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CAPÍTULO 1 A ENUNCIAÇÃO

1.5 SEMÂNTICA DO ACONTECIMENTO: A ENUNCIAÇÃO COMO

Em “Semântica do Acontecimento”, de 2005, observamos o resultado de uma trajetória de estudos e discussões de questões ligadas aos modos como os sentidos se constituem a partir da enunciação como prática política. De forma relacionada com os estudos de Benveniste e Ducrot, o autor configura uma outra abordagem do lugar da linguística. Desse modo, esta teoria tem em vista a percepção de mecanismos linguísticos de estudo da língua em funcionamento.

Assim, o autor propõe uma reflexão sobre as questões do sentido e como ele se produz na linguagem. A análise do sentido da linguagem deve, portanto, centrar-se no estudo da enunciação, “do acontecimento do dizer” (GUIMARÃES, 2005, p. 7). Em outras palavras, o autor questiona como deve ser feita a análise da relação entre sujeito e língua, fator que contribui para a concepção de enunciação como acontecimento. 


Nesse viés, a enunciação se dá pela ordem do simbólico, razão pela qual ela não remete a um sujeito responsável pelo que diz, dono de seu dizer e que instaura um tempo cronológico, como vimos em Benveniste. O que se contempla, nessa perspectiva teórica desenvolvida por Guimarães (2005), é o que e como significa o que um sujeito falante diz a partir de determinadas condições socio-históricas. O sujeito é, portanto, “afetado pelo simbólico e num mundo vivido através do simbólico” (GUIMARÃES, 2005, p. 11).

Assim, observamos que essa abordagem proposta por Guimarães se distingue do ponto de vista da pragmática, por exemplo, que teoriza sobre o contexto, que é a situação que produz sentido. Na teoria de Guimarães é a relação língua, sujeito, temporalidade e materialidade histórica do real que configura a enunciação, que é tratada “enquanto acontecimento de linguagem” que “se faz pelo funcionamento da língua”. Desse modo, a noção de acontecimento nesse momento da concepção de enunciação definida por Guimarães é central para que se compreenda os sentidos, pois de acordo com o autor:

Considero que algo que é acontecimento enquanto diferença na sua própria ordem. E o que caracteriza a diferença é que o acontecimento não é um fato

no tempo. Ou seja, não é um fato novo enquanto distinto de qualquer outro

ocorrido no tempo. O que o caracteriza como diferença é que o acontecimento temporaliza. Ele não está num presente de um antes e de um depois no tempo. O acontecimento instala sua própria temporalidade. (GUIMARÃES, 2005, p. 11-12)

Dessa forma é o acontecimento que estabelece sua própria temporalidade e não o sujeito pragmático, dono do dizer, tal como teorizado em Benveniste. Ou seja, “o sujeito é tomado na temporalidade do acontecimento”, que não se faz pela cronologia dentro de categorias da língua e sim, na enunciação, que por sua vez “recorta um passado como memorável”, ou seja, como algo que se rememora de enunciações passadas e simultaneamente “instala uma latência de futuro”, significando no acontecimento (GUIMARÃES, 2005, p. 12).

O conceito de memorável postulado por Guimarães é o que o dizer significa como algo que já foi enunciado e que ressignifica em um acontecimento de um modo específico. Por isso, “o passado é, no acontecimento, rememoração de enunciados, ou seja, se dá como parte de uma nova temporalidade, tal como a latência de futuro”, e nos dá uma direção de sentidos (GUIMARÃES, 2005, p. 12).

Portanto, a noção de acontecimento nos possibilita compreender o funcionamento das línguas, que se dá pelo modo como ela é enunciada. É o acontecimento, ao ser analisado, que nos permitirá observar o modo pelo qual as línguas funcionam em relação às outras em seu acontecimento enunciativo.

1.5.1 A enunciação e o político

Outro ponto importante a se discutir, próprio do funcionamento das línguas na sua relação com seus falantes, é o conceito de político. Guimarães traz essa questão para o campo enunciativo a partir da reflexão do filósofo J. Rancière, para pensar a relação entre língua(s) e falante(s).

O conceito de político, a priori discutido pelo filósofo Rancière, busca questionar a política nos estados democráticos. Nessa perspectiva esse conceito é concebido como sendo uma mentira, uma aparência apenas e manifestação da falsidade. Em outras palavras, o filósofo problematiza a visão do bem comum, isto é, que antes do equilíbrio entre forças, existe uma divisão na sociedade entre aqueles que falam e os que não têm direito à fala.

E então, o autor propõe uma mudança no conceito clássico de política quando a considera como o espaço de criatividade humana, em que os excluídos pela ordem, denominada polícia, exibem sua capacidade de fala e por meio da igualdade, pedem o seu direito à fala, contra sua

exclusão. Assim, a polícia é a ordem que designa os modos de ser e dizer, quem faz isto ou aquilo, configura uma ordem que determina um local específico para os sujeitos, limitando-os em seus nomes e funções por enquadrá-los em uma determinada visão fixa do local de existência e importância deles.

Dessa forma, o povo identifica-se ao todo da comunidade política, pois o todo da política como forma específica da atividade humana é a inclusão dos que não são contados, ou seja, a destituição de toda lógica da dominação legítima. É a contagem enquanto um todo dos que não são nada que define uma comunidade, que por consequência, só pode ser uma comunidade do litígio, do conflito, do dissenso (RANCIÈRE, 1996, p. 374).

Por esse viés, o autor nos leva a compreender que entender a prática democrática a partir de procedimentos formais é de certa forma ignorar que existe outro lado; um lado simbólico, de disposição e manipulação de corpos em que indivíduos iguais, são posicionados na desigualdade.

Rancière pensa no político no nível das relações democráticas, no sentido de que produz movimento e a condição para a história como ciência. O deslocamento do pensamento do filósofo francês sobre a política nos Estados democráticos na Semântica do Acontecimento no âmbito da Linguística é para pensar a linguagem e, assim, é nesse novo quadro de relações que surge o conceito de político na enunciação.

Para Guimarães, o acontecimento de linguagem é político e se faz pelo funcionamento da língua enquanto relação de línguas e falantes. Assim, ao tratarmos do sujeito como significado, constituído pela cena no acontecimento, temos que refletir sobre a contradição que caracteriza esse acontecimento promovido pela língua/linguagem e seu funcionamento.

Essa contradição se dá entre uma normatividade, práticas discursivas legitimadas sócio-historicamente na relação entre sujeitos, que constituem seus lugares na linguagem e a afirmação de pertencimento dos não incluídos nessas práticas, que também são sujeitos determinados pela língua e são caracterizados pela resistência e diferença dessa normatividade. Nas palavras do autor,

O político, ou a política, é para mim caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos. Deste modo o político é um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento. Mais importante ainda para mim é que deste ponto de vista o político é incontornável porque o

homem fala. O homem está sempre a assumir a palavra, por mais que esta lhe seja negada (GUIMARÃES, 2005, p.16).

De modo geral, dedicamos este capítulo para uma reflexão sobre o conceito de enunciação quando expomos o desenvolvimento do que se entende por este conceito no âmbito da Linguística. Primeiro pela definição de Benveniste e, depois Ducrot, para então observar o que traz Guimarães em seus estudos. Nesse sentido, a partir dessas considerações pudemos compreender a trajetória teórica do que constitui, hoje, sua teoria, à qual nos filiamos para as discussões desse trabalho: a Semântica do Acontecimento.

Vimos que Benveniste trata a enunciação como a língua posta em funcionamento pelo locutor, isto é, para ele, o sujeito toma a língua e a faz funcionar e, por isso apresenta uma concepção de sujeito homogêneo e único. Por outro lado, Ducrot na constituição de sua teoria de enunciação, a define como o “acontecimento histórico constituído pelo aparecimento do enunciado” (DUCROT, 1984, p. 168). Dessa forma, para ele, a enunciação é tratada como um acontecimento do enunciado e o sentido se dá pela representação da enunciação, feita pelo enunciado, que por sua vez é irrepetível.

Além disso, Ducrot estabelece o conceito de polifonia a partir dos estudos de Bakhtin (1963) e Bally (1932). E, portanto, para ele o sujeito é tratado como exterior à linguagem, não como centro do dizer e que é dividido na/pela enunciação ao incluir a questão da multiplicidade nos diferentes locutores e enunciadores, sustentando sua posição em relação ao sujeito de maneira diferente de Benveniste.

Essas diferentes formas de se compreender a enunciação no âmbito dos estudos linguísticos são importantes na medida em que contribuíram para o desenvolvimento dos trabalhos de Guimarães. Ao estabelecer diálogos, sobretudo com a Análise de Discurso, no que diz respeito à relação entre enunciação e discurso, assim como na relação da língua com a história como memória de sentidos, o sentido é pensado pela sua constituição histórica.

Em outro momento do desenrolar de sua teoria, Guimarães (2005) nos apresenta a relação entre enunciação e acontecimento. Essa relação se desdobra na definição da enunciação como o acontecimento de linguagem e que se relaciona ao funcionamento da língua, configurando o quadro teórico da Semântica do Acontecimento.

O acontecimento enunciativo, como vimos, constitui o tempo da enunciação. Para o autor, o acontecimento é um espaço de temporalização, isto é, o acontecimento é formulado pela questão da temporalidade, que se dá pelo presente que proporciona uma latência de futuro que por sua vez funciona por meio do memorável. É por causa dessa temporalidade que o acontecimento nunca é o mesmo. Portanto, essa teoria assume que a análise do sentido deve considerar que o que se diz é construído na e pela linguagem, isto é, a análise do sentido da linguagem deve localizar-se no estudo da enunciação, do acontecimento do dizer.

Ainda, vimos que Guimarães trata do conceito de político, que é fundamental para a concepção da noção de acontecimento e de espaço de enunciação, pois para ele o acontecimento de linguagem é político. Esse conceito refere-se à hierarquização dos sujeitos pelo funcionamento da linguagem enquanto determinados e identificados pelos espaços de enunciação, noção que nos é de muita importância para compreender a relação entre as línguas, mas que discutiremos com mais profundidade no seguinte capítulo, quando trataremos especificamente deste e outros conceitos para, por meio de nossas análises, compreender o funcionamento das línguas no espaço de enunciação em Foz do Iguaçu.

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