarismo é claro, desde que para Kant a concepção de fins permissíveis pressupõe que a lei moral e os princípios da razão prática pura já estejam colocados” (LHMP, p. 222).
A quarta concepção do bem é a concepção da boa vontade. Esta é a concepção do
bem relacionada ao valor moral de uma pessoa. A boa vontade tem um valor absoluto, sendo a única coisa boa em si mesma, de modo que “esta vontade não será na verdade o
único bem nem o bem total, mas terá de ser contudo o bem supremo e a condição de tudo o mais, mesmo de toda aspiração de felicidade” (FMC, p. 111). Segundo Rawls, “este bem consiste em um firme e estável desejo de ordem superior, ou para usar o termo de Kant, um interesse prático puro, o qual nos leva a tomar interesse em agir por dever” (LHMP, p.
exigências da lei moral mesmo em detrimento de desejos e inclinações. No entanto, Rawls assinala que “o valor absoluto da boa vontade não é para ser considerado, como em uma
concepção teleológica, como o valor supremo a ser maximizado” (LHMP, p. 210). Para
Rawls, esta concepção de boa vontade possui dois papéis principais na filosofia prática kantiana. O primeiro é que ela é “a condição de sermos membros de um possível reino dos
fins” (LHMP, p. 158), sendo isto “amplamente aceito, como algo básico do pensamento democrático” (LHMP, p. 160). O segundo papel diz respeito ao que Rawls chama de “um aspecto religioso” (LHMP, p. 160) da filosofia prática kantiana, e refere-se basicamente ao “sentido de nossa vida no mundo” (LHMP, p. 158).
A quinta concepção do bem é justamente a do reino dos fins, o objeto construído pela razão prática pura. Agora já podemos esclarecer dois diferentes sentidos em que podemos tomar a ‘construção’ do reino dos fins. Primeiro, o próprio ideal do reino dos fins é construído via procedimento do imperativo categórico: o ideal de uma comunidade moral resultante de todas as máximas que servem como imperativos categóricos particulares não é o fundamento da lei moral, mas deriva-se desta lei, como já o dissemos anteriormente (seção 2.2, p. 22). O segundo sentido refere-se mais propriamente à concretização deste ideal. Deste modo o reino dos fins é “uma idéia prática para realizar o que não existe mas
que pode tornar-se real pelas nossas ações e omissões, e isso exatamente em conformidade com esta idéia” (FMC, p. 141, nota 43). Rawls enfatiza que “um componente essencial deste ideal é que é razoável tentar realizar um tal reino no mundo natural” (LHMP, p.
311), ou seja, tal ideal não se apresenta como uma utopia inalcançável, mas como “um bem
natural, um bem que é possível (embora nunca plenamente realizável) na ordem da natureza” (LHMP, p. 311).
Por um reino dos fins deve ser entendida “uma conjunção sistemática de pessoas
razoáveis e racionais sobre leis (morais) comuns” (LHMP, p. 208). Por “conjunção
sistemática” deve-se entender a compatibilização, em uma ordem moral pública, de todos os fins moralmente permissíveis de seus membros. Isto, por sua vez, implica que “todas as
pessoas razoáveis e racionais tratam-se a si mesmas assim como as outras como tais pessoas e portanto como fins em si mesmas” (LHMP, p. 208). Ou seja, não apenas
submetem-se às restrições da moralidade abandonando fins moralmente proibidos tendo em vista a conservação do que é fim em si (deveres da justiça), mas ainda devem buscar
promover aquilo que é fim em si (deveres da virtude), assumindo determinados fins como obrigatórios, como por exemplo “promover sua perfeição moral e natural e a felicidade
dos outros” (LHMP, p. 209).
Rawls lembra que “um componente essencial do reino dos fins é a condição de
‘adesão’ (membership) (...). Esta condição é simplesmente a personalidade moral, ou os poderes da razão prática” (LHMP, p. 209). Ou seja, ser membro do reino dos fins implica
em ser legislador desta comunidade moral, o que é segundo Kant o fundamento da dignidade humana, de seu valor como fim em si (conforme tratamos anteriormente, na seção 1.2, p.12).
Por fim, a sexta concepção do bem na filosofia prática kantiana é a concepção do bem completo. Este bem é a conjunção do ser merecedor da felicidade e do ser feliz de fato em uma realização aproximada do ideal do reino dos fins13: “este é o bem obtido quando o
ideal de um reino dos fins é realizado e cada membro tanto tem uma boa vontade quanto alcançou a felicidade, até onde as condições da vida humana permitem” (LHMP, p.225).
A boa vontade, como bem supremo, é condição para a possível obtenção do bem completo: ser merecedor da felicidade é requisito para desfrutar a felicidade, já que esta felicidade só é possível na concretização aproximada do ideal do reino dos fins, ou seja, na medida que em seus membros cumprem efetivamente seus deveres de justiça e de virtude. Rawls ainda esclarece que, apesar de a boa vontade e a felicidade serem bens “tão
diferentes em suas naturezas, e em seus fundamentos em nossas pessoas” (LHMP, p. 225),
eles são ambos bens incomensuráveis que não precisam ser pesados um contra o outro, pois que “eles podem ser combinados em um bem completo e unificado apenas pela relação da
estrita prioridade de um sobre o outro” (LHMP, p. 226); isto é, a prioridade da razão
prática pura (o razoável) sobre a razão prática empírica (o racional), ou a prioridade do justo sobre o bem.
13
Rawls considera que a concepção do bem completo como a “premiação” da felicidade conforme a virtude, realizada por Deus, é um aspecto religioso da doutrina kantiana que é mesmo incompatível com o restante de sua filosofia, “pois não há nada no procedimento do imperativo categórico que possa gerar preceitos requerendo proporção de felicidade para a virtude” (LHMP, p. 316). Assim, prefere uma interpretação do bem supremo como a conjunção de merecer felicidade e ser feliz na concretização do ideal de um reino dos fins, que é “um ideal secular” (LHMP, p. 321), onde não é necessária a inclusão de um agente transcendente premiando ou punindo conforme o mérito, pois que se baseia em uma “idéia de moralidade auto- compensatória (self-rewarding morality)” (LHMP, p. 312). O próprio Kant afirma que “só se a religião é acrescida a ela [à moral], realiza-se também a esperança de tornar-nos algum dia partícipes da felicidade na proporção em que cuidamos de não ser indignos dela” (CRPr, p. 209).
É importante reforçar que esta prioridade do justo não exclui o bem: as demandas do razoável e do racional são incomensuráveis e ambas necessárias dada a natureza humana. Rawls enfatiza que “o razoável pressupõe e condiciona o racional” (CKTM, p. 68), e que “uma forma da unidade da razão é mostrada em como o razoável ‘enquadra’
(frames) o racional e limita-o absolutamente” (LHMP, p. 231), ou seja,
O justo e o bem são complementares; a prioridade do justo não nega isto. Nenhuma doutrina moral pode ser feita sem uma ou mais concepções do bem, e uma concepção aceitável do justo deve deixar o espaço adequado para tais concepções. (…) O que a prioridade do justo insiste é sobre que concepções do bem devem responder a certas delimitações anteriores oriundas da razão prática pura (LHMP, p. 231).
Deste modo, excluindo a primeira concepção do bem (a da racionalidade irrestrita), todas as demais “pressupõem uma já dada concepção do justo” (LHMP, p. 230) e são construídas uma a partir da outra, de modo que “o contraste entre a estrutura
deontológica e construtivista da doutrina de Kant e a estrutura linear de uma visão teleológica começando de uma concepção independente do bem está clara” (LHMP, p.
231).