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Levinas, fundando sua teoria da subjetividade na idéia do Infinito, cinde o ser em duas categorias e, em Totalité et Infini, vai ter como eixo central o tipo de relação que se estabelece entre esses dois termos, mostrando como eles se mantêm separados, apesar da relação. A noção de Infinito, vital em sua obra, equivale a Transcendência, Exterioridade, Metafísica, absolutamente Outro. Somente na perspectiva dessa idéia é que se pode perceber o sentido do humano que o autor procura imprimir em seu pensamento; é só de lá que é possível perceber o sentido das totalidades, às quais só se resiste a partir da separação. A resistência à totalidade é a tese que anima e dá consistência às suas elaborações sobre o sentido

do sujeito viver num mundo que insiste em apresentar-se como sistema, por ser esse o modelo de inteligibilidade dominante no Ocidente até Hegel. Essa separação não implica a idéia de reciprocidade ou de oposição entre um Eu e um Outro que lhe é transcendente, porque isso resultaria apenas numa operação lógica, anti-tética. “Uma transcendência absoluta deve se produzir como inintegrável” (TI, p. 24), ou seja, manter-se como exterioridade, como inadequação por excelência, como cogitatum que ultrapassa e que não pode ser contido pelo cogito. É fundamental no pensamento de Levinas a exclusão dessas posições que terminariam por ser absorvidas num conceito que as subsumisse, numa superação dialética onde o Outro é englobado pelo Mesmo. “É preciso que a separação do Eu a respeito do Outro resulte de um movimento positivo” (TI, p. 24).

A noção de separação está visceralmente ligada à do Infinito, que a supõe, uma vez que, remontando a Descartes, Levinas mostra como o Infinito é a única idéia que não podemos ter por nós mesmos, e cujo ideatum está irremediavelmente distanciado da idéia, não podendo ser contido por ela, ultrapassando-a. Separação que não é diminuição, degradação ou ‘queda’ do Infinito, mas que instaura a dimensão do Psiquismo, da Interioridade, da Economia, onde é possível uma abertura para o Infinito, porque só um ser separado é capaz de desejá-lo.23 “O movimento da separação não se encontra no mesmo plano que o movimento da transcendência. Estamos fora da conciliação dialética do eu e do não-eu (...) nem o ser separado, nem o ser infinito, se produzem como seres antitéticos” (TI, p. 122)

.

É

indispensável pensar na subjetividade separada como condição de uma vida interior

23

Cf. FABRI, Marcelo. Desencantando a Ontologia: subjetividade e sentido ético em Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 57.

que possa abrir-se para a exterioridade, para a alteridade — “esta abertura sendo decisiva para a Metafísica que se opõe à ontologia”.24

Trata-se de algo como uma pulsação, fechamento e abertura para o exterior, o que vai implicar numa certa ambigüidade do ser separado, para que

de uma parte, a interioridade necessária à idéia do Infinito permaneça real e não somente aparente [...] sem que a todos os movimentos de descida na interioridade o ser que mergulha em si se reporte, por um jogo de dialética [...] à exterioridade. Mas é preciso, por outro lado, que na própria interioridade [...] se produza uma heteronomia que incite a outro destino [...] a possibilidade de descolar da condição animal. (TI, p. 123).

A idéia de separação, corolário da idéia de infinito, ocupa no pensamento de Levinas um lugar central, pelo que considera a divisão do Ser em Mesmo e Outro a sua estrutura última (TI, p. 247)

.

Para ele, o grande mérito da filosofia foi ter

realizado, por meio do Logos, a separação em relação ao mundo mítico — onde prolifera o que ele chama de “deuses sem Rosto” —, à participação no Sagrado, onde os seres se dissolvem no Todo por meio do êxtase (TI, p. 74). Ele chama a atenção para o corte nessa participação, efetivado pela teoria que, através da representação, mantém a relação entre o ser cognoscente e o ser conhecido limitada ao conhecimento, apontando para a separação existente entre os dois termos. Daí o estatuto privilegiado da representação, embora não seja ela “a relação original com o ser” (TI, p. 19).

Para Levinas, não deve haver nenhum tipo de comunhão, de englobamento na totalidade. Há rejeição do modelo visual, sinótico, e primazia da idéia de inadequação que o infinito manifesta, de assimetria, de traumatismo, de proximidade que implica em distanciamento.

24

“Pela separação, há uma ruptura com a idolatria, o paganismo, o tempo das origens (tempo mítico), o tempo da utopia (tempo do futuro), afirmando-se o presente como o tempo por excelência.” (FABRI, 1997, p. 65).

O estatuto que goza a separação em Totalité et Infini fere frontalmente o privilégio concedido à unidade que vigorou na história da filosofia, de Parmênides a Hegel; a separação e a pluralidade decorrente dela foram consideradas degradação do Infinito, para a qual a metafísica clássica apontava a via de retorno ao Uno. Platão, entretanto, e nisto Levinas se aproxima dele, situa o Bem fora da Totalidade. “O lugar do Bem acima de toda a essência é o ensinamento mais profundo — o ensinamento definitivo — não da Teologia, mas da Filosofia” (TI, p. 76).

A relação entre dois termos assim separados, o mesmo e o outro, em que o outro detém a primazia da relação tornando-a assimétrica, onde a relação não suprime a distância entre os termos constituindo-os em totalidade, Levinas chama de Religião (TI, p. 10, 52).

A separação instaura o tempo da interioridade, que se distingue do tempo histórico, linear, objetivo, englobante. Aquele — o tempo da interioridade, do psiquismo — é descontínuo, guarda um “segredo” a partir do qual o real deverá ser também apreendido, e confere uma significação outra ao nascimento e à morte dos entes, significação não esgotada pelo tempo da história ou da totalidade (TI, p. 26). O tempo da interioridade, des-absolutizando o tempo histórico, constitui uma ‘chave de leitura’ a partir da qual o enigma de cada existência poderá ser decifrado.

“O essencial da existência criada consiste na separação a respeito do infinito. Essa separação não é simplesmente negação. Realizando-se como psiquismo, ela se abre precisamente à idéia do infinito” (TI, p. 78).

Em Totalité et Infini já está antecipada pela idéia de separação a marca de unicidade do sujeito que será desenvolvida mais profundamente em Autrement

qu’etre.25

25

Cf. PELIZZOLI, Marcelo Luiz. Levinas: a reconstrução da subjetividade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002a, p. 78.

Levinas insiste sobre o fato de não haver um terceiro termo que englobe ou abarque a relação entre o Mesmo e o Outro, porque, nesse caso, a distância entre os termos seria anulada; além disso, só há Outro em relação ao Mesmo, ou seja, é preciso que o Mesmo permaneça como “ponto de partida”, como ‘entrada’ na relação, para que a alteridade do Outro seja possível: “um termo não pode permanecer absolutamente no ponto de partida da relação senão como Eu” (TI, p. 6).

O Eu mantém a sua identidade apesar de todas as alterações que possa sofrer; está sempre se reencontrando, “é a obra original da identificação” (TI, p. 6). Segundo o autor, existe uma passagem lógica do semelhante ao Mesmo (TI, p. 265), algo como uma torção, um reviramento do exterior para a interioridade do Eu, permitindo que surja a singularidade, algo que vai ser a forma própria do sujeito que se inicia no mundo, independentemente de sua semelhança ou dessemelhança com outro indivíduo; algo que vai constituir a sua forma de participar da intriga intersubjetiva, da relação social com outrem — dimensão onde veremos dar-se o que pode ser chamado de verdadeiramente humano (TI, p. 265). É pelo processo de identificação que o Eu — aquele “que tem a identidade por conteúdo” (TI, p. 6) — irá constituir-se como ser separado, conseqüentemente como ser capaz de encontrar- se com e desejar o Outro. O Eu, enquanto finito, é afetado de diversos modos, sofre alterações, mas permanece idêntico mesmo assim.