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PARTE II Bases histórico-culturais de formação e imaginários sociais

Capítulo 4 Mundos que se conectam: relações entre seres do mundo físico e do mundo

4.1 Características gerais dos contos tradicionais utilizados como fontes

4.2.2 Sentidos heterônomos para a ação

O caráter determinista das decisões divinas revela afinidades de sentido também com os discursos religiosos vistos anteriormente, que reificam o conformismo com a

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Em diversas narrativas, a proximidade entre mundos revelou-se também pela representação de seres do mundo não-físico como São Pedro, que apresenta sentimentos e necessidades próximas dos seres humanos (ver a categoria de análise ―gosto mundano‖, anexos 4 e 4.1).

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realidade vivenciada. As relações de proximidade ―entre mundos‖ possibilitam compreender o imaginário das narrativas a partir de um continuum que, por sua vez, revela tanto a intervenção causada a partir de vontades e fatores externos aos indivíduos, quanto a mudança ocasionada pela influência de pedidos humanos aos seres ―do outro mundo‖. Em ambas as situações, a intercessão extramundana origina continuidades ou mudanças.

Ao observamos as possibilidades de causação em função da intimidade ―entre mundos‖ característica do imaginário analisado, retomamos também as reflexões sobre os sentidos das crenças atribuídos à ação humana e sua responsabilização. Assim como os discursos de formação religiosa revelam a possibilidade de influenciar divindades, a depender da qualidade da relação que se estabelece, o imaginário das narrativas expressa as possibilidades de sucesso na causação, frequentemente reafirmando a relevância do tipo de relação estabelecida com a divindade (a exemplo das dinâmicas de apadrinhamento). Ao considerar fatores externos aos sujeitos como fundamentais para a causação neste mundo, é possível notar a afinidade de sentidos entre tal percepção e a ideia de que tanto quanto é possível apelar aos seres do mundo não-físico na expectativa de mudanças, é necessário, também, compreender que determinadas situações não se alteram em função das vontades divinas.

Conforme visto no capítulo anterior, é possível observar uma espécie de ―ética do conformismo‖ para as situações de subjugação e uma ―ética do privilégio‖ para vivências privilegiadas, remetendo à reafirmação da soberania de uns perante outros, onde haveria, por um lado, a predestinação da obediência e, por outro, a marca indelével e necessária do sofrimento neste mundo - fundamentadas pelo discurso de salvação eterna. É importante notar que o discurso sobre a salvação encontrado no imaginário das narrativas, diferentemente do discurso de salvação eterna, revela um ―salvar-se de si mesmo‖, de uma ―natureza‖ ruim observada pela divindade. A pobreza seria fruto da necessária vivência regrada destinada àqueles que não poderiam experimentar a riqueza e os confortos deste mundo sem revelar posturas individualistas, ignorando a necessidade de ajuda do outro, conforme expressa o conto a seguir:

A pessoa que não pode ter nada

Nosso Senhor quando ele... Nosso Senhor era chaga... chagadozinho, sabe? Aí resolveu andar pelo mundo, na viagem pelo mundo. Aí, convidou Pedro, São Pedro, né?

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Disse: - Pedro, vamos dar uma volta comigo no mundo, andar por esse mundo!

Pedro disse: - É Senhor, posso ir com o senhor.

Aí, até que saíram, saíram os dois, tudo mais, aí, andaram, andaram [...] aí, chegou uma casinha, chegou numa casinha velha, uma casinha de taipa, uma casinha velha que num valia nada.

Chegou, disse: - Boa noite!

Aí, saiu um homenzinho todo mal.... mal trajadozim, a... a mulher dele também parecia assim uma corujazinha, tudo mais, feim, acabado. Pois bem, pobre, que pobre é... pobre é... hoje em dia, pobre hoje e dia... - É tudo

parecido com coruja, né?(entrevistador) Hoje o pobre anda do jeito do

barão! Mas de primeiro... Vou dizer... vou dizer uma coisa, você viu a roupa dum pobre? É... tem muito mais, tem muito mais de mil e quinhentos remendo! Hoje, se tiver um arranhãozim qualquer ele bota no mato a roupa! Hoje num tem mais ninguém pobre, todo mundo é rico. Mas nessa época tinha pobreza, né? Aí, Nosso Senhor chegou nesse... nesse ranchinho, nessa casinha de taipa muito ruim e tudo mais, chegou, deu boa noite, aí, o homenzim saiu ele...

O Senhor disse: - Meu senhor, o senhor pode me arrumar aqui uma dormidazinha hoje, a gente anda viajando e tudo mais...

Aí, quando ele... quando ele saiu fora, que ele olhou pra ele todo chegadozim, aí, disse: - Oh! Pois não! Pois não! Entre pra cá!

Botou ele pra dentro da casinha, a casinha velha e tudo mais... Aí, foi, entrou, e entrou pra dentro, o rapaz quando... aí ele disse: - Home, olhe faz pena eu num ter aqui um... uma janta para dar, sou pobre, num tenho nada pra dar a vosmecês. Óie, eu fico morrendo de pena.

Nosso Senhor muito humilde, Nosso Senhor muito humilde tão bom: - Não! Só em você me dar aqui a dormida já é uma grande coisa, eu quero só para passar a noite. A gente já... já jantou.

- É! Pois não, ta aí!

Botou na salinha, tudo mais, ajeitou ali tudo direitinho, ele... um ajeitado danado, com pena de Nosso Senhor que tava chagadozim. Ó! Nosso Senhor dormiu. Dormiu, quando foi de manhã, ele disse: - Pronto, Pedro! Levante, Pedro, vamos s’embora!

Aí agradeceu ele e tudo mais e disse: - Ó, pois não! Ói, desculpa olhe eu num ter lhe ajeitado, você sabe... muito pobre...

- Não, tá bom demais!

Foram embora. Caminharam, caminharam, chegaram muito adiante, São Pedro disse: - Senhor, olhai pr’aquele pobre! Olhe, um homem daquele tão bom! Tão bom, olha, botou nós, tadim, que ficou com tanta pena de não ter uma rede... de num ter comida para gen... pra dar a nós. Olhe, Senhor! Aí, peraí, quando chegou muito a frente, aí, São Pedro disse:- Senhor, olhe pr’aquele probrezim, Senhor! Tão pobrezim, mas, olhe, humilde! Olhe, Senhor, aquilo ali, Senhor, olhe... faz o camarada... o camarada ficar até angustiado com aquela arrumação ali que se... da humildade daquele homenzinho!

Aí, o Senhor, calado, seguiu pra frente. Ficou muito... aí, viajaram, viajaram, quando chegou muito na frente, aí ele disse... aí, São Pedro reclamou de novo: - Senhor! Senhor! Olhe, Senhor! Olhe pr’aquele pobrezinho!

Aí, o Senhor foi e disse: - Pedro, cala-te, Pedro! Tu não sabe de nada, Pedro! Tu não sabe de nada!

Aí seguiram a viagem... seguiram a viagem.... seguiram, seguiram, aí, Pedro, quando tava na frente, reclamou de novo. Aí, o Senhor foi e disse: - Pois, Pedro, pois de já ele vai ser um homem rico! Vai ser um homem rico! Ele vai ser um homem rico!

Aí, seguiram pra frente, Seguiram, seguiram, ah!, dormiram em outra casa, tudo mais, aí, quando... Aí, abarcou. Seguiram a viagem, andaram, andaram... que quando chegaram muito na frente, quando aí... Nosso Senhor voltou. Voltaram. Isso com muito tempo, com muito tempo de viagem, muito... muito tempo, sabe? Quando voltaram, quando voltara, aí, aconteceu, aí,

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pronto. Nosso Senhor foi quando chegaram perto duma casona, numa fazenda, muito gado e tudo, uma casona, rapaz, toda mobiliada e tudo mais, aí. Nosso Senhor – sempre era... essa época era que andava pelo mundo, era chagadozim – chegou na casa, homem. Casona... chegou. - Ô de casa! - Ô de fora! – já falou aborrecido, grosso – ô de fora! Aí quando chegou: - O que é? O que foi?

- A gente queria uma dormidinha aqui, uma dormidinha aqui até... passar a noite por aqui.

Quando olhou, viu Nosso Senhor Chagadozim, né? Aí ele: - É, aqui pois não! Tem o chiqueiro das cabra ali, se quiser para você dormir...

O chiqueiro das cabra, né? Pra você ver... Olhe, eu tô... isso é a realidade, tem muita gente que não pode ter nada, rapaz! Tem gente né? Porque peleja e não pode! Aí, Nosso Senhor muito humildim, aí disse: - É, não tá bom. A gente... a gente fica ali no chiqueiro das cabra mesmo, passa a noite...

Aí, ajeitaram lá uma redinha lá no chiqueiro das cabra, lá ele mais São Pedro, e lá dormiram. Passaram a noite, aí dormiram lá. De manhãzinha saía... saíram. Aí, chegou na frente, disse: - Pedro, eu num te digo que aquele homem, aquele pobrezim era pra ser pobre, num era pra ser rico, Pedro, num podia ser rico?

- Por que, Senhor?

- Você conheceu aquele povinho, aquele povo que nós dormimos essa noite aqui no chiqueiro daqueles bode?

- Eu conheci não, Senhor!

- Pois aquele é aquele probrezim daquele tempo! É aquele pobrezim daquele tempo! Tá vendo? Teve muita pena da gente. Olhe aí, depois de rico, aonde foi que nós dormimos, Pedro?

- Senhor, não acredito!

- Ah! Não acredita? Num tô lhe dizendo, Pedro! Eu fiz pra... pra lhe satisfazer, né? Mas num pode não, olhe, ele num pode ficar rico! Se ele... Se ele ficar com a riqueza ele perde a alma. De (...) tem que ficar pobre!

Ora, como poucos dia, rapaz, veio o temporal, o rapaz... uma enchente danada levou o gado dele, acabou fazenda com tudo! E ele com essa... descendo tudo, ele ficou meio abestado, o velho foi com isso foi se tratando, meio que vendeu a casa, ficou no mesmo chalé de novo. Ficou pobre, ficou pobre. E isso é a história. (LIMA, 2003: 245 - 247)

Essa narrativa informa tanto a temática frequente das ―andanças de Jesus e São Pedro pelo mundo‖, como o valor moral da pobreza. As justificativas de Jesus a São Pedro sobre os estados de sofrimento decorrentes da escassez material são fundamentadas a partir da caridade testada pelas divindades, sem que os humanos saibam a quem estão ajudando, ou negando a ajuda. Os contos frequentemente revelam a cooperação atrelada à pobreza, justificando a impossibilidade de ganhos materiais em função de uma índole individualista que poderia ser despertada – visto que se revela como marca adormecida pela realidade causada a partir de desígnios divinos. Há também o valor da pobreza atrelado ao julgamento moral, que se vincula à caridade: se, por um lado, a limitação material é causada e justificada como um método para ―salvar‖ aquele humano de sua ―natureza ruim‖ possibilitando a ―real salvação‖ em um momento posterior, por outro, tais estados materiais serviriam de garantia para a expressão da cooperação, a despeito das dificuldades materiais. Ao ser confrontado por São Pedro a

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respeito da possibilidade de agraciar materialmente o homem pobre que havia ajudado as divindades, Jesus altera a situação do homem provando ao santo que a bondade se revelara justamente pela situação de pobreza, do contrário, conforme observa, não expressaria um espírito caridoso.

A perspectiva determinista sobre a situação material apresenta afinidades de sentido também com um imaginário que explora a fundamentação da ―inferioridade social‖. Os discursos ecoam naturalizações fundamentadas em desejos divinos que justificam a desigualdade no mundo físico e a subjugação de determinados humanos, portadores de distintas ―marcas na alma‖. A noção de causação neste mundo revela, ainda, sentidos para a orientação interna da conduta baseados em fatores externos ao indivíduo, expressando significados heterônomos para a ação. É possível notar, nas narrativas analisadas, que o indivíduo carrega a ―sina que Deus dá‖, mas também age buscando alterar a situação originariamente ocasionada pela ―natureza‖ de sua índole. A responsabilização sobre os próprios atos é geralmente intermediada, ainda que terceirizada ou compartilhada, a depender dos estados de sofrimento ou satisfação do humano – reiterando, portanto, a íntima relação entre mundos já observada.

A partir da compreensão do imaginário que expressa a possibilidade de causação direta da divindade110 é possível observar, ainda, outros desdobramentos analíticos da relação entre mundos físico e não-físico. Os discursos de formação apresentados no capítulo anterior reafirmam uma percepção de mundo baseada na causação divina onde, conforme observa Azzi (2004), a organização social e os discursos religiosos expressam fundamentações também para a dependência servil nas relações sociais. Nessa perspectiva, vimos que as condições sociais existentes para a ideação social apresentavam sentidos afins ao imaginário de intimidade e determinismo das divindades no mundo físico. Tal como Weber atentou para a importância da perspectiva histórica como estratégia de compreensão dos sistemas de ideias111, no estudo aqui proposto é

110 As narrativas revelaram em intervenções, principalmente quando ocorrem agraciamentos, a presença de objetos mágicos disponibilizados pelas divindades, que solucionam o pedido de humanos aos seres do mundo não-físico. Em narrativas como Multiplicação dos alimentos (ALCOFORADO; ALBÁN, 2001), Onde comem dois comem três (SANT’ANNA, 1998) e Jesus e São Pedro pelo mundo (LIMA, 2003) é possível observar não apenas o uso de um objeto reconhecido como ―mundano‖, o baralho para jogos, como a esperteza (de seres do mundo físico e também do mundo não-físico) contribuindo para o improviso solucionador.

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A perspectiva histórica para Weber é fundamental no processo de compreensão dos sistemas de ideias religiosas e das afinidades com outras esferas sociais de valor que estabelecem entre si. Entretanto, a origem de uma ideia não necessariamente se conecta com os discursos cujos sentidos, posteriormente, revelam afinidades, conforme observam Mills e Gerth acerca da teoria weberiana: ―Não há correspondência preestabelecida entre o conteúdo de uma ideia e os interesses dos que a seguem desde a

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possível observar os sentidos afins expressos nos discursos de formação que reiteram os estados sociais de subjugação e, ainda, as posturas heterônomas, fundamentando as ações a partir de forças ―superiores‖ aos indivíduos. Pautados nos desígnios divinos, aqui revelados tanto nos discursos de formação da religiosidade católica no Brasil, como no imaginário das narrativas que apresentam as divindades, observamos as afinidades de sentido para uma reiteração determinista das posições sociais.

4.2.3 O Diabo e a Morte como personagens: intimidade com outros seres do mundo

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