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1. Noção de envelhecimento/velhice

2.4. Ser um velho hoje

«O Renascimento considerava que o homem se deslocava num universo imutável e geo- métrico dotado de atributos permanentes. O mundo exterior, mesmo infinito e aberto à acção, obedecia, no entanto, a leis fixas e eternas que o homem só podia registar. Com os modernos, a ideia de um real que impõe as suas leis mostra-se incompatível com o valor da mónada individual ontologicamente livre.» (Lipovetsky, 1989: 88).

Este princípio que, genericamente, caracteriza o momento que viria a ser de incontornável mudança (do ponto de vista ideológico, social, cultural, artístico...), dá também conta das transformações das relações humanas, pois o homem moderno, con-

32 quistando a liberdade para dispor de si próprio, de fazer escolhas, vai alimentando muito mais o individual do que o coletivo.

Ainda que se reconheça a pertinência da reflexão sobre as implicações desta nova fase, bem como da do chamado pós-modernismo que se lhe seguiu nas várias esfe- ras da vida do homem, não é, por motivos óbvios, num trabalho desta natureza, que tal tem cabimento. Interessa-nos, portanto, destacar este momento uma vez que, enquanto «desagregação da sociedade dos costumes», tendo permitido «a emergência de um modo de socialização e de individualização inédito, em ruptura com o instituído desde os séculos XVII e XVIII» (Lipovetsky, 1989: 7), ele trouxe, inevitavelmente, conse- quências para a perspetivação da velhice, do processo de envelhecimento e do lugar do velho na sociedade.

Nas palavras de Gilles Lipovetsky, vive-se, desde então, a era do vazio, «o vazio que nos governa, um vazio sem trágico nem apocalipse», com reflexos inevitáveis nos ideais (em derrocada), a par da imergência de uma «nova estratégia que destrona o pri- mado das relações de produção em proveito de uma apoteose das relações de sedução» (Lipovetsky, 1989: 119, 17).

Ora, não será difícil supor que, numa era de «sedução non stop» (Lipovetsky, 1989: 17), a velhice não colherá grande simpatia e a sua aceitação não se processa de forma fácil. Recolhendo importantes reflexões de vários ensaístas, Lipovetsky conclui:

«o moderno medo de envelhecer e de morrer é um elemento constitutivo do neo- narcisismo; o desinteresse pelas gerações futuras intensifica a angústia da morte, enquanto que a degradação das condições de existência das pessoas idosas e a necessi- dade permanente de valorização, de se ser admirado pela beleza, pelo encanto, pela celebridade, tornam a perspectiva do envelhecimento intolerável» (Lipovetsky, 1989: 58).

Não envelhecer, permanecer jovem torna-se, pois, um imperativo que tem como reflexo, de certa forma, a «dignificação do corpo», no sentido em que ele se identifica com a pessoa que o tem, perdendo o seu estatuto de alteridade. Daí ser importante, urgente tratar dele, zelar pela sua boa condição, contrariando os efeitos que a passagem do tempo tem sobre ele, através daquilo a que Lipovetsky chama de «reciclagem cirúr- gica, desportiva, dietética, etc.» (Lipovetsky, 1989: 58).

Esta preocupação, levada ao exagero, a par da derrocada de valores, tem conse- quências na forma como os velhos são vistos e (não) aceites na sociedade e/ou na pró- pria instituição família e basta um olhar minimamente atento à realidade para concluir, sem grande dificuldade, e ainda que em jeito de interrogação reflexiva, «quem acredita

33 ainda na família quando as taxas de divórcio não deixam de subir, quando os velhos são corridos para os lares, quando os pais querem continuar "jovens"...» (Lipovetsky, 1989: 34).

Numa sociedade dominada pelo poder da imagem, pretende-se anular as diferen- ças – o velho deve procurar manter-se jovem –, o que demonstra o preconceito e a inca- pacidade para reconhecer os velhos enquanto grupo social ativo, mesmo que se trate de uma atividade, por força das circunstâncias, diferente. Segundo Maria João Simões, esta dificuldade em aceitar as peculiaridades dos velhos e das características inerentes à sua faixa etária acontece devido a um conjunto de estereótipos, de imagens interligadas e muito atuantes socialmente, das quais destaca «a da resignação, a do conservadorismo imobilista, a da sabedoria ou da desatualização, a do alheamento do mundo circundante e a da anulação do desejo» (Simões, 2005: 69).

Estes e outros estereótipos conduzem a uma espécie «armadilha cultural» (Hazan apud Fonseca, 2007: 66), que influencia significativamente a atitude da socie- dade e suas instituições face aos velhos, que tendem a agir através dos comportamentos que veem ser esperados, naquilo a que, como anteriormente referimos, Sibila Marques chama de profecias autocumpridas, simplificando desta forma: «A questão é basicamen- te esta: se me tratam como um incapaz, é muito mais provável que me torne mesmo um incapaz» (Marques, 2011: 87).

Uma das principais "acusações" ou imagem negativa de que a velhice é alvo, na atualidade, é precisamente a de incapacidade, porque corresponde a um estado de esteri- lidade, quer intelectual, quer físico. Esta carga negativa é acentuada pela mais ou menos inconsciente tentativa de negação do próprio envelhecimento – são cada vez mais as pessoas que não querem admitir que estão ou vão envelhecer (Fonseca, 2007: 66) –, definindo-se, assim, os contornos daquilo a que poderíamos chamar de gerontofobia.

Claude Olievenstein, médico alemão, ao ver-se "surpreendido" pelo processo de envelhecimento já e inevitavelmente em curso, que procura compreender através de uma «fenomenologia dos sentimentos, das sensações, das emoções», reflete a este pro- pósito:

«Julgo ter sido correcto com os velhos; no entanto, durante toda a vida, sempre procurei a companhia de pessoas mais novas do que eu. Devo confessar que algumas foram um pouco compradas. A ilusão da fonte de juventude é mais do que uma esperança: é uma necessida- de. Alguns acreditam nela, outros não. Os velhos, rodeados de velhos, cheiram a naftalina, apesar da sua sabedoria. Convivendo com os mais jovens, damo-nos a ilusão de uma certa imortalidade, de uma proteção contra a morte» (Olievenstein, 2000: 7).

34 De facto, como constata o médico Ferraz Gonçalves, a nossa sociedade «realça a juventude, a riqueza, o sucesso, e onde a velhice, a pobreza, o fracasso, a doença e sobretudo a morte são naturalmente afastados como realidades inconvenientes, em que não se deve pensar e que se deve mesmo evitar ver nos outros» (Gonçalves, 2007: 98).

Mas a esperança média de vida aumentou, a taxa de natalidade diminuiu e o envelhecimento demográfico tornou-se uma realidade, pelo que se impõe, se não for do ponto de vista moral, cívico ou ético, pelo menos do ponto de vista social e político, a reflexão sobre a velhice e o lugar dos velhos nas relações sociais.

3. Figurações da velhice na cultura pós-moderna

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