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PARTE IV O Contexto e as Dimensões da Construção do Pertencimento Étnico-Racial

SER NEGRO, SER BRANCO E SER MESTIÇO

Os significados sobre como os participantes se vêem e como são vistos pela sociedade étnico-racialmente variaram entre “se definir como negro”, com a consciência de que vivemos num país de diversas origens; “se definir como mestiço”, assumindo a mistura étnico-racial que aqui existe; e “se definir como branco”, com a consciência de que esta é uma posição de privilégio na sociedade brasileira. Estas compreensões foram construídas pelos participantes no seio familiar e da comunidade de origem, no envolvimento com a prática da Capoeira Angola e no contato com o conhecimento científico.

A auto-identificação de ser negro pode ser adquirida em meio aos processos de enfrentamento das dificuldades que uma família negra sofre. O significado de nunca ter tido problemas de se reconhecer como negro foi expresso por Adegokê. Para ele, a sua família reforçou esta compreensão, pois todos, pai, mãe e avós, são negros e, como a maior parte desta população, sempre teve que lutar para sobreviver, porque as dificuldades estão colocadas no cotidiano deste grupo étnico-racial. Por meio do contexto familiar, das dificuldades e das lutas engendradas, processos educativos ocorreram e o sentimento de pertencimento foi-se construindo nele.

O conhecimento de que a África é o berço da humanidade reforça a compreensão de ser negro em Adegokê. Não só nele, mas também em Addae que é branco e concorda com seu colega que todos(as) tivemos origem na África. O primeiro destaca que, de certa forma, para quem é negro é mais fácil se identificar ou ser identificado pelos outros com a cultura de origem africana, pois remete diretamente à sua própria, mas que na verdade pelas descobertas científicas todo(as) temos origem africana, negros(as) e não-negros(as). Ele se expressa desta forma:

“A Capoeira Angola tem matriz africana, então de certa forma para quem é negros seria mais fácil de se identificar com a cultura que é própria da sua origem. Mas na verdade, pelo conhecimento que a gente tem hoje, que o berço da humanidade é a África, então nós dois44 temos a origem africana. Mas aí, a identidade negra aparece mais obviamente, mesmo que você não queria ou tenha essa dificuldade de assumir, a cor da pele já mostra isso.”

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No processo de construção do pertencimento étnico-racial, a Capoeira Angola contribuiu para o fortalecimento de tal sentimento na medida em que os participantes, negros e não-negros, quando entram para o grupo de Capoeira Angola, descobrem/aprendem que têm que lutar pelos seus pares, pelos(as) negros(as), demonstrando e vivendo um sentimento de comunidade, de humanidade e a aquisição de uma consciência histórica da opressão racista. Este trabalhado é feito dentro do grupo segundo o que Adegokê diz:

“Mas como é que você trabalha isso (as diferenças) dentro da Capoeira Angola, a não-discriminação, e trabalha com a discriminação que existe fora da Capoeira Angola? É reforçando a identidade. Quando você tem uma possibilidade, um local como esse grupo da Capoeira Angola que possibilita você reforçar a sua identidade e despertar também a identidade daquele que pode ser considerado não-negro, que está fazendo a mesma coisa que você, é uma prática não-discriminadora. Você vai para o exterior com essa visão que você precisa despertar, fortalecer aquelas pessoas que são negras, fortalecer isto, e a Capoeira Angola permite isso. Você vai fazer uma luta, um retorno do que a Capoeira Angola te ensina para você retornar (para a sociedade)”.

Os processos educativos da Capoeira Angola reforçam a identidade coletiva de seus praticantes, negros e não-negros. Este processo permite que a identidade individual também possa ser reforçada, constituindo um processo educativo no qual pessoas podem aprender a conviver num ambiente não-discriminador e, ainda por cima, aprendem a levar isto, a devolver este conhecimento, para a sociedade.

A construção do sentimento de pertencimento étnico-racial foi iniciada na família, que forneceu a base para o enfrentamento das dificuldades encontradas na vida e o reconhecimento das diferenças sociais impostas, conforme Adegokê indica. Esta base de identificação foi complementada pelos ensinamentos e aprendizados da Capoeira Angola que contribuíram para fortalecer o sentimento de comunidade e de solidariedade em relação aos pares negros. Estes sentimentos e posturas são apontados tanto por angoleiros(as) negros(as)

como Adegokê, Gamal e Abubakar, quanto por não-negros como Addae e Nassor, que se solidarizam com a causa desta população oprimida racialmente.

A identificação étnico-racial de um afro-descendente pode ser adquirida somente após o início da prática da Capoeira Angola. Ao contrário do que foi exposto sobre a influencia positiva da família na auto-identificação de Adegokê como negro, em outro contexto, Abubakar só veio a descobrir a sua origem étnico-racial depois de começar a praticar Capoeira Angola. Ele fala que “foi o mundo que o ensinou, o mundo da Capoeira Angola”. Destaca que quando era criança, seus pais, seus irmãos(as), segundo seus dizeres “não tinham educação”, e acabaram não colaborando para que ele adquirisse o conhecimento sobre sua origem. Depois, ele veio, a saber, que é descendente de índio, europeu e africano. Sua avó era índia, foi pega na mata, seu avô português, seu pai descendente de africano.

O processo de auto-identificação de uma pessoa como negra envolve o reconhecimento de que o Brasil é composto por uma população miscigenada. Abubakar e Gamal se identificam como negros, mas reconhecem que o nosso país é um país mestiço, que não há raça pura. Eles chamam a atenção para o aspecto de que o Brasil é um país misto e que não existe uma pessoa que não tenha um pouco de negro dentro de si. Não há uma raça pura, somos um povo só, o qual a cor não deve importar, e que temos que nos conscientizar disso. Uma pessoa pode ter pele branca, mas seu avô, seu tataravô pode ser negro, então ela é descendente.

Afirmar a descendência africana, o ser negro, envolve reconhecer e assumir a diversidade cultural existente em nosso país. Estes mestres destacam a mistura étnico-racial que temos no país, que a cor da pele não deve importar, a riqueza cultural deveria ser um aspecto de união do povo brasileiro, pois temos que assumir a nossa diversidade. Na Capoeira Angola a conscientização desta união acontece, pois há alunos(as) com cor de pele diferentes, mas que, no entanto, assumem e valorizam a cultura afro-brasileira como sua própria cultura. Esta prática social não discriminadora faz uma inversão, segundo estes mestres; há uma preocupação e um cuidado para lidar com as diferenças, prática que permite que as pessoas sejam quem elas são. No entanto, Abubakar e Gamal têm a consciência de que não é esta realidade que impera na sociedade, pois na sociedade há uma negação de grande parte da diversidade e riqueza cultural, negação que acontece em relação à própria Capoeira Angola.

Em meio aos processos educativos da Capoeira Angola que valorizam a cultura afro- brasileira como um patrimônio de todos os brasileiros, pessoas brancas também podem se assumir étnico-racialmente. Angoleiros brancos podem aprender por meio da convivência com negros que ser branco na sociedade brasileira é uma condição de privilégio e que ser

negro é uma condição que possibilita a experiência de discriminação e humilhação em qualquer lugar que esteja. Nassor e Addae apontam, a prática da Capoeira Angola e seus processos educativos ajudam às pessoas a se perceberem no mundo e a perceberem que existem outras pessoas diferentes de si. Nesse sentido Nassor relata, de forma muito emocionada, uma experiência vivida com outros “camaradas” negros que revela as diferentes maneiras como negros(as) e brancos(as) são tratados em nossa sociedade:

“Posso dizer tanto que tenho sorte [de ser branco], porque eu sei da dificuldade que os negros têm aqui no país. Eu sei, se eu chegar numa porta de um banco, eu vou passar. Chega o mestre Abubakar, os outros vão olhar. Chega o mestre Gamal e ... eu já vi isto. Eu vi uma vez aqui em São Carlos mesmo (pausa para a emoção), que eu e o mestre descemos (pausa para emoção)... só sei que a gente foi no Bradesco. Ficou o negro que tinha que ir lá no outro banco. Rapidinho a polícia chegou e deu uma geral em todo mundo, porque era negro que esta ali e a placa do carro era de fora. Eu chego com a placa de qualquer lugar do Brasil...e paro em qualquer lugar, entro e saio!”

O aprendizado sobre as diferentes experiências vividas entre pessoas brancas e negras é considerado importante por estes dois angoleiros brancos. Entretanto, Nassor destaca, que tem dificuldades de dimensionar e pensar a problemática das relações entre brancos(as) e negros(as). Há uma falta conhecimento e consciência sobre estas diferenças. Mas em um ponto Addae e Nassor concordam: a convivência e os aprendizados na Capoeira Angola podem romper as barreiras sociais, étnico-raciais e de preconceito entre brancos(as) e negros(as). Eles afirmam que esta cultura ajuda as pessoas a se sentirem um ser humano como um todo e a se sentirem como humanamente iguais.

Outro ponto de vista em relação à auto-identificação étnico-racial, é o de uma pessoa pode não querer se auto-identificar étnico-racialmente ou definir-se como mestiça. Nesse sentido, Kayodê afirma a crença na mistura que temos em nosso país e que não se julga no direito de prestigiar somente um lado e abandonar os outros ao esquecimento, porque todos tiveram importância na sua formação e estão no seu sangue. Ele disse:

“Essa coisa de “eu sou afro-descendente”, mas sou também índio-descendente e euro-descendente. É só a sua descendência africana que tem valor? Então, é este tipo de comportamento que eu não acho legal quando tem esse tipo de discussão partidarista”.

A afirmação da descendência africana aparece como uma postura de valorização exclusiva. Para Kayodê, valorizar unicamente uma das raízes é entendido como uma postura de menosprezo em relação às suas outras raízes culturais. A problemática étnico-racial é apontada por ele como uma coisa moderna, da década de 80. Nesse mesmo sentido ele entende que a política de ações afirmativas é segregacionista e recente. Esta visão política não é adotada por ele. Kayodê diz que tenta combater este discurso, porque pretende afirmar uma etnia brasileira que possa ser reconhecida fora do país. Para ele, os estrangeiros ficam perguntando o que é que o brasileiro é? Não é índio, não é branco, não é negro, é tudo isto misturado. Ele declara ter uma visão política menos radical em relação às ações afirmativas porque entende que o que a sociedade necessita é mudar a sua história de opressão. Para que isto ocorra Kayodê diz que tem que mudar a cultura, a forma de pensar, a forma de ver o mundo.

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