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“Pode-se até presumir que ele foi um homem alegre, faceiro, que desconhecesse a sombra da amargura que lhe anuviou a eternidade. Apenas enquanto espírito, ao rever sua vida, encontrou um novo sentido para a existência humana. Ele, que sempre vivera dominado pela sensualidade, descobriu que havia uma vida eterna, além da matéria”67.

O brasileiro Antenor Salzer Rodrigues trabalhou Machado de Assis no livro “Personagens e Destinos”, de que o parágrafo acima faz parte. A sua visão de Brás Cubas como um “devasso em vida”, a sua ideia de que “é a luxúria a sua [do livro] personagem principal” não coincidem com a nossa. O psicólogo refere-se à “recolta de efémeros gozos sensuais, de prazeres fugazes, nos quais ele resumiu a sua vida”68, enfatiza o hedonismo dominante em termos que não subscrevemos. Tampouco concordamos com a interpretação do vaticínio da Natureza, no “Delírio”: “Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada”.

Pode-se tomar como boa – e literal – a acusação da Natureza quando esta lhe chama “grande lascivo”? Afinal, o que gozava ele em vida?, qual era o seu supremo prazer?

Apesar da importância da dimensão sexual, ela não é central ou protagonista. Pensamos que a melancolia ocupa mais esse lugar do que a luxúria. Em última instância, é a melancolia que prevalece sobre o ímpeto, amarfanhando-o. É ela que o impede de prosseguir o plano de casar e ter filhos, fazer uma carreira política e conquistar a glória. O foco nítido, a determinação que lhe falta são em muito originados pela doença de que sofre.

Não só num plano simbólico, assistimos a uma frustração do desejo. É consumado o desejo sexual num plano imediato, com várias mulheres e em diferentes fases; todavia, o desejo que exprime uma atitude vigorosa em relação à vida acaba sendo gorado. O ímpeto que o faz reerguer-se após a conversa com o pai, a parte de si que aceita o projecto do casamento e da carreira política, é um ímpeto sem direcção e volúvel.

67 Rodrigues, Antenor Salzer, Machado de Assis, Personagens e Destinos, Rio de Janeiro, Bom Texto Editora

e Produtora de Arte, 2008, p. 128

Numa outra linha de raciocínio, apoiamo-nos em Roberto Schwarz, no capítulo dedicado a Eugénia no livro Um Mestre na Periferia do Capitalismo, para contrariar a posição defendida por Antenor Salzer Rodrigues. Segundo Schwarz, a pulsão sexual acaba relegada para segundo plano em função de uma organização social a que se obedece.

O que faz Brás Cubas recusar Eugénia, não é tanto o facto de ser coxa, mas sim o ser bastarda e sem posses. Diz assim: “Aprecia a dignidade da menina, superior ao nascimento irregular e à situação precária, e corre o risco de ‘amar deveras’, quer dizer, de igual para igual, e casar. Ao mesmo tempo sente cócegas de fazer um filho natural à rapariga mal nascida.”69 Mas depois recua, sobrepõe-se o escárnio, um “festival de maldades” no qual, por exemplo, são feitas trinta alusões em poucas páginas. “Brás está ao pé de Eugénia, que está ao pé dele, além de haver uma coxa de Diana e uma Vénus Manca, bem como um número de pés propriamente ditos, botas, sapateiros, calos, pernas que manquejam, e, por fim, uma tragédia humana que pode ser pateada.”70

Brás não aguenta a humilhação social – o “ridículo”, nas palavras de Eugénia – que um tal casamento representaria. Ela entregava-se-lhe e ele punha os olhos “em 1814, na moita, no Vilaça, a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem...”71

É a sua situação de classe, acostumada à prepotência, é o seu estatuto de oligarca que tudo pode que resolve a equação que Eugénia apresenta.

Resolve descendo, usando o álibi de que é preciso obedecer a duas vozes. Uma é misteriosa, surgida dentro de si, que tem origem no terror e na piedade. A outra é do pai, e era justo obedecer ao pai, ao pai que havia dito: “Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios”. E assim descartando culpas. “... a lógica e o desfecho do episódio fixaram-se em função de inferioridades sociais, e a imperfeição natural superveniente não afeta a marcha da situação. Não obstante, será ela, a inferioridade física, o pivô das cogitações do moço. Este despejará sobre a deformidade natural os maus sentimentos que lhe inspira o desnível de classe, e, mais importante, verá a iniquidade social pelo prisma sem culpa e sem remédio dos desacertos da natureza”72, sintetiza Schwarz.

Na mais bondosa das leituras, fazendo de Brás uma vítima, diríamos que é a Natureza a metamorfosear-se de Pandora, a escarnecer dele, e a postar-lhe no caminho um objecto de desejo que tem uma marca intransponível. Na leitura de Schwarz, reconhecemos nele um sujeito fraco, que disfarça a torpeza e se submete à ordem social. Em nenhuma delas vemos o

69 Schwarz, R., Um Mestre na Periferia do Capitalismo, p. 86 70 Schwarz, R., Um Mestre na Periferia do Capitalismo, p. 96 71 MPBC §XXXIII

sensualista que descobre depois de morto a relevância do espírito sobre a matéria. Nem vemos um ímpeto sexual predominante. Existente, ele é engolido pela rigidez das convenções, pelo interesse. Recolhe ao casulo. Além do mais, a consumação da relação sexual faz com que Eugénia deixe de ser um objecto do seu desejo, mantido com determinação.

Surpreendera-o nela a “compostura da mulher casada” que até lhe “diminuía um pouco a graça virginal”. Imaginava, no período em que a cobiçou, que voava no seu cérebro “uma borboletinha de asas de ouro e olhos de diamante”73. Tudo naquela presença feminina cintilava. Era a encarnação de um desejo borbulhante, da mocidade em acção. Mas logo a seguir surge no quadro D. Eusébia, que arrasta com ela, como uma sombra, uma borboleta negra. “ – Tesconjuro!... sai, diabo!... Virgem Nossa Senhora”, diz a mulher.

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