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CAPÍTULO 2- A LITERATURA COMO BRECHA: A CONSTRUÇÃO DE UMA

2.2 A busca de uma narrativa histórica complexa

2.2.4 Sensibilidades ou A linha da costura

Chegamos ao fio que contorna todas as entradas anteriores lançadas pela literatura. A sensibilidade foi deixada por último por estar na verdade presente todo o tempo nesse texto, afinal a dimensão escritor do pesquisador, a linguagem, a imaginação e a arte só conseguem ser inteiras e vibrantes quando há sensibilidade para olhar, para saber praticar a força criativa.

A literatura tem em si esse saber secreto de nos atingir em cheio e transformar internamente seu leitor, esse segredo é trocado entre o texto e o eu que lê, um caminho que se abre e o abraço dos significados e das emoções deixa a boca vazia de palavras, mas o coração cheio, sentido esse que a linguagem dura não saberia dizer. Essa capacidade de atingir o além- lógica, o além-consciente, traz a dimensão poética da vida, um pedaço nosso tão importante quanto o lógico e o prosaico.

A liga do livro literário está no campo imaginativo, vivo, louco e poético, misturado às vivências e ao seu tempo. Os vestígios que precisam ser escavados, selecionados e reorganizados até tornarem-se a narrativa histórica também se envolvem com vivência e mágica. Sapiens e demens são interligados pela afetividade, pelas sensibilidades (MORIN, 2012). Trabalhar esse diálogo e organizá-lo faz parte da sensibilidade de dar corpo a um passado possível.

Desta maneira, objetos sujeitos e acontecimentos são sentidos construídos não somente pelas narrativas que tentam localizá-los, identificá-los, mas também pela capacidade de sensibilidade do pesquisador. Sensibilidade de saber que aquilo que pesquisa ou escreve, mais do que um simples amontoado de dados, deve servir para que o outro, enquanto dimensão ontológica atravesse, assim como Alice, de Lewis Carroll, o subterrâneo, não como dimensão desprezível, mas como etapa importante para passar a outras experiências(ADAD; SOUSA, 2013, p. 51).

Esse procedimento exige do pesquisador sentir o tempo em que está imerso, percorrer o espaço a procura de pistas, perguntas, histórias, fotografias, cacos do passado escondido, guardado em segredos de família. É preciso sensibilidade para encontrar os caminhos de uma história e poder remontá-la em uma sequência lógica, mas que não perca o brilho, pois vida é móvel, é força que pulsa e sua narrativa deveria sim poder demonstrar um pouco disso. O historiador Antônio Paulo Resende (2007) nos dá algumas trilhas a percorrer:

Dialogando com a literatura, o historiador mantém o espaço do maravilhar- se e do encantamento, sua narrativa não fica restrita à escravidão das provas. Acultura é feita também com toques, olhares e afetos, e não somente com o aço e o cimento das metrópoles. [...] A palavra desencantada é o anúncio da morte da narrativa. Quem gostaria de viver a vida sem poder contá-la? Amais doce ilusão e o mais amargo desamor só existem porque, um dia, os nomeamos e mesmo com hesitações, construímos as suas narrativas, entrelaçando lembranças com esquecimentos, ouvindo os versos silenciosos de um anjo que quis ser gauche na vida. (RESENDE, 2007, p. 7-8)

Essa sensibilidade tem a ver com estar conectado com a vida ao se pesquisar, ao se escrever sobre uma pesquisa; tem a ver com um exercício de estar presente e perceber as pistas que se movem discretamente pelo tempo. Conseguir realizar o trabalho permitindo-se sentir o cheiro dos lugares, usar a intuição para dar passos rumos a novos vestígios, o trabalho em si do historiador exige dele, a todo o momento, sensibilidade para unir os pedaços soltos que chegam, conseguir desenhar o caminho entre eles e produzir uma narrativa que como resultado não escape dessa aventura, que essa conclusão esteja marcada pela palavra que dança e por todas as entradas possíveis que comentamos até aqui, fazendo assim uma produção de conhecimento honesta com a vida.

A história tem muito a aprender com a sensibilidade literária capaz de transmitir vestígios do imaginário do tempo em que está inserida sua escrita, essa porta paralela entre a realidade e o imaginário é um caminho entre nossas duas metades (sapiens – demens). “É preciso considerar um livro, por mais medíocre que seja, não apenas um objeto, mas a própria transpiração do espírito dum homem” (MENDES, 1994, p.852). O poeta avisa que há mais de um homem em sua escrita nesse objeto que guarda a narrativa, há nessa tarefa de escrever suor e lágrimas, essa sensibilidade e mergulho torna o trabalho de escrever dignificado, transforma uma simples informação em componente do ser em sua profundidade.

Além da escrita em si, a sensibilidade, como já foi citada, é essencial para o desenvolvimento de qualquer pesquisa, é na caminhada que pressentimos o próximo passo, nas viagens pelos arquivos, sentindo a linguagem das manchetes tão distantes da nossa apesar dos curtos anos, nas entrevistas que tentam vasculhar uma lembrança que só diz o que escolheu guardar, a busca de outras vozes, os cheiros doa livros já riscados de tantas mãos que tiveram que fazer a mesma peregrinação em bibliotecas. É preciso certa maleabilidade e maciez das mãos para colar fragmentos nessa busca incessante de tentar ter flash de “como foi”, ao mesmo tempo é preciso ser frio, ter garras cortantes para delimitar e pôr um fim ao objeto, tentando dominá-lo a um tamanho mensurável. É preciso, eu diria, muito preparo

emocional para essa aventura e a necessidade de achar paz no turbilhão de emoções sua e desse outro que é seu alvo.

A sensibilidade que é capaz de nos tocar nos livros de literatura é um caminho para tocar o leitor e convencê-lo do resultado de nossa pesquisa, como disse Durval Muniz Albuquerque (2007) é uma invenção do passado, costurando nosso percurso pela cidade, pelos papéis, pelos outros, para tentar dizer como os vestígios apareceram para mim, é preciso engrandecer o leitor e não matá-lo, é preciso envolvê-lo para que nossa pesquisa possa convencer que o percurso até aqui chegou o mais próximo possível do que pode ter sido.

[...] é preciso que as zonas de sombra, de escuridão, existentes na alma humana também sejam exorcizadas pela narrativa histórica, assim como pretende a Literatura, em sua grande medida, ao tentar captar o homem em seu devir, em sua busca incessante por humanidade. Cartografar estas nuances rizomáticas é escrever de forma que os sentimentos sejam vistos e escritos como possibilidades que se articulam pelo meio, pois é pelo meio que a vida ainda, ganha velocidade e potência (BRANDIM, 2009, p. 10).

Dessa maneira, a narrativa que se coloca próxima desse caminhar da pesquisa e que é capaz de trazer luz às zonas esquecidas, como a solidão, a tristeza, as incertezas, é capaz enfim de pôr vida nas suas entrelinhas. A história tem essa tarefa de olhar o humano nos acontecimentos, mapear os fatos incluindo suas peculiaridades, percebendo as rupturas, as emoções, indo também no que não é dito, nessas sombras que contornam a luz de determinados fatos, escolhas. Em busca de tornar a narrativa histórica sensível é possível nos inspirarmos na literatura e pôr mais humanidade na história.