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3 PERTENCIMENTOS SOCIAIS E CONSTRUÇÃO DE ESTILO DE VIDA

3.3 SENDO “ESTILOSA”

“Estilo é andar bem vestida!” (Fala de Ivanete)

Sahlins (2004, p. 193) coloca o sistema do vestuário como “um conjunto de regras para declinar e combinar as classes de forma-vestimenta, de modo a formular as categorias culturais”. Perceber, criar ou seguir um estilo é uma combinação de regras, formas e modos. Não me parece que a questão sobre ter ou não um estilo seja algo óbvio e de fácil construção pelas camadas populares. Embora o discurso sobre “ter um estilo” no campo da moda tenha alcançado tal público e ganhado força, arrisco-me a dizer que para ele a obtenção de um estilo está muito mais relacionada com o poder de consumo – um padrão adquirido e tacitamente reproduzido mais do que processado e construído.

Mas, o que é ter estilo? Segundo Gloria Kalil (2001, p. 13), profissional e consultora de Moda e Estilo:

Estilo é que faz de você única. É o seu modo de dizer ao mundo “sou singular”. Por isso mesmo, o estilo é mais do que uma maneira de se vestir: é um modo de ser, de viver e de agir. São suas escolhas particulares, suas preferências, desejos, humores e até mesmo suas fantasias. Estilo são seus modos, não as modas e os modismos. A moda é uma proposta da indústria. O estilo é uma escolha das pessoas. Embora possa parecer estranho, na verdade o estilo não tem muito a ver com a moda. Ela passa, o estilo permanece. [...] Mas ter estilo não se resume no mero ato da escolha. Tem que ser uma escolha proposital, informada, precisa. Senão, qualquer um teria estilo: “afinal, todos escolhem – de uma forma ou de outra – o que vão vestir, como vão apresentar, sua maneira de viver...”. Quem tem estilo faz escolhas de forma consciente, coerente e sistemática, com o objetivo de ser visto exatamente como planejou.

Para Connie, uma das informantes, ter estilo é ser “fashion”. Certa vez, em uma conversa, enquanto visitávamos uma feira de calçados, Connie, provando um modelo, disse-me: “O que você acha? Não sei se combina comigo...”. Aproveitei a oportunidade e emendei: “Porque não? Não é teu estilo?”. Inesperadamente, ela desatou a conceituar estilo (grifos meus):

Não sei se é meu estilo. Eu tenho estilo! Não sou estilosa como tu, mas eu gosto de coisas diferentes... Eu acho que estilo é ser “fashion”. Gosto

de ousar, de ser diferente das outras, usar umas roupas estilosas. Não me preocupo em combinar. Combinar cores nem tá mais na moda!

Nesse dia, fazia muito calor, era final de tarde e havíamos ido a uma ponta de estoque de calçados de uma empresa que estava para fechar, em Novo Hamburgo. A quantidade de calçados era imensa, estávamos apenas entre mulheres – eu, Connie, Maria Rejane, sua nora e Carmela. Cada uma pegou uma caixa, dessas de supermercado, e saiu em busca de modelos para provar. Os preços estavam realmente acessíveis, ficamos mais de duas horas num sistema de buscas, provas, amostragens e sucessão de opiniões. No fim, cada uma saiu com um calçado, à exceção de Connie, que pretendia levar um calçado mas acabou optando por uma bolsa, compra que ela justificou afirmando ser um produto diferente e “estar muito em conta” – na bolsa havia a etiqueta da loja com uma amostragem do preço antigo.

Em tempo, questionei se Connie não levaria nenhum calçado, já que havia provado tantos. Ela respondeu:

Tenho muitos calçados. Eu ando mais seletiva, vou pensar melhor... E, também, essa ponta vai durar mais duas semanas. Eu e Maria Rejane viremos mais vezes, muitas vezes! Mais pro final, aposto que vai ter coisa mais barata.

Carmela também tinha a intenção de voltar. Ela, que havia levado dinheiro para comprar um calçado e uma bolsa, acabou gostando de muitos calçados e de nenhuma bolsa. Durante as provas de sapatos, os modelos escolhidos por Carmela eram, significativamente, diferentes um dos outros – sandálias coloridas de saltos extremamente altos, tamancos de “saltão”, botas rasteiras, chinelinhos básicos, sandálias de salto mediano e outros modelos num estilo mais social, clássico, que ela disse servirem para usar no trabalho. A questão não era os modelos diferentes, mas, sim, o estilo de cada um, indo de um extremo a outro.

Resolvi olhar mais de perto a indecisão de Carmela. Ela provou os modelos que selecionara diversas vezes e nem assim parecia estar segura do calçado preferido. Calçava-os, caminhava, pedia opiniões, voltava às prateleiras e selecionava novos modelos. Em toda essa sequência de seleção e indecisão, eu não conseguia entender no que Carmela se baseava para fazer suas escolhas.

Suponho que ela ia pegando modelos ao léu, sem seguir nenhum critério visível. Restava claro que, mais que comprar um calçado ou outro, o importante mesmo era o ato de comprar.

Decidida a escolher um dos tantos modelos que havia separado, começou retirando alguns de salto alto, os modelos para trabalhar. Entre os selecionados, havia um tamanco de salto alto, uma sandália rasteira e uma de salto mediano, cheia de tiras, parecendo um modelo antigo, retrô. Eu seguia sem entender a seleção, até Carmela decidir levar o tamanco. Como todas estávamos à sua volta, resolvemos palpitar. Alertei-a de que aquele era o “pior” modelo, pois, devido ao salto, era ruim de caminhar e o modelo facilmente caia do pé. Carmela, decidida, respondeu: “Mas este está super barato, vou levar! Assim posso voltar mais vezes e comprar outros!”.

A sequência de fatos ora relatados, sobre compras de itens do vestuário, parecem fugir daquela que Kalil (2001) entende por estilo: “Estilo é o que faz você única [...]”. Não cabe aqui discordar ou concordar, apenas, numa comparação, refletir a questão de estilo proposta pela consultora de moda e pelas observações vividas em campo.

Primeiramente, o momento de compras com as três informantes fugia totalmente de um consumo por necessidade, quer dizer, de um consumo gerado por um objetivo direto, e, sim, apenas consumo pelo consumo – mesmo que este ato carregue outros e demais interesses. Então, por mais que ficasse claro que não era possível gastar o quanto e como quisessem, todas estavam ali para um momento de lazer, de luxo e de “puro” consumo. A sensação que me acompanhou era de que estar ali, consumindo e “provando”, significava fazer parte de algo maior – significava ter estilo, estar na moda e, acima de tudo, ter poder, afinal, elas “podiam” estar ali, escolhendo e comprando sem precisar.

A partir desse momento, passei a desnaturalizar ainda mais o conceito que carregava de estilo, que, aliás, vinha de Kalil (2001). Minhas informantes desconheciam completamente o conceito de estilo dado pela consultora de moda (uma especialista, portanto). O que elas sabiam era o quão importante é ter um estilo e, acima disso, que desejavam ter um. Algumas autoras – como, por exemplo, Kalil (2001) e Francini (2002), consultoras de moda e profissionais da

área, trazem em seus livros a definição de alguns tipos de estilos, como: moderno, clássico, básico, esportivo, romântico, entre outros tantos. Algumas defendem que é possível misturar até três estilos em um único look e acreditam que é o conjunto que define um estilo, não apenas as roupas (DIOS, 2007).

Essas caracterizações – de estilo mais esportivo, despojado ou clássico – não aparecem na fala de minhas informantes. É claro que, através de observação seria possível classificá-las como mais clássicas ou mais modernas, e assim por diante, conforme o código das especialistas. Contudo, é preciso analisar quais concepções de estilo são utilizadas nas práticas de consumo de moda dessas mulheres. Revistas, lojas e programas de moda investem na venda, em dicas e matérias por segmentações de estilos, o que significa que tais informações estão acessíveis. Ao observar as informantes em suas práticas, percebo que – por mais que tenham o acesso e possuam interesse em moda – suas percepções sobre o que é estilo e ter estilo fogem dos conceitos, das regras e informações dados por profissionais da moda e pela mídia.

O conceito de estilo apropriado por Connie, por exemplo, englobou questões que perpassam a relação estilo versus moda, mas, acima disso reproduz um discurso aplicado pela mídia de que “todos precisam ter um estilo”. Para Connie, o estilo está diretamente ligado à questão “fashion” e ao discurso de não seguir padrões (o que ainda será aprofundado, na reflexão sobre a expressão “diferenciado”).

A expressão “estilosa” me acompanhou por quase toda observação. Quando Connie fala “Não sou tão estilosa como tu”, vejo que sua percepção de estilo também se liga a fatores quantitativos. “Estilosa”, então, poderia ser a caracterização de alguém que tem mais estilo que outros. No entanto, em outros momentos do campo, pude ver que tal expressão era utilizada com o mesmo sentindo, mas com uma classe de tempo e lugar. Ou seja, alguém com estilo pode ter momentos em que é “estilosa”.

Essa percepção ficou clara em um dos momentos que conversei com Ivanete, uma convidada do referido aniversário infantil. Estava ao lado de Ivanete, moradora do bairro Liberdade e conhecida da família Corleone, enquanto o pessoal dançava. Minha intenção, como já disse, era “puxar papo” com as

moradoras, pois estava tentando aproximar-me. Conversamos sobre a festa, a decoração, o tempo e, entre um silêncio e outro, Ivanete me falou não estar num “bom dia”. Confidenciou-me que estava com alguns problemas familiares e, por isso, não estava muito disposta (eu a havia convidado para dançar). Então, deu explicações gratuitas sobre sua vestimenta: “Quando a gente não tá bem, nada está né!? Não tive inspiração nem para me vestir, estou bem básica”. Ivanete usava um blusão básico de gola alta marrom, calça jeans, bota por cima da calça e cabelo amarrado. E completou: “Quando eu tô assim, não consigo pensar em algo diferente, em uma roupa mais estilosa, sabe?! Aí a gente vem do jeito que dá.”

Pezzolo (apud DIOS, 2007, p. 26) coloca que “o estilo tanto pode ser resultado do nosso meio e contexto de vida, como pode ser aprendido”. Fica perceptível, principalmente pelas expressões utilizadas – “fashion”, “diferenciado”, “estiloso” –, que existe um sentido de estilo que emerge junto ao modo de vida deste grupo.

Nesta pesquisa, o grupo social enfocado pertence a um segmento social de origem popular que está em um momento de mobilidade econômica e social. Featherstone (1995), ajuda a percebermos o que se passa:

As novas classes médias (Burris, 1986), especialmente os setores que Bourdieu (1984) designou como “novos intermediários culturais”, sentem- se fascinadas com os estilos de vida dos artistas e dos intelectuais e manifestam um interesse generalizado pela estilização de suas vidas. Seu estilo de vida focaliza intensamente a identidade, a aparência, a representação do eu, o design da moda, a decoração; tempo e esforços consideráveis precisam ser gastos no desenvolvimento de um senso estético flexível, distintivo e capaz de se manter a par da pletora de novos estilos, experiências e bens simbólicos que a cultura de consumo e as indústrias culturais continuam a produzir (FEATHERSTONE, 1995, p. 151).