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Quando se busca compreender a identidade de um objeto – seja uma pessoa, seja veículo de comunicação, seja uma ideologia – e compará-lo a outro, o primeiro passo é

entender quais semelhanças os objetos possuem entre si, para somente depois buscar as diferenças.

No caso das revistas, ambas têm em comum alguns fatores, como o fato de as duas serem consideradas da grande imprensa; ambas serem semanais e ambas discutirem assuntos das mesmas áreas – mesmo que por abordagens diferentes – como política, economia, cultura, tecnologia e ciência. Há também a questão de tanto a Veja quanto a Carta Capital ter o jornalista Mino Carta como fundador (ou um deles, no caso da Veja).

A partir dessas semelhanças, as diferenças ficam mais evidentes. Mesmo num primeiro momento, uma delas é bastante clara: a Veja é mais discreta em relação à sua posição política – ao menos no momento em que se descreve, seja na missão, seja no mídia kit. Nos dois textos, o único momento em que se percebe que a revista tem uma posição a defender é quando aparece a seguinte frase: “os jornalistas de VEJA não se limitam ao conforto da imparcialidade e travam diariamente um debate intelectual com seus leitores”.

A Carta Capital, por outro lado, deixa mais clara a sua posição (à esquerda) em trechos como: "CartaCapital tem como objetivo proporcionar ao público uma visão analítica dos fatos e é isso que nos torna a principal mídia de oposição do país"; "Sempre pelo viés progressista, CartaCapital é referência em assuntos relacionados a política, economia e direitos humanos, sendo assim um contraponto necessário neste e em todos os momentos políticos" e "Além do time de colunistas, CartaCapital possui uma rede de parceiros compostas por vozes que nos ajudam a disseminar o discurso progressista e em prol de uma sociedade mais igualitária".

Outras diferenças tidas como relevantes incluem o fato de a Veja ter uma tiragem muito maior e atingir mais o público masculino (56%, ao passo que a Carta Capital tem 50%). É importante levar todos esses elementos em conta porque“a construção da identidade é tanto simbólica quanto social. A luta para afirmar as diferentes identidades tÊm causas e consequências materiais”. (HALL, 2000, p. 10)

3.4 O conceito de diferença

Antes de avançar para a discussão a respeito da diferença, é fundamental compreender que, sob a óptica dos Estudos Culturais, esse conceito não é tão simplista a ponto de significar meramente “aquilo que não é igual”. Muitos elementos devem ser

levados em conta nessa análise, como propõe Woodward ao apresentar uma lista com dez itens que devem ser avaliados quando se discute o que é diferença. Embora seja extenso, é importante que esse trecho esteja na íntegra, pois poucos autores apresentaram uma definição tão completa a respeito desse conceito:

1. Precisamos de conceitualizações. Para compreendermos como a identidade funciona, precisamos conceituá-la e dividi-la em suas diferentes dimensões.

2. Com frequência, a identidade envolve reivindicações essencialistas sobre quem pertence e quem não pertence a um determinado grupo identitário, nas quais a identidade é vista como fixa e imutável.

3. Algumas vezes essas reivindicações estão baseadas na natureza; por exemplo, em algumas versões da identidade étnica, na “raça” e nas relações de parentesco. Mais frequentemente, entretanto, essas reivindicações estão baseadas em alguma versão essencialista da história e do passado, na qual a história é construída ou representada como uma verdade imutável.

4. A identidade é, na verdade, relacional, e a diferença é estabelecida por uma marcação simbólica relativamente a outras identidades (na afirmação das identidades nacionais, por exemplo, os sistemas representacionais que marcam a diferença podem incluir um uniforme, uma bandeira nacional ou mesmo os cigarros que são fumados.

5. A identidade está veiculada também a condições sociais e materiais. Se um grupo é simbolicamente marcado como inimigo ou como tabu, isso terá efeitos reais porque o grupo será socialmente excluído e terá desvantagens materiais. Por exemplo, o cigarro marca distinções que estão presentes também nas relações sociais entre sérvios e croatas.

6. O social e o simbólico referem-se a dois processos diferentes, mas cada um deles é necessário para construção e a manutenção das identidades. A marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e a relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído. É por meio da diferenciação social que essas classificações da diferença são “vividas” nas relações sociais.

7. A conceitualização da identidade envolve o exame dos sistemas classificatórios que mostram como as relações sociais são organizadas e divididas; por exemplo, como ela é dividida em ao menos dois grupos de oposição – “nós e eles”, “sérvios e croatas”.

8. Algumas diferenças são marcadas, mas nesse processo algumas diferenças podem ser obscurecidas; por exemplo, a afirmação da identidade nacional pode omitir diferenças de classe e diferenças de gênero.

9. As identidades não são unificadas. Pode haver contradições no seu interior que têm que ser negociadas; por exemplo, o miliciano sérvio parece estar envolvido com uma difícil negociação, ao dizer que os sérvios e os croatas são os mesmos e, ao mesmo tempo, fundamentalmente diferentes. Pode haver discrepâncias entre o nível coletivo e o nível individual, tais como as que podem surgir entre demandas coletivas da identidade nacional sérvia e as experiências cotidianas que os sérvios partilham com os croatas.

10. Precisamos, ainda, explicar por que as pessoas assumem suas posições de identidade e se identificam com elas. Por que as pessoas

investem nas posições que os discursos da identidade lhe oferecem? O nível psíquico também deve fazer parte da explicação; trata-se de uma dimensão que, juntamente com a simbólica e a social, é necessária para uma completa conceitualização da identidade. Todos esses elementos contribuem para explicar como as identidades são formadas e mantidas. (HALL, 2000, p. 13 a16)

Conforme observado, quando se fala em identidade, imediatamente surge a ideia de grupos (políticos, sociais, étnicos, ideológicos, entre outros), já que é comum dividir as pessoas em categorias, de acordo com o que pensam, como se portam, quanto recebem em seus empregos, quais são suas crenças, etc. Isso ocorre porque, segundo Woodward:

Dizer ‘o que somos’ significa também dizer ‘o que não somos’. A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. (HALL, 2000, p.82)

Diante disso, quando se fala em identidade é comum buscar uma relação de dicotomia entre dois objetos comparados, o que pode, em alguns contextos, se tornar algo perigoso, já que quando posições opostas são evidenciadas, muitas vezes se coloca uma como certa e outra como errada.

A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre ‘nós’ e ‘eles’. Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo afirmam e reafirmam relações de poder. ‘Nós’ e ‘eles’ não são, neste caso, simples distinções gramaticais. Os pronomes ‘nós’ e ‘eles’ não são, aqui, simples categorias gramaticais, mas evidentes indicadores de posições-de-sujeito fortemente marcadas por relações de poder (HALL, 2000, p.82).

Nesse tipo de relação, como observa o filósofo francês Jacques Derrida, “as oposições binárias não expressam uma simples divisão do mundo em duas classes simétricas: em uma oposição binária, um dos termos é sempre privilegiado, recebendo um valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa”. (Apud, 2000, p.83)

3. 5 A identidade nos artigos

Nas críticas cinematográficas analisadas, alguns elementos de ambos os textos devem ser levados em conta no momento de pontuar as semelhanças e diferenças entre ambos, numa tentativa de tornar perceptível a identidade de cada um dos textos. Nessa

análise é fundamental lembrar que defender uma identidade é algo bastante árduo, já que “o processo de produção da identidade oscila entre dois movimentos: de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar a identidade; de outro, os processos que tendem a subvertê- la e a desestabilizá-la” (HALL,2000,p.84). Isso ocorre, entre outros fatores, porque:

Primeiramente, a identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato – seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos fazer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsciente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder. (HALL,2000,p.96)

Por conta disso, seria extremamente simplista e bastante incompleto do ponto de vista dos Estudos Culturais dizer apenas que o texto escrito pela crítica Isabela Boscov, da Veja, é neoliberal, ao passo que o escrito pelo crítico Pablo Villaça, da Carta Capital, é progressista. A análise cultural proposta vai muito além e observa cada elemento que compõe um objeto. No caso dos textos das revistas Veja e Carta Capital, a oposição mais perceptível entre eles é ideológica. Isso não ocorre por acaso, pois como lembra Hall, “o sujeito fala, sempre, a partir de uma posição histórica e culturalespecífica”.

Ele sugere que, embora seja construído por meio da diferença, o significado não é fixo, e utiliza para explicar isso, o conceito de différance de Jacques Derrida. Segundo esse autor, o significado é sempre diferido ou adiado; ele não é completamente fixo ou completo, de forma que sempre existe algum deslizamento. A posição de Hall enfatiza a fluidez da identidade. Ao ver a identidade como uma questão de ‘tornar-se’, aqueles que reivindicam a identidade não se limitariam a ser posicionados pela identidade: eles seriam capazes de posicionar a si próprios e de reconstruir e transformar as identidades históricas, herdadas de um suposto passado comum. (HALL, 2000, p. 28e29)

Sendo assim, embora as revistas Veja e Carta Capital tenham historicamente grandes divergências ideológicas, essa questão não será abordada de maneira profunda, pois interessa à pesquisa levar em conta, prioritariamente, os dois textos analisados. Há de se lembrar, contudo, a possibilidade de influência dos veículos de comunicação em seus colaboradores, no caso, os críticos de cinema, já que “os indivíduos vivem no interior de um grande número de diferentes instituições, que constituem aquilo que Pierre Bourdieu

chama de ‘campos sociais’, tais como as famílias, os grupos de colegas, as instituições educacionais, os grupos de trabalho ou partidos políticos”.

Todas as pessoas participam dessas instituições e exercem graus diversos de escolha e autonomia, “mas cada um deles tem um contexto material e, na verdade, um espaço e um lugar, bem como um conjunto de recursos simbólicos”.

O que a autora busca dizer com isso é que as pessoas podem ter comportamentos, ideias e posicionamentos diferentes, de acordo com o universo em que estão inseridas em determinado momento, como casa, trabalho e partido.

Embora possamos nos ver, seguindo o senso comum, como sendo a “mesma pessoa” em todos os nossos diferentes encontros e interações, não é difícil perceber que somos diferentemente posicionados, em diferentes momentos e em diferentes lugares, de acordo com os diferentes papéis sociais que estamos exercendo (HALL, 2000)

Esse argumento busca defender a ideia de que os sujeitos possuem diferentes “identidades”, que variam de acordo com situações, por conta das restrições sociais de cada local, já que “em um certo sentido, somos posicionados – e também posicionamos a nós mesmos – de acordo com os ‘campos sociais’ nos quais estamos atuando”. (HALL, 2000, p. 30 e 31). Assim, pode-se perceber que existe a possibilidade de os artigos não expressarem com exatidão os pensamentos de seus autores, mas sim o que consideram conveniente nas posições que ocupam – colaboradora da revista Veja e colaborador da revista Carta Capital.

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