• Nenhum resultado encontrado

O SENTIDO INSTRUMENTAL DA TÉCNICA

No documento 2017RaislaGirardiRodrigues (páginas 37-39)

3 A DUPLA SIGNIFICAÇÃO DA TÉCNICA

3.1 O SENTIDO INSTRUMENTAL DA TÉCNICA

Em 18 de novembro de 1953, Martin Heidegger proferiu, no Auditorium Maximum da Escola Superior Técnica de Munique, a conferência A questão da técnica, em virtude de um ciclo de conferências promovido pela Academia Bávara de Belas Artes, e que um ano mais tarde passaria a ser um texto integrante do III Anuário dessa Academia. Ele inicia a conferência pondo em voga a própria palavra “questão”. O filósofo expõe a importância da pergunta; não pelas denominações e respostas dela provindas, mas sim, pelo caminho que o questionamento possibilita construir. Esse caminho a que ele se refere é o do pensamento, pois pensar não é necessariamente tão óbvio quanto se imagina, e necessita ser constantemente revisitado e compreendido.

O pensamento recai na linguagem, pois são os termos da linguagem que guardam em si os múltiplos sentidos que as palavras contêm, ou seja, as diversas possibilidades do pensamento e da compreensão.

A linguagem, então, tem por função preservar, no sentido de cuidar, proteger e zelar pela mensagem do Ser. Existir, como ser-no-mundo, para o Dasein significa estar aberto ao Ser, escutá-lo, compreendê-lo e revelá-lo através da linguagem. A linguagem é o advento do próprio Ser que se clareia e se esconde. Ela tem um papel desvelante. A linguagem se manifesta como o lugar da verdade do Ser, como a “casa do Ser”. Ela abriga, mantém e preserva o Ser ao qual pertence. (COCCO, 2006, p. 50).

Desse modo, o primeiro passo para entender a técnica é perguntar sobre ela, uma vez que, ao tentar compreendê-la, estará se construindo um caminho até ela. Compreender a técnica é perceber seu significado na vida humana, seu alcance, seus limites, o perigo e a salvação que nela habitam. É construir um caminho de liberdade, pois a liberdade reside na própria técnica. Conhecê-la é ter um domínio de si mesmo e fazer suas próprias escolhas frente a ela, e é, necessariamente, saber diferenciar entre a técnica e a sua essência. A primeira trata dos meios de agir do homem e dos aparatos tecnológicos. A segunda, de uma visão de mundo que ocupa o lugar da metafísica e ameaça trancar a humanidade em uma forma exploratória de ver o ser. Por isso, é necessário manter o pensamento desperto, a fim de que a existência humana não se torne técnica.

Se a técnica é capaz de atingir o patamar do questionamento, é porque o ser-aí é capaz de abrir-se frente a ela e criar com esta um relacionamento livre. Dessa forma, enxergar a técnica meramente como uma destruição de mundo ou como um poder de encobrimento mais forte do que os sujeitos consiste em pensamentos já ultrapassados. Nas últimas décadas,

“ocorreu uma mudança significativa no juízo sobre a técnica e a tecnologia, de modo que, a partir de então, passou-se a considerar a técnica como um modo próprio da humanidade” (FERREIRA; GRISOTTO; WEBER, 2014, p. 3).

Enquanto os seres humanos não trouxerem à tona a questão sobre a essência da técnica, estarão fadados a lidar com o que é meramente técnico, afastando-se ou moldando-se a isso, incapazes de se relacionarem livremente com a técnica, independente de manifestarem- se, contrariamente ou a favor desta. Sem atingir a essência, estarão trancados em um paradigma técnico que orienta o mundo moderno, um pensamento técnico no qual o homem já está inserido desde seu nascimento, uma chave de leitura universal, um fundo cultural que possibilita toda e qualquer compreensão.

Pois não apenas a dimensão material do mundo – os objetos –, mas também as “configurações subjetivas” – o imaginário, a representação de si, dos outros e do mundo, por exemplo – são marcadas e constituídas indelevelmente pelo modo tecnológico de criar e representar o mundo e o humano (WEBER, 2014, p. 91).

Os objetos tecnológicos são capazes de modificar externamente o mundo em que os seres humanos vivem, trazem praticidade, facilidade e entretenimento ao dia a dia das pessoas, e por isso parece ser o que há de mais fundamental na técnica, pois é o que se mostra. Entretanto, a técnica vai muito além disso e é capaz de transformar a própria humanidade. A técnica autentica a extração e a intensifica visando ao lucro, à estocagem e a demais ganhos em um processo desmedido e irracional. O ser humano naturalmente deseja manipular e alterar as coisas, “derruba uma árvore para fazer tábuas, construir casas; usar a presa de um elefante para fabricar uma jóia, etc. Ou seja, nós temos uma compulsão ao Dispositivo que só o ser humano tem, a fazer objetos. A natureza é, para o ser humano, um fundo inesgotável

para fazer objetos” (STEIN, 2011, p. 163). O perigo da instauração da técnica não é apenas a

destruição da natureza, mas também a destruição do próprio homem, e do pensamento. Heidegger afirma, ainda, que considerar a técnica algo neutro é pior do que apoiá-la ou negá- la, pois demonstra a incapacidade de percepção da sua existência e a intenção humana de dominar todas as coisas técnicas quando se percebe ameaçado por essa.

Por conseguinte, busca-se apontar para a necessidade da constituição de uma ontologia crítica do objeto tecnológico, pois o mero uso de objetos tecnológicos, sem tal reflexão e definição, pode levar a constituição de uma ignorância profunda: a não percepção do que seja aquilo com o qual lidamos e que nos constitui à medida em que somos formados, seja na escola ou nos planos mais amplos de nossa vida. (WEBER, 2014, p. 93).

O ser humano acredita dominar a técnica e ser conhecedor de métodos capazes de domá-la. “Absorvido pela expansão do império humano sobre o planeta, o homem tende a crer que é sujeito dominante da técnica de que se serve. O sujeito maquinador é, então, o perpétuo perigo de uma ilusão que faz tomar o ente pelo ser” (COCCO, 2006, p. 41). Aquele que acredita ter nas mãos o controle da técnica é quem está sendo por ela dominado. A técnica ilude a humanidade; enquanto os seres pensam imperar frente a algo por eles mesmos desenvolvido, não percebem que o perigo não reside na tecnologia avançada, mas sim em sua essência, que é um produto histórico.

No documento 2017RaislaGirardiRodrigues (páginas 37-39)

Documentos relacionados