• Nenhum resultado encontrado

RELAÇÕES DE GÊNERO, VIOLÊNCIA, MOVIMENTO DE MULHERES E FEMINISMO NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO

2. Discursos de autoridade e violência de gênero

2.2 Sentença poética

Um processo julgado em 1993 recebeu atenção especial da mídia, tornando-se um acontecimento publicado pela Revista Oeste. A sentença publicada na Revista ocupou grande parte da página aventando um estatuto de verdade, uma vez que se tratava de uma sentença de uma autoridade jurídica. Porém, diferente de outras sentenças, esta era poética, ou seja, um juiz de uma vara criminal recorreu aos seguintes versos para condenar o sedutor de uma menor:

Com a devida licença, que a defesa me concede, o delito cá narrado, restou muito bem provado. A defesa paciência, seu protesto não procede! Virgem era LMB, 15 anos recatada. O namoro consentido, casamento

256 Idem, p. 92. 257

Revista Oeste . Sentença poética. n. 79, Fev. 1993, p. 35.

258 No artigo 220 do Código Penal em vigor no período, definia-se rapto consensual como: Se a

raptada é maior de 14 (catorze) e menor de 21 (vinte e um) e o rapto se dá com seu consentimento. No novo Código Penal este artigo foi revogado.

prometido, doce e cheia meiguice, teve a vontade viciada. 259

Outra parte do poema segue na matéria em destaque, com outra cor de fundo, e o símbolo da justiça na cor branca (a balança) com o título: A decisão e logo abaixo do lide Eis alguns trechos do despacho

do juiz:

No processo está provado Pelo laudo pericial Com quem ele namorava, Que L. se chamava, Claudiomir, apaixonado, Teve conjunção carnal O conjunto probatório, Documentos, confissão, Testemunhas e perícia, Tudo isto dá notícia, Durante o contraditório, Do crime de sedução [...]

Assim sendo, eu lhe dou Um ano de reclusão, Que é o castigo merecido Pelo crime cometido. Este pouco assim ficou Face à sua confissão 260

O crime narrado em versos inicia com o namoro, segue com a gravidez, o parto e, por fim, o crime de sedução: “No início de 1990 L. M. B. engravidou e deu à luz a um menino.[...] Ao sabê-la já parida,/ Claudiomir se escafedeu.” 261 Nesta matéria, consta apenas uma parte do

poema.

Para Foucault, os poemas sobre os crimes em panfletos do século XIX, em geral, apresentavam duas partes. Na primeira, a narrativa era objetiva e anônima, e a segunda composta de lamento do criminoso. No crime cantado, o criminoso tomava a palavra para

259 Revista Oeste. Sentença poética. n. 79, Fev. 1993, p. 35. Esta estrofe do poema assim está

publicada na revista.

260 Idem, ibidem. Optei em manter estas partes do poema assim como estão publicadas na

revista.

lembrar o crime, tirava ensinamentos, exprimia remorso e apelava para espanto e piedade. O autor aponta para algumas características dos poemas:

Uso da primeira pessoa, a princípio, com versificações e indicação às vezes da melodia. O crime é cantado; ele é destinado a circular de boca em boca; [...] O criminoso confessa aí sua culpa; ao contrário, proclama-a; pede para si o castigo que merece; retoma por conta própria uma lei da qual aceita os efeitos [...] 262

Embora um século separe esses folhetos dos impressos analisados, aqui é o juiz que canta o crime na primeira pessoa. Porém, ao contrário dos versos do criminoso que confessa a culpa, o juiz destaca a condição da vítima e a punição para o acusado. O sujeito falante do século XX é a justiça que invoca a memória do processo e sua decisão. Neste processo, o sedutor foi condenado a um ano de reclusão, mas foi beneficiado pelo direito ao sursis (suspensão condicional da pena) por ser réu primário. Os versos da decisão judicial revelam que o crime foi cometido pela paixão.

No processo em versos, o juiz associa honra e vergonha como sinônimos, pois entende que há uma preocupação com a reputação da vítima pela família. “Aos pais da adolescente não sobrou outra alternativa senão processar o Casanova.” O sentimento de vergonha pela desonra da filha se pautava no reconhecimento público, mas também ganhava expressão no medo ao se expor a comentários e críticas. Nestes versos, a conduta punida pelo juiz poderia restabelecer em parte a reputação da vítima. Para o acusado e a vítima, os modos de conduta eram diferentes, pois para a mulher a perda da pureza sexual era desonrosa, mas não para o homem. 263 Certas condutas são honráveis para ambos, mas a honra é uma virtude de um sexo ou de outro. Assim obrigava-se o homem a defender a honra de sua família e uma mulher a conservar sua pureza. Para Pitt-Rivers, a honra de um homem é geralmente identificada, entre outros aspectos, pela pureza sexual de suas mulheres: mãe, esposa, irmãs, e filhas.264 Segundo a Revista, L.

262 FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 2003, p. 218-219.

263 PITT-RIVERS, J. Antropologia del Honor: o politica de los sexos. Barcelona: Critica

editorial, 1979, p. 44. Veja-se também CALFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro1918-1940. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2000.

era moça virgem, recatada e de bons costumes e assim buscava-se na fisiologia e na moral a base para a denúncia e para a decisão judicial. A desonra de L. poderia ser reparada pela justiça através da prisão do namorado. A decisão judicial estava ancorada numa noção de vítima ideal265, pois muitos agentes do sistema jurídico compartilhavam uma visão feminista sobre as mulheres como frágeis e vítimas da dominação masculina.

Em outras matérias e notícias que dramatizam as ações de mulheres que tentaram resistir a situações de violência, os atos podiam ser justificados quando era abalada determinada ordem social, bem como a hierarquia entre os gêneros, como veremos a seguir no assassinato de Cenira e na violência contra Maria

3. O corpo estendido e os embates de autoridades na violência de