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5. A ARTE COMO UM MÉTODO VIVENCIA: O SIGNIFICADO CONSTRUÍDO NA COMUNIDADE DO

5.1.1. Sentidos da arte

Encontrei nas definições das participantes do grupo muitos sentidos e definições atribuídos ao que é a arte e a atividade artística, estando estes pautadas nas experiências que tiveram no grupo de autoestima, em outras experiências de aprendizado de técnicas artesanais, como também nos costumes, representações e valores sociais dos modos de vida daquela comunidade. Ressalto que os sentidos encontrados, por um lado, diferenciavam-se de uma concepção mais intelectualizada e conceitual da arte, aceita e praticada na sociedade contemporânea. A saber, segundo Aumont (1992), o marco conceitual que define a concepção de arte contemporânea e sua função social refere-se a um âmbito específico da estética, voltada para a contemplação, a apreciação do belo ou mesmo para expressão autêntica e original da individualidade de um autor.

Mas por outro lado, percebi que de algum modo o lugar da arte na vida daquelas pessoas coincidia - porém de uma maneira ainda mais negada - com o negligente lugar que a atividade artística ocupa de um modo geral na sociedade contemporânea. Quer dizer, como uma atividade de pouca utilidade para a manutenção da vida, para a ritualidade, para a transcendência, para a expressão criativa do Eu, para a experiência

religiosa, para a construção coletiva e cultural dos fundamentos de uma sociedade humana.

Como ressalta Menezes (2009), em referência a representação da dança indígena Guarani, esta tem uma função fundamental e estruturante para a afirmação da identidade cultural desse povo, funcionando como alicerce para a construção e organização de um corpo sociocultural que, ao mesmo tempo em que fortalece a coletividade, resguarda a singularidade, possibilita a confecção da “Pessoa Guarani”. Entretanto, encontrei na comunidade do Marrocos a arte desenraizada das tradições e dos costumes, da estrutura sociocultural daquela coletividade humana, dos modos de representar e simbolizar a realidade, de construir valores e compreensões do viver, de fundamentar sua religiosidade e sua cosmovisão, de construir caminhos possíveis e criativos para o enfrentamento do viver e para o desenvolvimento pessoal.

A experiência artística, quando vivida pelos moradores, estava quase que exclusivamente relacionada ao aprendizado de técnicas artesanais, à habilidades manuais para construir objetos de utilidade prática, que pudessem representar uma forma de sustento e de ganhar dinheiro, realçando seu caráter concreto, econômico e utilitário. Sobretudo, o aspecto da criação, da originalidade, da imaginação, da expressão do eu e do simbolismo mitológico, pareceu ser uma dimensão pouco explorada pelos moradores. Como, por exemplo, no caso da Gardênia que fazia tapetes para vender e com isso se mantinha; no caso da Francisca, que fazia redes com pedaços de plástico como forma de preencher seu tempo e que também podia ganhar algum dinheiro; de uma moradora que pintava figuras sacras em telas de pano, copiadas de figuras de “santinhos”, para enfeitar a igreja; da Lúcia que fazia toalhas com crochê para vender. Em uma das falas das mulheres essa ideia fica clara:

Nós já também tivemo um momento de arte aqui com o grupo da Eunice que a gente fizemo aquelas boneca de lã. A gente fizemo e teve gente que ganhou até dinheiro fazendo boneca de lã e foi umas duas ou foi três semanas a mulher vinha lá da Mil Ideias (loja) e ensinou a gente fazer aquelas bonequinhas de lã. Aí veio o biscuit também, né. (...) Eu não sabia nem como é que fazia uma flor, aprendi fazer flor na época, do meu jeito, né. (GARDÊNIA, E. Q., 23/10/09)

Gardênia, sempre destacava essa dimensão de sustento da arte, como enfatizou nessa fala (E.Q., 23/09/09)): “ Eu acho que a arte é uma técnica também de

dinheiro e é uma arte que você aprende e ensina seus filhos e vai passando de geração.” Em outros relatos da entrevista coletiva (23/10/09) emergiram um caráter

mais vinculado ao lazer, a diversão, a distração, aspecto também muito negado na vida dos adultos, ainda que permitida para as crianças, pois estes deveriam estar sempre voltados para o trabalho. Estas percepções puderam confirmar-se nas falas que emergiram, quando indaguei sobre o que é arte para elas, como viviam a experiência artística e se a arte era algo que existia no cotidiano delas.

Não, aqui bem arte pra nós que eu acho assim uma arte de uma pintura e uma coisa como para os meninos é uma capoeira, um futebol. Pra criança tudo é uma arte, agora pra nós não. Pra nós, se nós for fazer, é ridicularidade. “-Ah, vai um bocado de mulher gorda correndo atrás de uma bola! Vixe, o pessoal vai achar né... Então, a arte que a gente... essa nossa arte, que nós faz de pintar e tudo, é uma valorização.(FÁTIMA, E.Q., 23/09/2009)

Uma vez (D.C.29., 14/10/2009), Fátima comentou que poucas pessoas participavam daquele grupo porque achavam que não iam aprender nenhum ofício útil para ganhar dinheiro, não se interessando pelo tipo de atividade que ali realizávamos. Essa opinião também foi afirmada na fala da Gardênia (E. Q., 23/10/2009):

Teve gente que chamaram até nós de ridícula, porque quando nós tava ali dançando- eu não sei se vocês lembra daquele dia que nós tava dançando mulher com mulher- né, e chamaram nós de ridícula, porque aquilo ali era uma coisa ridícula. Aí eu não achei não. Pois é, não é ridicularidade nós dançar não. Nós tamo só se divertindo.

Maria (E. Q., 23/10/2009) também enfatizou que “durante esse ano que nós

completamos de grupo da autoestima eu sofri muita discriminação dentro da minha casa por eu tava participando desse grupo, né”. As participantes ainda assim

ressaltavam que não sabiam desenhar, pintar, relatando que não se sentiam capazes de realizar nada artístico. Como afirmou Maria (E. Q., 23/10/2009), “Eu nunca soube

desenhar, nem quando eu estudava nunca soube desenhar não, não vou mentir né. (...)”.

Segundo Loschi (1979), historicamente a arte, em seu sentido mais original, não possuía em si uma finalidade de construção de resultados formais e estéticos em si mesmos. Ela era um modo muito peculiar que o homem, desde os primórdios de sua origem, quando ainda estava vinculada a “ciência” e a religião, utilizou para aceder e conectar-se com uma dimensão insondável e incognoscível da realidade, referente à origem do mundo, ao sentido da vida, ao milagre e o mistério da vida e de nós mesmos.

Essa enigmática linguagem representava a configuração de um contato sensível, imediato e ao mesmo tempo transcendente com a vida em sua forma mais original.

Eliade (1991) também ressalta, a despeito dos valores ocidentais europeus de racionalidade e cientificismo, a importância da função do símbolo, como um instrumento autônomo de conhecimento. “Começamos a compreender hoje algo que o século XIX não podia nem mesmo pressentir: que o símbolo, o mito, a imagem, pertencem à substância da vida espiritual, que podemos camuflá-los, mutilá-los, degradá-los, mas que jamais podemos extirpá-los” (ELIADE, 1991, p.7). Nesse sentido, o autor ressalta que o simbolismo é consubstancial ao ser humano, precede a linguagem e a razão discursiva, revela certos aspectos mais profundos da realidade, respondendo a uma necessidade de “revelar as mais secretas modalidades do ser humano” (p.9).

Nietzsche (1999) considerou a arte como uma atividade propriamente metafísica da vida, se referindo a um sentido existencial nela imbricado, embora haja concebido que a cultura ocidental moderna denegriu seu sentido mais profundo, vivo em seus aspectos originais. É que para este filósofo existencialista, desde o surgimento da cultura alexandrina e da emergência da cultura socrática, a arte se converteu em uma “tendência vazia e disparadora para a diversão”, despojada de sua “verdadeira dignidade”, limitada a “produzir um deleite externo com o jogo” estético, destinada principalmente a ser objeto de crítica e contemplação, rebaixada de seus propósitos genuínos (NIETZSCHE, 1999, p.158).

A concepção filosófica de Nietzsche (1999) é de que a arte - nos seus moldes originais (comparando-a aos moldes da tragédia grega) guarda um profundo significado para o fundo mais íntimo e vital do ser humano, revelando-se como um modo mais profundo e sério de considerar os problemas éticos, pois aponta para uma sabedoria dionisíaca, para uma nova forma de existência. Por isso, este filósofo acreditava que, especialmente para o homem moderno, aferrado a uma visão racionalista e utilitarista da vida, mais também se enfrentado com os limites de sua ciência e de sua existência racionalizada, a arte representa uma “bebida curativa necessária para nossos tempos”, trazendo um significado profundo para o regresso a fonte primordial do seu ser (NIETZSCHE, 1999, p.159).

Também, partindo deste referencial, Roger Garaudy (1980) considerou o surgimento da “nova dança” no princípio do século XX, em seus novos parâmetros e propósitos, o resgate de um sentido original da arte: “(...) o que foi a dança para todos os povos, em todos os tempos: expressão, movimento do corpo organizado em sequências

significativas, de experiências que transcendem o poder das palavras e da mímica (ROGER GARAUDY, p.13). Nesta perspectiva, o autor considerou a arte uma resposta a um problema vital do homem moderno, como já citado.

Nestas concepções e sob estas condições, a arte é ressaltada como um tipo especial de atividade humana, como um tipo especial de processo psicológico criativo, de percepção e de experiência do mundo. Como vimos, em seu substrato mais profundo, para além da formalização estética poder representar uma forma de conhecimento concreto, científico, racional ou utilitário, ela é um modo peculiar de experienciar e relacionar-se com a vida.

Se partirmos da compreensão, como o fez Cassirer (1999), de que todos os sistemas simbólicos de nossa cultura, ciência, arte e religião, são todos eles esforços dos seres humanos para captar suas experiências e expressá-las em formas que possam comunicar, Nietzsche (1999) ressalta que, para além dos objetivos cognoscitivos, os impulsos criativos partem de uma necessidade humana fundamental de mergulhar, dissolver-se e fundir-se na experiência da vida em sua qualidade de superabundância. Esta necessidade, impulso, desejo ou vontade, surge de uma condição humana fundamental: a de habitar conjuntamente o mundo terreno e divino, de ser indivíduo e ao mesmo tempo parte integrante de uma comunidade, de estar inicialmente distante da unidade original e da eterna busca e desejo de voltar a esta unidade.

Eliade (1991) também concebe que o simbolismo está vinculado a necessidade de reencontrar uma marca da lembrança de uma existência mais rica, mais completa, quase beatificante, de recuperar a experiência do paraíso perdido. Neste mesmo sentido, Dilthey (1966 apud AMARAL, 1987) afirmou que tanto o poeta quanto o filósofo estão em busca de se conectar com o enigma dessa unidade, voltar a ser um com a vida. O filósofo conhecendo, desvendando seus mistérios. O poeta experimentando-a simplesmente.

Por isso, quando se trata de voltar a encontrar-se unido a vida, a captação artística é mais apropriada e eficaz, pois conhecer desde a experiência artística é estabelecer um vínculo de estreita comunicação com a raiz mais funda da vida, é fundir-se a ela, é plasmar-se e dissolver-se na unidade original. Quando se trata de unir-se a vida, o sentir é mais apropriado que todo nosso pensar, por que quando sentimos, nos acercamos da vida. (PINHO, 2003, p.79).

Tudo o que é vivido o é, sem buscar razões para explicá-lo, sendo por isso a vivência critério de verdade para si mesma. Quando vivenciamos estamos mais imersos em viver simplesmente e isso nos basta. Todo o vivido é assim algo íntimo e próximo, algo no qual nos percebemos enigmaticamente e misteriosamente enlaçados a partir da nossa própria existência e experiência de existir. Por isso a arte pode ser concebida como um “pressentimento de uma unidade restabelecida” (NIETZSCHE, 1999, p.98).

Considero que na comunidade do Marrocos, diante da negação da experiência da dimensão estética, uma das formas como essa população vivenciava essa necessidade era, privilegiadamente, através do uso do álcool e da droga, onde a música também demarcava um sentido de festividade, embora desvirtuado pela violência e degradação social que dessas circunstâncias emergiam. Era comum, as mulheres relatarem com muita insatisfação que a única diversão dos maridos nos fins de semana era beber vários dias sem parar, até o estado de embriaguez. A bebida acontecia nos bares ou nas portas de casa, estando sempre acompanhada de música, dança e mulheres (não casadas), mas posteriormente também de agressão e brigas domésticas.

Em seu aspecto positivo, Gardênia muitas vezes comentou o quanto ela gostava de dançar e que adorava as festas que aconteciam na casa da sua mãe, onde ela tinha a oportunidade de dançar e se soltar, utilizando também a bebida alcoólica para ficar mais solta. Dizia que somente aí ela soltava seu lado moleca, que na verdade era uma característica muito própria sua, comparando esta experiência às que ela vivenciava no grupo de autoestima ou em outros grupos de cunho lúdico e vivencial:

Eu já tive isso fora em outros tempos, porque toda vida eu gostei de ta envolvida em qualquer coisa, né, e foi numa época que meus filho era pequeno e eu participei de um projeto de mulher chefe de família. (...) Eu fazia pintura, eu brincava, eu dançava, eu pulava corda, eu brincava de carimba lá. E quando eu chegava em casa eu era uma mulher séria e quando eu chegava lá eu era a moleca, porque eu sou moleca. Eu só não tenho é tempo, mas se eu tivesse oportunidade eu jogava de bola, brincava de carimba, dançava toda semana e só não tenho é tempo, né. Agora, depois de tantas coisas, já ta com duas vezes que eu bebo cerveja e não fico beba, porque eu bebo por causa que eu fico dançando, eu danço muito e gosto muito de dançar e eu fico com sede. (...) Eu sou uma moleca, agora eu não tinha a oportunidade de botar essa molecagem pra fora. Toda vida eu fui a boba da classe, da onde eu trabalhava eu era a boba do trabalho

sabe, eu sou uma molecona, só não tinha a oportunidade de botar pra fora e aqui todo mundo tem. (GARDÊNIA, E. Q., 23/10/2009)

Compreendo que estas situações relatadas, a partir da ingerência de álcool e drogas, funcionam para a referida população como uma oportunidade ímpar de vivenciar essa necessidade profunda de alcançar um estado dionisíaco, como ressaltou Nietzsche (1991). Quer dizer, de alcançar um estado de perda da consciência desde o qual a alegria, o exagero, a soltura, o encontro e a dissolução entre as pessoas eram exaltados através da “embriaguez”, da entrega e do êxtase. Moffatt (1984) enfatiza o como os bailes comunitários, regadas pelo uso de álcool, são momentos que possibilitam exprimir alegria e até um sentido religioso, funcionando como uma espécie de psicoterapia popular. Percebi que esta experiência era também vivenciada, embora com menor intensidade, na participação das missas e cultos religiosos, onde as pessoas tinham a possibilidade de se conectar com uma dimensão transcendente da realidade, cantando e orando conjuntamente.

Particularmente, a música era bastante presente na comunidade, não sendo raro escutar no dia-a-dia um rádio tocando alto em muitas das casas. Ressalto, entretanto, que o tipo de música acessível àquela população, difundida e estimulada por uma ideologia de massa da classe dominante, parecia-me limitante no que se refere a uma função de humanização. Por um lado, enfocava a diversão, a brincadeira, o jogo com o movimento e o prazer corporal. Mas por outro, os conteúdos sempre enfocavam brigas, desvalorização da mulher ou hiper valorização de um papel sexual de submissão, exploração e posicionamentos machistas.

Esse tipo de música parecia reforçar - para além da consideração de uma questão de gosto - uma ideologia de dominação e desqualificação nas relações, focada exacerbadamente em uma dimensão material e concreta, em uma consideração mecânica e desqualificativa do corpo, revestida de pouca imaginação, distorcendo as possibilidades de manifestação poética da realidade. Uma vez na casa da Gardênia (D. C. 28., 07/10/2009) as participantes colocaram um DVD de um conjunto que elas diziam adorar, que falava que tinha que mexer a “bundinha”, “rebolar até o chão”, etc. Gardênia, sua filha e Milagro dançaram muito animadas, entusiasmadas com habilidade de realizar aquela dança, não se importando com o sentido das palavras: o principal era o movimento.

Segundo Amaral (1987, p.36), Dilthey ressalta que a poesia deve “reunir as condições fundamentais para esgotar o nexo vivo contido nas vivências”, de modo que a

ligação entre a vida e experiência do viver seja exacerbada através da força da fantasia. Por sua vez a fantasia é a “arma poderosa do poeta, que lhe permite apreender diretamente o conteúdo vivo das vivências em toda a sua transcendência e pureza” (p.36), no sentido de despertar e provocar o surgimento de objetivos e ideais orientadores do agir no mundo em consonância com o sentimento pessoal de vida, condizentes e enraizados na vida e em suas finalidades mais profundas. Para Dilthey (1906 apud AMARAL, 1987, p.36)

A fantasia é, assim nós vimos, tecida conjuntamente com todo o nexo psíquico. (...) Desejos, temores, sonhos do futuro transcendem a realidade; todo agir é determinado por uma imagem de algo, que ainda não é: os ideais da vida caminham na frente do homem, Isto é, pela humanidade adentro e conduzem-na ao encontro de fins elevados...

No grupo de autoestima, percebia que os aspectos expressivos, simbólicos, criativos e transcendentes da atividade artística vinham aos poucos sendo recuperados. No início, a tendência das participantes era pensar que não sabiam fazer algo, ter medo de errar, movidas pelo mandato social de ter que fazer algo dentro de um padrão considerado bonito, aceito ou útil, assim como elas vivenciavam em outras situações cotidianas.

Em algumas sessões nas quais usávamos pintura, colagens e desenho, eu me indagava sobre o sentido que de fato havia para aquelas pessoas essa atividade, já que era algo tão distanciado de sua experiência cultural. Percebia que nas atividades em que se utilizava costura, elas realizavam com mais facilidade, por ser uma atividade costumeira. Também em geral, as representações, em sua maioria, guardavam uma correlação muito direta com a realidade concreta. Refletia, então, sobre as possibilidades de estimular a criatividade e ao mesmo tempo fortalecer as experiências artísticas culturais daquela coletividade.

Posso citar a produção que as participantes fizeram em uma das sessões (D. C.26., 16/09/2009), na qual trabalhamos o tema sobre “o que fazíamos e construíamos com nossas mãos”, onde foi utilizada massinha de modelar. A Francisca fez miniaturas - com grande habilidade - das roupinhas que ela comprava para o neto, o que representava para ela uma demonstração de amor; a Gardênia fez uma miniatura dos tapetes que ela fazia. Em outras ocasiões, emergiam produções mais simbólicas e metafóricas, como na sessão na qual trabalhamos a primeira página do livro (D.C. 16., 03/06/2009). Nesse dia, a Fátima fez um sol, que representava a força e a alegria de

viver; Maria fez um emaranhado de pano, representando o caminho que ela percorria na sua vida; Gardênia fez uma flor, que representava como ela estava se sentindo naquele momento. Assim, em alguns momentos apareciam configurações mais concretas, em outros, emergiam sentidos mais metafóricos nas produções plásticas.

Fui compreendendo, então, que a atividade artística fomentada nesse grupo popular, sob os propósitos aqui enfocados, deveria, por um lado, construir-se a partir das experiências dos moradores, de seus valores e tradições culturais, sendo este um modo de não se converter em uma proposição artificial e desvinculada do modo de vida local. Mas por outro lado, a arte deveria também estimular a construção de novos valores, para além das ideologias de dominação que permeavam a cultura instituída, realizando o desafio de criar uma nova e mais humanizada cultura, que pudesse transpor os valores de opressão.

Desse modo, entendi que a atividade artística deve configurar-se como um espaço comunitário e uma atividade humana, que se volta para a estimulação do desenvolvimento das potencialidades humanas e, ao mesmo tempo, para o resgate e o fortalecimento das virtudes originais que fundamentam todas as culturas. Compreendo, diante dessa experiência, que o grande desafio de um grupo popular pautado nestes moldes, é resgatar e afirmar a arte, como o fez Vygotsky (2001), como um elemento constitutivo vital de toda cultura humana, ao mesmo tempo em é uma possibilidade de manifestação do criativo e singular de cada individualidade.

Sombra (2009), ao explanar sobre as funções da arte na busca de interligar a Arte e a Identidade, partiu do referencial da Biodança e do Princípio Biocêntrico, postulado por Toro (2005). Desse modo, ressalta a relação entre a arte, os processos criativos e as possibilidades de recriação da própria identidade humana, já que a criação é uma condição da própria vida, em suas infinitas formas de manifestação. Para Sombra