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4. CAPÍTULO IV: SOBRE SER-TER UM CORPO: DAS VADIAS ÀS

4.4 Ser-ter um corpo vadio

Ao Ter, o verbo Ser abriu espaço, sem, no entanto, deixar-se apagar. O direito à disposição de si, no Brasil, começa o seu burburinho no início dos anos 80. Ele se estabelece, muito mais pela incitação, produção e suscitação à sexualidade do que pela barragem, exclusão, ocultação, censura ou repressão. (cf. FOUCAULT, 2011b). Esse poder que se exerce pela concessão sofre ao longo de nossa histórica jurídica sobre o corpo uma mutação discursiva. Primeiramente materializado no verbo ser um corpo é ser uma pessoa para, nos anos 80, emergir um novo verbo que separará a pessoa de seu corpo, o verbo ter. Sem abandonar o ser, a pessoa(-corpo) experimenta o ter um corpo à sua disposição.

Descontinuidades marcadas. Em resumo, vimos até aqui, uma série de direitos que restringem a liberdade de disposição do corpo, embora estejamos falando de sujeitos que gozam de sua maioridade e plena capacidade civil e penal. Vimos a proibição para a poligamia – que nada mais se configura como a proibição de manter relações sexuais com outro corpo além de seu cônjuge, em outras palavras, o sexo aqui é o suporte para a perpetuação da família e da propriedade; ainda nesse filão, como nos relembra Viana (2014): “a esterilização de pessoas casadas só pode ser realizada com o consentimento expresso do cônjuge (art. 10, § 5º, da Lei 9.263\96)” – isto é, disposição de si limitada; o estupro de menor também equivale a uma limitação do direito de disposição de si, abarcando, por exemplo, o garoto de 13 anos que mantém relações sexuais com uma mulher de 18 anos (uma prostituta, por exemplo). (cf. VIANA, 2014). A vida e a morte também não fogem dessa linha elástica, de estica e puxa, limitando e abrindo concessões, sendo reguladas a todo momento. Assim é o caso do aborto punível (arts. 124 ao 127, CP) e do aborto permitido (ameaça à vida da gestante e gravidez resultante de estupro, conforme art. 128, CP)103. A eutanásia é punida como homicídio (art. 121, CP) e o suicídio assistido segue o mesmo caminho (art. 122, CP). Após, chegamos ao direito ao próprio corpo de manifestar-se e expressar-se como e quando queira, como no caso do crime nomeado como “Ato obsceno” (art. 234, CP): a limitação à livre disposição do corpo atinge os seus gestos. Por fim, chegamos ao direito de dispor do corpo para fins de prostituição.

103 A ressalva se dá na medida em que a matéria está regulada e prevista para alguns casos, conforme lemos no

artigo 128, do Código Penal, por exemplo, em caso de aborto necessário, “se não houver outro meio para salvar a vida da gestante” e na hipótese de “gravidez resultante de estupro”. Nos demais casos, ou conforme a doutrina nomeia, “aborto eugenésico” – quando se retira o feto por apresentar sérios problemas de saúde; “aborto econômico\social” – realizado em virtude das condições socioeconômicas da gestante; “aborto honoris causa” – com o fim de se ocultar a “desonra” da gestante.

Mergulhado nessa historicidade política, o corpo da prostituta parece ganhar mais fôlego para lutar pelo domínio da palavra “prostituição”, para apoderar-se do discurso jurídico frente a essa palavra, para naturalizar em seu significante outros significados – menos marginais. Nessa luta pela revogação da palavra no arquivo jurídico, o corpo da prostituta no PL “Gabriela Leite”, pretende-se res-significado. Frisamos, abaixo, dois parágrafos da justificativa do PL:

Dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil figuram o da erradicação da marginalização (art. 3º, inciso IV). Além disso, são invioláveis, pelo artigo 5º da Carta Magna, a liberdade, a igualdade e a segurança. O atual estágio normativo – que não reconhece os trabalhadores do sexo como profissionais – padece de inconstitucionalidade, pois gera exclusão social e marginalização de um setor da sociedade que sofre preconceito e é considerado culpado de qualquer violência contra si, além de não ser destinatário de políticas públicas de saúde. O objetivo principal do presente Projeto de Lei não é só desmarginalizar a profissão e, com isso, permitir, aos profissionais do sexo, o acesso à saúde, ao Direito do Trabalho, à segurança pública e, principalmente, à dignidade humana. Mais que isso, a regularização da profissão do sexo constitui instrumento eficaz ao combate à exploração sexual, pois possibilitará a fiscalização em casas de prostituição e o controle do Estado sobre o serviço. (BRASIL, 2012).

Ser-ter um corpo significa, nessa proposta de regulamentação, ser uma trabalhadora e

ter o corpo à disposição de sua profissão; ser uma profissional do sexo e ter um corpo saudável; ser uma pessoa da rua e ter um corpo guardado pela segurança pública; ser uma pessoa livre e trabalhadora na medida em que ter um corpo livre e trabalhador é ter liberdade para gozar de sua igualdade e dignidade (sexual, moral, previdenciária, trabalhista, etc.).

Com efeito, as mudanças propostas pelo PL “Gabriela Leite” têm como escopo o reconhecimento a aposentaria especial, consoante o art. 57 da Lei n. 8.213\1991, com redação dada pela Lei n. 9.032\1995. Afinal, ser um corpo que “sofre com o envelhecimento precoce e com a falta de oportunidades da carreira”, conforme a justificativa do PL, é ter um corpo com direito à igualdade proporcional às condições que atingem esse corpo-pessoa. Além do objetivo de desmarginalizar a atividade, a proposta se dirige a elevar essa mesma atividade ao estatuto de uma profissão – plenamente reconhecida e lembrada no arquivo jurídico.

A questão que se pretende res-significar com esta proposta de profissionalizar a atividade é dirimir um impasse que se coloca dentro do arquivo jurídico. Na atual conjuntura, o acesso ao Direito do Trabalho é limitado quando se tem a prática criminalizada no Direito Penal. Em outros termos, como reconhecer um direito trabalhista de uma atividade ilegal (objeto ilícito), como na hipótese de uma prostituta que presta serviços numa Casa de

prostituição (leia-se: Crime de Rufianismo, tipificado no art. 230, CP)? Haveria, pois, o embate e a incoerência que deve ser afastada na leitura desse arquivo sui generis. O impasse já havia aparecido lá, na década de 80, em um artigo (Figura 20) na revista Beijo da Rua.

Figura 20104 - Prostituição no Direito do Trabalho e o impasse com o Código Penal

104 Fonte:BEIJO DA RUA. Ano I. Dezembro de 1988. p. 5. O material é disponível por meio do Acervo da Fundação

Violência

PROSTITUIÇÃO NÃO É

CASO DE POLÍCIA

Sociedade se mobiliza para mudar lei confusa Embora a prática de prostituição e a permanência de qualquer pessoa em locais públicos não sejam considerados

crimes – o Código Penal prevê penas e

multas para quem explora a prostituição e não para quem é prostituta –, é comum a perseguição de prostitutas e travestis, maiores ou menores de idade, por policiais. Essas situações que incluem abusos sexuais, “mofos” em delegacias, exigências de propinas e até autuações por vadiagem, têm levado grupos de prostitutas e outras zonas da sociedade a

se organizarem para exigir o

cumprimento e até propor mudanças na lei. Viajando por todo o Brasil, Gabriela Silva Leite procura reunir prostitutas

para debater e estimular sua

organização. No Recife, o juiz do Trabalho Aécio Caldeira defende o reconhecimento da relação de emprego entre cafetinas e prostitutas. E, no Rio de Janeiro, o ex-Secretário de Segurança Pública do Estado, Nilo Batista, garante que o Código Penal vai ser alterado, e que a “tendência é a prostituição deixar de ser caso de polícia”.

Reportagem: Flávio Luis César e Nilton Guedes.

Texto final: Flávio Luiz César

[...]

Hábitos confusos e propostas claras Mas a lei e os hábitos legais são realmente confusos em relação à prostituição? Para o juiz do trabalho substituto Aécio Caldeira, do Pernambuco, a prostituição pode ser

vista no Direito tanto pelo lado trabalhista quanto pelo penal, civil ou administrativo. No campo do direito do trabalho, segundo ele, a tendência dos juízes é não considerar o que é proibido pela lei (ato ilícito), como uma relação de emprego entre uma cafetina e uma prostituta. Assim, uma pessoa que diz ser uma prostituta apresentar uma relação trabalhista contra a sua patroa, a cafetina (como falta de condições de saúde), este processo provavelmente deixará de ser da área do trabalho e passará ao Ministério Público, que então abrirá um processo penal contra a cafetinagem. Por outro lado, lembra o juiz, uma mulher que tem contrato de trabalho com uma casa de massagem, mas que na realidade é prostituta, conseguirá levar adiante um processo trabalhista contra o seu patrão. [...]

O juiz Aécio Caldeira acrescenta que a legalização da atividade da prostituta e o reconhecimento da relação de emprego entre cafetina e prostituta certamente serão benefícios do ponto de vista do trabalho e da saúde, por exemplo – poderia haver uma fiscalização adequada em relação a doenças sexualmente transmissíveis, e a prostituta passaria a contar com a Previdência Social, podendo inclusive se aposentar. Além disso, ela começaria a ter direito ao FGTS, ao 13º salário e a férias, o que evitaria ainda o enriquecimento ilícito do empresário da prostituição, que não paga impostos, nem remunera seus empregados nesses direitos trabalhistas – explica. [...].

O discurso da regulamentação da profissão já havia irrompido em 1988 no arquivo jornalístico (Figura 20). Dentro do arquivo jurídico, entretanto, isso só irá ocorrer, com a proposição dos PLs referentes à temática, recentemente. Optamos por trazer essa reportagem da Revista Beijo da Rua em razão da continuidade do discurso que se estabelece com o atual PL “Gabriela Leite”. Com efeito, descriminalizar a casa de prostituição, conforme propõe o Art. 229 (Quadro 3), traria a possibilidade de demandas judiciais de cunho trabalhista (reclamação de 13º salário, FGTS, férias, etc.), além de permitir uma fiscalização por parte do Estado desse ambiente de trabalho. Ao retirar a criminalização do efeito de memória que se aciona a partir da palavra “prostituição”, teríamos uma atualização, deslocamento de sentido da prática: prostituição é uma profissão, reconhecida formalmente.

Em primeiro lugar, a relação que se pretende atualizar com essa proposta do PL “Gabriela Leite” se encontra numa quebra ou ruptura discursiva daquilo que poderíamos chamar de “prostituição é sinônimo de vadiagem”. É interessante notarmos como a opacidade da palavra “prostituição” permite que ela assuma alguns significados, em detrimento de outros. Longe do estatuto de Profissão ou trabalho, a prostituição se inscreve dentro do arquivo jurídico como esse lugar de ociosidade, além do lugar dos maus costumes, do atentado ao pudor e à família, etc. Não raramente, as prostitutas eram obrigadas a assinar os famosos tratados de bem viver, seus corpos foram submetidos a uma ordem dos gestos de uma Polícia de Costumes, como vimos no capítulo anterior. Não raramente encontramos estampados nas páginas jornalísticas algumas notas de prostitutas enquadradas por “não trabalharem”. Mas não se diz que elas exercem a “profissão mais antiga do mundo”?

Figura 21 - Prostitutas presas por Vadiagem105

Mulheres prêsas não saem até 4º-feira

Cerca de 50 mulheres foram presas na madrugada de ontem nas proximidades do Centro da Cidade, em obediência à Circular do Secretário de Segurança, que mandou recolher ao xadrez até depois do Carnaval todas as prostitutas e homossexuais.

A medida visa impedir que os turistas em visita ao Rio assistam espetáculos

deprimentes. As mulheres foram detidas na Cinelândia, Lapa, Glória, Praça 15, Largo da Carioca e Ruas do Riachuelo, Mem de Sá e Frei Caneca. A polícia está prendendo também todos os homens que vão pedir a soltura das prostitutas. PROVAR TRABALHO

As mulheres e os homens estão sendo autuados por vadiagem; só escapa quem

fizer prova de trabalho. Policiais, militares e funcionários públicos que não ficam detidos são encaminhados às repartições de origem. Todos poderão ser enquadrados ainda no crime de tráfico de escravas, caso seja positiva a denúncia de exploração de mulheres.

Das 50 mulheres presas ontem, Abdias Bezerra de Araújo, Izabel Neves, Maria Aparecida Pereira, Vilma da Conceição Nascimento, Rosilene Clemente dos Santos, Deslida de Oliveira, Railda Maria Nazaré, Jaci Isaías dos Santos, Cláudia Maria de Azevedo, Francelina Fonseca Venâncio e Luzia Maria de Jesus tinham antecedentes criminais. (JORNAL DO BRASIL, 1970).(grifos nossos).

A Figura 21 é interessante por nos trazer uma historicidade, dentro do âmbito jurídico, da atividade das prostitutas: elas são vadias – por configurarem como sujeito

105

Fonte da Imagem: JORNAL DO BRASIL. Mulheres prêsas não saem até a 4º feira. Sexta-feira, 30\11\1970. 1º Caderno. Edição 00253. p. 16.

ativo da contravenção penal de Vadiagem – e são criminosas – ainda que se prostituir não configure crime, como já dissemos. O próprio exercício do biopoder que tende a normalizar os corpos, retirar deles sua docilidade e produtividade impele a dizer: a dizer sobre os “espetáculos deprimentes” das prostitutas, a dizer que elas são vadias por não trabalharem, a dizer que algumas delas possuem “antecedentes criminais”. Vemos, aí, alguns sentidos que se instalam e se cristalizam ao redor do significante “prostituição” dentro do arquivo jurídico – não se diz, por exemplo, que elas são comerciantes, profissionais, casadas, mães, etc.

A pergunta é: quais são as condições legais e históricas que permitiram a irrupção de um enunciado como este do Jornal do Brasil em 1970 (Figura 21)? Encontramos no nosso arquivo jurídico, a Lei das Contravenções Penais (Lei n. 3.688, de 1941) que nos informa o enquadramento ao qual as prostitutas da nota jornalística foram submetidas:

Vadiagem

Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita:

Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses. (BRASIL, 1941). A ociosidade, pensando com Foucault (2015), não foi uma invenção do século XIX. É possível, por um giro, falarmos em uma história da preguiça, ou seja, “das maneiras que se escapa à obrigação do trabalho, como se subtrai a força de trabalho, como se evita ser retido e fixado pelo aparato de produção” (FOUCAULT, 2015, p. 173); é possível, em contrapartida, falarmos dos períodos laborais, incorporados ao sistema econômico, que foram destinados ao ócio. A ociosidade, uma forma de preguiça clássica, nos séculos XVII-XVIII, poderia ser definida como a folga “codificada, institucionalizada, certa maneira de distribuir o não trabalho ao longo dos ciclos de produção, de integrar a ociosidade na economia, assumindo-a e controlando-a dentro de um sistema de consumo” (FOUCAULT, 2015, p. 173). Regida pelo par vigiar-punir, a ociosidade, segundo Foucault (2015) passa a ser detectada e controlada em duas instâncias: a local, quase individual, movido por uma pressão em que o chefe tentará retirar o máximo possível da força laboral do seu operário; e a instância estatal que, em largas linhas, seria a obrigação de pôr todos a trabalhar para aumentar a produção.

Na “caça às vadias”, em 1967, o presidente Castelo Branco propôs uma emenda ao artigo da Vadiagem. Dizia: “quem, dedicando-se de modo exclusivo ou de forma eventual

à prostituição, procura aliciar homens em lugar público, para o comércio sexual, constrangendo ou importunando as pessoas presentes ou em trânsito pelo local”. Na justificativa para o projeto, a figuração das prostitutas como sujeito especificamente ativo para a contravenção se dava em razão da necessidade de “reprimir a libertinagem e o despudor na via pública das meretrizes que, à luz do dia, se exibem nas ruas convidando ou excitando homens ao comércio sexual”. (grifos nossos). Uma moral dirigida muito mais aos homens que propriamente às mulheres: “moral viril, consequentemente, na qual as mulheres apareciam apenas a título de objetos, ou no máximo, como parceiras que convém formar, educar e vigiar, quando elas estão sob o seu poder e das quais, em contrapartida, é preciso abster-se, quando estão sob o poder de um outro (pai, marido, tutor)”. (FOUCAULT, 2010b, p. 209).

Mais uma vez a ofensa à moral e os bons costumes tipificava a conduta, os gestos, o eu-pele do corpo das prostitutas. Vemos, aqui, uma reativação de um enunciado, revogado no Código Penal e realocado em lei específica, a Lei das Contravenções Penais. Com efeito, em 1890, antes mesmo da “Vadiagem” ser considerada uma simples contravenção, o fato foi tipificado como um crime, no então Código Penal:

DOS VADIOS E CAPOEIRAS

Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes:

Pena – de prisão cellular por quinze a trinta dias. (BRASIL, 1890). A singularidade que se vê aqui, em relação à Lei das Contravenções, diz respeito àqueles casos que ameaçassem a moral, a tranquilidade pública e os bons costumes, podendo ser identificada à desordem. Em outros termos, no então CP de 1890, a vadiagem, ao lado da capoeiragem, tipificados como crime, foi um enunciado possibilitado pelas próprias condições históricas. Dois anos atrás, a Lei Áurea havia tornado “livres” os homens dos grilhões e chibata. Expulsos da senzala e longe da Casa Grande, os ex- escravos, sem trabalho, sem moradia, foram excluídos de sua cultura quando a capoeiragem passa a ser lida como crime. Criminalizados, os “vadios” e “capoeira” entram em um regime de controle social, esses corpos passariam a ser marcados por sua ociosidade, por sua capoeira, por uma ocupação ilícita ou que ofendesse a moral e os bons costumes.

A situação da parcela feminina era ainda mais precária, como nos alerta Engel (1988), uma vez que o mercado de trabalho era bastante restrito para as mulheres: além do serviço doméstico, não restava à mulher livre e pobre, muitas alternativas, talvez no pequeno comércio (quitandeiras, vendedoras de quitutes), ou então no domínio do artesanato, de costura e outras atividades como lavadeiras, cartomantes, feiticeiras, dançarinas, atrizes e prostitutas – “quase todas, ocupações profundamente depreciadas na sociedade na época” (ENGEL, 1988, p. 25). Somente com o advento do Estatuto da Mulher Casada que vislumbramos dentro do arquivo jurídico uma abertura um pouco maior para a entrada no mercado de trabalho da mulher. Entretanto, como o próprio nome diz, a compilação dessas leis dirigia-se à mulher casada. As prostitutas continuariam com a pecha de “vadias” – em todos os seus sentidos.

A reativação destes enunciados a respeito da Vadiagem dentro do arquivo jurídico, separado por quase um século, nos permite abrir outro capítulo referente ao domínio que relacionou o trabalho e a mulher. Se por um lado, as prostitutas eram tidas como “vadias” e, por isso mesmo, submetidas ao recolhimento nas Delegacias de Polícia, como nos noticia o jornal (Figura 21), por outro giro, a prostituição se configurou como uma maneira de sobrevivência e alternativa de trabalho. A opacidade da linguagem nos coloca no liame entre o sentido de “vadio” – no masculino – delimitado pelo arquivo jurídico e aquele outro sentido, feminino, que não se restringe à ociosidade, mas que configura um dos muitos equivalentes de “prostitutas”. A palavra, afinal, não muda de sentido apenas de acordo com quem as emprega, mas, sobretudo, a partir da posição-sujeito (FOUCAULT, 2013a): vadio é o homem que não trabalha (a oração adjetiva restringe). Vadia é a mulher. (e ponto).

Não por acaso, a Marcha das Vadias – que poderia ser lida como a Marcha das

Putas – em 2011 sacode esses sentidos em torno da palavra e do estatuto sócio-histórico

da mulher. Nessa ocasião, com efeito, o movimento feminista res-significou o termo quando elegeu o seguinte lema: “Se ser livre é ser vadia, eu sou vadia!” em resposta àquele infeliz enunciado, proferido por um policial no Canadá, que declarou: “as mulheres deveriam evitar se vestirem como vadias para não serem vítimas de ataques!”. A mulher de roupa curta é vadia; a mulher, mãe solteira, é vadia; a mulher que trabalha fora é vadia. Vadia em movimento, se tornando a regra: a exceção seria ser mulher “honesta” ou “santa”. Todas essas mulheres são putas ou santas, conforme o desvio ou a norma.

Vemos como o significante quando colocado na linha do acontecimento se reatualiza, ao mesmo tempo em que reativa vestígios de outra época. A reportagem da prisão das Vadias – prostitutas – e Vadios – homossexuais – (Figura 21) se configura nesse espaço da sexualidade desviante, ou seja, não se trata de um simples termo relativo à ociosidade, ao não trabalho – ainda que se justifique a prisão a partir desse viés jurídico. Vadias são essas mulheres que se expõem a “espetáculos deprimentes”; Vadias são essas mulheres que não “fazem prova de trabalho”; Vadias são essas mulheres com “antecedentes criminais”.

A sexualidade feminina e o trabalho se entrelaçando nas palavras. Em A

dominação masculina, Pierre Bourdieu (2005) nos convida a problematizar as relações postas como evidentes entre o corpo biológico dos sexos (corpo feminino e corpo masculino) – e, especialmente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais – e as justificativas naturalizadas a respeito da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho. Em outras palavras, a diferença anatômica se torna caução e fundamento natural que alicerça a esta visão social dos trabalhos.

Assim, como vimos quando da análise da vagina de Courbet, o corpo feminino e seus órgãos sexuais por muito tempo obedeceu “às mesmas oposições fundamentais entre

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