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Sobre Erico Verissimo, Carpeaux afirma, em “Erico Verissimo e o público46 que o autor é “por definição, um narrador”, “que sabe narrar acontecimentos inventados como se fossem realmente acontecidos” (CARPEAUX, 1972, p. 37). Além disso:

Uma nova fase do trabalho de Erico Verissimo começa com O Senhor Embaixador: o romancista enfrenta a realidade latino-americana de hoje com realismo corajoso e assumindo suas responsabilidades. Na América Latina, talvez não seja, hoje, possível literatura diferente; e o público reagiu devidamente: em breve, 72.000 exemplares. (Ibidem, p. 37).

Para o teórico, o interesse do leitor - de todos nós leitores, afinal - é fundamentalmente a leitura da ficção, e daquele tipo em que se pareça “de qualquer maneira com a realidade de destinos com que o leitor possa identificar-se”, explicando, assim, o enorme público de Erico. Mais que servir ao papel de divulgador da literatura brasileira, o autor também foi responsável por romper os muros levantados pelas incoerências avaliativas entre a literatura nacional e a sul-rio-grandense, desde Simões Lopes Neto.

Um crítico suíço explicou o sucesso permanente do romance realista francês do século passado pela qualidade dupla dessa ficção: como obras literárias e como documentos históricos. A sociedade que as produziu e que refletem já desapareceu; mas os homens de hoje ainda continuam marcados pela herança dela. (Ibidem, p. 38).

É justamente essa necessidade de reconhecer suas histórias e seus pertencimentos que Guilhermino César47 reafirma, ao abordar o tom social dos romances de Erico, principalmente naqueles publicados após O Tempo e o Vento, que é o caso, aqui específico, de O Senhor : “a

46 In: CHAVES, Flávio Loureiro (org.). O contador de histórias: 40 anos de vida literária de Erico Verissimo.

Porto Alegre: Globo, 1972.

47“O Romance social de Erico Verissimo”. In: CHAVES, Flávio Loureiro (org.). O contador de histórias: 40

República do Sacramento compendia toda a América Latina, sua imaturidade política, os ardis diplomáticos, as ditaduras constitucionais e as outras, o jogo escuso das chancelarias, os idealismos frustrados, os instintos à solta” (CÉSAR, 1972, p. 53). Todos os personagens encontram-se perdidos na órbita de uma República marcada pela ditadura de um governo cujo líder foge no instante em que estoura a revolução, ou com um representante que se entrega aos prazeres do luxo e das belas mulheres, no mundo da embaixada em Washington, afinal, “o homem, na ficção de Erico Verissimo, está certo de que não pode grande coisa; é um prisioneiro. Sua desforra é viver com intensidade; os sentidos existem - e são gulosos” (Ibidem, p. 54). Na obra,

Teve aqui o romancista a ocasião de retratar um grupo de pessoas reunido em certo ponto do planeta, Washington, numa embaixada da hipotética República do Sacramento; e o curioso é que todas elas se irmanam constrangidas por um estranho vínculo - a imensa solidão moral em que se reconhecem mergulhadas. Pois esse livro não é outra coisa senão isto: o rumor abafado de vozes divergentes. Há um fio comum a aproximar tais vidas, mas a natureza de cada uma abriga algo que as impele ao desajustamento, ao egoísmo, à solidão. Mesmo as mais serenas, as mais resignadas, enfrentam penosamente a luz cotidiana. O romance sintetiza uma comédia de erros. Sua atmosfera opressiva não resulta, porém, da falsidade inerente aos meios diplomáticos. Caricaturá-los simplesmente seria demasiado fácil para um escritor da agilidade de Erico Verissimo, e a tanto ele se recusou com finura. Não. O que dá sentido ao quadro são os complexos, as frustrações, os desatinos de cada um; entre as quatro paredes da vida íntima, apesar do pitoresco do seu tipo, é que uma personagem como Alvarado, o embaixador, se levanta - admirável criação de ficção, uma das mais bem acabadas, aliás, de toda galeria do autor rio-grandense. (Ibidem, p. 55-56).

O romance aborda não só a situação ditatorial da ilha latino-americana como também as relações de embate político que só os ambientes internos do poder podem revelar. Temos a figura do ditador como mera caricatura, como também na obra de Asturias, para revelar, na realidade, a esperança que povoa os personagens por uma melhor justiça social. Também um manifesto político, sem deixar de ser literária, a obra de Erico revela as dimensões do poder e da opressão, num mundo marcado por indicações e benefícios propiciados a poucos, em detrimento da pobreza e à exclusão de toda a maioria. Porém, essas facilitações encontradas pelos personagens abrem o abismo entre o que representam e o que realmente são, o que marca a sempre existente solidão de todos, seja na embaixada, seja a qualquer um que esteja ligado à vida política desse país. “Em nenhum de seus livros, como em O Senhor Embaixador, os solilóquios morais chegam a um clímax tão doloroso. A embaixada fervilha de gente, mas todas essas criaturas estão muradas em seus próprios problemas”. (Ibidem, p. 60).

A preocupação com as questões de igualdade encontram-se nos discursos, principalmente proferidos por Pablo Ortega, ou nas ações, como as de Leonardo Gris e Gabriel Heliodoro, apesar de em situações e em momentos distintos. Em primeiro, Ortega, ao opinar sobre a dissertação de Glenda Doremus, cuja temática era a interpretação da República do Sacramento, indica a superficialidade social nas linhas dissertativas da amiga, além de um toque irônico sobre sua condição de norte-americana e estrangeira:

Como boa americana alimentada desde a infância por histórias de bandidos e mocinhos, você procurou heróis absolutos e bandidos absolutos na história do meu país. A coisa não é tão simples assim. Você pintou seu quadro com cores primárias, em grandes chapadas. O resultado foi um cartaz sem matizes. (SE, p. 129).

Em uma das conversas entre Pablo Ortega e Leonardo Gris, as faces dos dois amigos se revelam por meio das vivências de cada um, e seus papéis representativos do meio em que vivem. Gris é professor exilado e tem por objetivo central a denúncia da realidade de Sacramento nos espaços de fala que possui com o meio acadêmico e de intelectualidade.

Na sua opinião, Dr. Gris, que é que faz um bom revolucionário?

– Como dizia aquela personagem de Malraux, o bom revolucionário é um

maniqueísta com gosto pela ação.

– E como é que o senhor se avalia como revolucionário?

– Grau três, no máximo, Pablo. A verdade é que nós, os chamados intelectuais,

seremos sempre péssimos homens de ação. Por alguma razão, Stalin detestava esse tipo de gente. Repelimos os absolutos políticos e filosóficos. Não aceitamos a ideia de que as coisas só possam ser pretas ou brancas, acreditamos nos matizes, na complexidade dos homens e de seus problemas. Tudo isso são pedras de tropeço no caminho da revolução, coisas que enfurecem os homens de pura ação revolucionária. E ainda, creio, é uma personagem de Malraux quem diz que muitas pessoas procuram encontrar no Apocalipse a solução para seus problemas individuais... (SE, p. 76).

A figura do jovem intelectual Ortega em SE48 é a própria angústia daqueles que conhecem a realidade da maioria, apesar de não vivê-la, e culpa-se por essa situação de privilegiado. Diz Ortega, por exemplo:

Não tenho feito nada. Sinto-me vazio. Ando inquieto, desconfiado das palavras. Tomo aspirina e tranquilizantes como se essas drogas pudessem resolver meus problemas. Quanto ao mais, continuo obedecendo a um controle remoto manejado por uma operadora habilíssima, Doña Isabel Ortega y Murat, que usa um aparelho velho como a vida, mas muito eficiente: o coração humano, que no caso acontece ser o de meu próprio pai. (p. 74).

Em SP49, um estudante, no entanto, vive o contrário: preso, ainda tem a indignação da luta e a esperança da revolução. Nesses sentidos diferentes, as duas personagens, em medidas certas e representado os ideais de seus autores, revelam, às suas maneiras, as indicações de

48 Sigla para O Senhor Embaixador. 49

que está nos jovens, nas futuras gerações, a força necessária para a mudança de seus contextos: “- Vamos rezar... Mas o estudante se negou:– Que história é essa de rezar! Não devemos rezar! Vamos tratar de quebrar essa porta e ir para a revolução!”. (Ibidem, p. 200).

Com Bill Godkin, no entanto, temos a clareza de todas as ações. Outro dos personagens solitários traz na escrita dos testemunhos dos ocorridos em Sacramento a marca da crença por ideários de melhoria. Romance dentro do romance, ele é responsável pela crônica do fuzilamento de Gabriel Heliodoro, e aborda a nova realidade da ilha após a nova revolução, que põe em jogo o novo domínio, liderado por Barrios e Valencia. Diz-nos ele: “um homem só pode ser natural, espontâneo e livre depois que, chegando à casa ao anoitecer, ao desfazer-se da máscara que foi obrigado a usar nos seus contatos sociais”. (SE, p. 103).

No referido texto, a ser publicado Amalgamated Press, a descrição do ambiente revela muito do caráter da população sacramentenha:

Imagine-se mais de cinco mil corpos humanos em plena combustão, amontoados num hall com um teto de zinco que, à medida em que o sol sobe, vai ficando quase tão quente como uma chapa de metal incandescente. Não creio que haja no mundo outra língua que se preste melhor que o espanhol do Caribe para criar um pandemônio verbal em grandes assembleias populares.

Centenas de pessoas entraram nesse recinto às sete da manhã, para poderem conseguir um bom lugar. Trouxeram seus farnéis: galinhas e carnes assadas, sanduíches, pastéis, linguiça, presunto, queijo... [...]. Os que não conseguiram assentos estão de pé nos corredores, ou sentados no chão junto das paredes - homens, mulheres e até crianças, uma rica coleção de caras lustrosas de suor, em sua maioria morenas e de negros olhos vivos e apaixonados. E enquanto o

“espetáculo” não começa, eles conversam, comem, cantam, fumam, cospem,

mascam chicle, assobiam, soltam vivas ou morras, rompem em súbitas vaias ou aplausos, cujos objetos nem sempre consigo descobrir, e principalmente batem pés, exigindo que a sessão comece. O calor parece tornar o ar espesso e gorduroso e os muitos ventiladores que giram e zumbem neste vasto salão, nada mais fazem que misturar num pot-pourri bárbaro todos estes cheiros - suor humano, frituras, alho, cebola e tabaco. (SE, p. 374).

Nas páginas de Erico, somos representados como aquilo que a sociedade manipula e espera e, na inconstância do que somos, buscamos o que queremos ser. Afinal de contas, se há tantas máscaras a serem usadas, também há tantos outros rostos a serem descobertos. De outro lado, aprendemos que a realidade muda, segundo aquilo que estamos sendo. Jovens, como Ortega, pensam em aliviar culpas pela revolução. Será que essas realidades, aparentemente tão verdadeiras e cheias de argumentos, são só constatações vagas do presente? Se Gris tem o sentimento de revolta mais contido, é porque só o tempo e as experiências nos formam e nos dão segurança quanto ao que verdadeiramente cremos?

Mais do que rogar a Deus pela fé perdida, como o personagem Dr. Molina, estamos fadados a pedir, incessantemente, que nossa esperança por uma sociedade mais justa tenha a chance de existir e prosperar. O Senhor Embaixador não só a leitura de um contexto social,

como assinalado pelos críticos, mas, e talvez o mais importante, como o espaço de reconhecimento de tantas condutas individuais que interagem e instabilizam as identidades pessoais. Elas se refletem na sociedade, como elementos simbólicos, contribuindo seja para o reforço do habitus dominante, seja pela perspectiva de outras possibilidades. Mas, sem dúvidas, são elas representativas de cada um de nós, porque, afinal, somos complexos: e são essas realidades literárias as que povoam nossos desejos de mudança.