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CAPÍTULO 5 SUBJETIVIDADE EM NAQOYQATSI

5.1 SEQUÊNCIA DISCURSIVA FÍLMICA 1: O SUJEITO E O SIMBÓLICO

Imagem 80 – Sujeito e simbólico (56:12)

Imagem 81 – Simbólico (01:04:41)

Imagem 82 – Engrenagens (01:04:51)

O som tem um ritmo acelerado, estamos em cinquenta e seis minutos de filme, as imagens voltam a se misturar na tela, o espectador compartilha dessa profusão de imagens e de tantas relações de sentidos lançadas até o momento, mas ainda não acabou. Surge na tela a imagem de um corpo humano entrelaçado a vários símbolos, interpretamos que os símbolos remetem às diversas áreas do conhecimento através das quais se desenvolvem práticas e tendências reconhecidas socialmente pelos sujeitos. Ao final dessa sequência fílmica, vemos

uma nova série turbulenta de imagens: água, bomba atômica, explosões, guerra, violência, uma pista de decolagem e, então, o espectador é lançado em direção ao céu, ao espaço, e desfruta de um momento rápido, fugaz, de descontração, o qual é logo interrompido pelo turbilhão que, novamente, o absorve e perturba.

Essas sequências fílmicas de Naqoyqatsi aludem à relação constitutiva entre o sujeito e o simbólico. As imagens acima trazem esse aspecto bastante caro à teoria do discurso, que considera os sujeitos, enquanto seres de linguagem, condenados a interpretar materiais simbólicos, sujeitos constituídos pelo simbólico que os atravessa enquanto seres de linguagem. Na primeira das imagens temos, diante de um fundo preto, a sobreposição da figura do corpo de um homem, letras do alfabeto e símbolos matemáticos e, ao fundo, delineia-se iluminada a sombra de uma aeronave. A tessitura dessa cena remete a diversos campos do saber, diversas memórias sobre os modos de simbolização criados pelos sujeitos no processo de produção de conhecimentos, conduzindo-nos a perceber as distintas materialidades que atravessam os sujeitos enquanto tecnologias, intervindo em sua constituição subjetiva. Nesse sentido, escolhemos essa imagem para ressaltar o papel determinante da dimensão do simbólico da tecnologia na constituição da subjetividade ao longo da história. Somos constituídos por tudo aquilo com que entramos em contato, com o que chega ao nosso olhar, nosso olfato, nossa audição e passa, imediatamente, a fazer parte de nós, sendo aceito ou refutado. Ao longo da narrativa de Naqoyqatsi, percebemos a reiteração desta relação entre o material simbólico que nos constitui e o material simbólico que constitui as teias da tecnologia, assim como o próprio documentário é por ele constituído. Nossa hipótese interpretativa é a de que a constituição da subjetividade é atravessada pela materialidade predominante em determinado momento histórico, sendo o digital essa materialidade na contemporaneidade.

Na teoria do discurso há alguns pressupostos que coincidem com aqueles que norteiam a produção cinematográfica contemporânea e, especificamente, o documentário Naqoyqatsi: o sujeito descentrado, produzido historicamente, assujeitado à língua e ao inconsciente; a ideologia como forma de captura desse sujeito, seja pela via da “escolha consciente”, ou identificação, seja por seduções inconscientes; a história como lugar de disputa pelo sentido; o simbólico como atualização material do discurso; o imaginário criado pelos Aparelhos Ideológicos de Estado e nas práticas sociais. Não é possível dizer tudo, não é possível dar conta do sentido como um todo, não podemos fugir de nossas próprias determinações, esse é o espaço do real, aquilo que não conseguimos suportar. Não há como chegar à totalidade, é o caráter de incompletude inaugural do sujeito e do sentido que torna possível dizer sempre, e sempre de outro modo. Os objetos simbólicos podem ser considerados como materializações

de sentidos imaginários constituídos socialmente como é o caso do cinema que entendemos ser capaz de “produzir” imaginários sobre a ordem social. O imaginário, na psicanálise, não se trata do exercício de imaginação, mas é nele que se inscreve a realidade, trata-se de um registro da realidade (aquilo que faz sentido) que possibilita a produção de uma imagem unificada, a constituição do EU (ego). A ordem do imaginário diz respeito à criação de um invólucro material, simbólico, que produz uma narrativa que faz sentido, é interpretável, pois, como seres interpretantes, só suportamos estar em um mundo de significação, uma realidade que faça sentido. O non sense, em geral, nos é estranho, insuportável, por isso, criamos bordas imaginárias para lidar com aquilo que experenciamos e o fazemos por meio de alguma materialidade: o verbal, o imagético, o sonoro... A ilusão de unidade é necessária para a interpretação dos objetos simbólicos, entretanto, tal como acontece na constituição do ego, o simbólico jamais será capaz de ser uma totalidade, não é possível que se diga tudo. Logo, assim como o sujeito é, desde sua constituição subjetiva, um ser em falta que, por isso, deseja. O objeto simbólico também traz, em si, uma falta que será constitutiva do sentido, a mesma falta que constitui o sujeito. Como dizemos, na Análise de Discurso, sujeitos e sentidos constituem-se em um processo de reciprocidade, os sentidos não são neutros, e o sujeito é interpelado pela ideologia e pelo inconsciente, noção essa sempre presente nas elaborações de Pêcheux sobre a subjetividade.

Pêcheux buscou, na teoria do imaginário, fundamento para descrever o funcionamento do discurso, ele afirma que “o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. ” (PÊCHEUX, 1997, 82). Neste jogo dos imaginários, o sujeito é levado a acreditar que o que diz é seu, ou seja, que é senhor do seu próprio dizer, assim, ele é levado a ocupar o seu lugar em um dos grupos ou classes de uma determinada formação social. A ideia de liberdade, portanto, trata-se de uma “ilusão” necessária para que o sujeito não perceba seu assujeitamento ideológico. Ora, sob os discursos da sociedade tecnológica digital não é raro encontrar afirmações categóricas sobre a liberdade que é oferecida nas trocas virtuais, todavia, ao relacionarmos a tecnologia com a guerra, pudemos explicitar que a liberdade oferecida pelo digital é uma ilusão de liberdade, pois somos vigiados o tempo todo na sociedade de controle. Cada um tem liberdade, como definiu Pêcheux, para ocupar o seu lugar específico na formação social capitalista tecnológica, como outrora o foi na sociedade capitalista.

O inconsciente é conceituado em diversos momentos históricos, desde Freud até os últimos escritos de Lacan. Uma das máximas clássicas lacanianas é a de que o inconsciente “é

estruturado como (se fosse) uma linguagem” (LACAN, 1988, p. 25 – grifo nosso) e não como linguagem ou em linguagem, pois, se assim o fosse, o real seria representável e não o é. Podemos dizer, então, que há uma estrutura inconsciente, tal como toda a forma de linguagem apresenta uma organização própria, o inconsciente também tem uma ordenação, apesar de não poder ser tomado em sua totalidade. Se somos assujeitados ao inconsciente, os traços dessa estrutura psíquica também causarão efeitos no modo como nos relacionamos socialmente, no modo como produzimos sentidos. Importante dizer que o inconsciente, antes de ser uma estrutura biológica individual, perpassa a todos socialmente, lega às gerações futuras modos de ser e de viver que já foram protagonizados em outros momentos históricos. Podemos dizer que o inconsciente atravessa o histórico e não tem fronteiras geográficas, o inconsciente é um discurso transindividual e, nesse sentido, é que nos detemos na produção de subjetividades através do digital, acreditando que, tanto a psicanálise quanto a teoria do discurso permitem- nos pensar a constituição de um sujeito social atravessado pelo simbólico. A próxima sequência fílmica retorna a esse tema. Em uma hora, quatro minutos e cinco segundos de filme, símbolos em vermelho e preto são apresentados ao espectador, misturando-se rapidamente. O som acompanha o frenesi das cenas, uma orquestra vigorosa produz a atmosfera tensa com que as imagens chegam à tela sucessivamente, conferindo um ar grave à cena na qual aparecem os símbolos do comunismo, do nazismo, de filosofias e religiões: a trama do sujeito e do sentido tecida pelo simbólico e pelo histórico. Esses símbolos apresentam a filiação dos sentidos à ordem do discurso, à cadeia infinita de discursos em que se inscrevem as discursividades.

Ao final desta sequência, a câmera foca em uma engrenagem que nos remete à Vertov e ao componente maquínico do próprio fazer do cinema, bem como ao seu funcionamento de trazer à tona, ou à tela, as disputas ideológicas que perpetuam a luta de classes em sua infinita reprodução e transformação. O simbólico remete, em nossa interpretação, à constituição subjetiva contemporânea pela disputa, pela violência, pela guerra ideológica binária que levou tantos sujeitos à morte. Se o motor da história é a luta de classes, esta é a sequência fílmica em que é explicitado este posicionamento marxista através do uso de alguns elementos como as engrenagens, as cores vermelho e preto e os símbolos selecionados para a composição dessa sequência. A próxima sequência fílmica reitera a interpretação que produzimos da anterior, fazendo também relação com a sociedade do consumo. Estamos em uma hora e sete minutos de filme decorridos, as engrenagens em vermelho e preto surgem com números em preto e branco que formam códigos de barra em tons de cinza. A relação entre o consumo e a violência será elaborada na próxima sequência em que aparecem na tela imagens de explosões,

árvores sendo atingidas retornam ao tema da guerra e dos testes nucleares, o qual é repetido exaustivamente ao longo de toda a narrativa. Imagens de lançamento de foguetes e de armas de destruição em massa reafirmam a importância dos conflitos bélicos na contemporaneidade, no meio de tudo isso: o sujeito.

Imagem 83 – Códigos de Barra (01:07:21)

Imagem 84 – Tela é espelho (01:03:05)

Surge a sequência fílmica em que aparecem imagens de crianças brincando em um parque e sobrepostos a elas aparecem na tela ícones da informática, e ao final aparece a imagem do reflexo do rosto de um adolescente na tela de um computador, o que chamou nossa atenção. Interpretamos essa sobreposição entre imagens de crianças e ícones como uma marca da condição da constituição subjetiva contemporânea pelo digital. O reflexo do rosto do jovem na tela marca a subjetivação das novas gerações pela tecnologia digital, afinal é nas redes sociais que se dão as trocas entre sujeitos e objetos simbólicos no século XXI, a troca de olhares foi substituída por um olhar atento às telas que desnudam o mundo para o sujeito. Com base nas cenas nas quais observamos os sujeitos em suas práticas sociais, podemos dizer que o documentário produz sentidos, menos sobre o digital em si do que sobre a relação entre ele e os sujeitos.