Sergipe e o ciclo de couro Felte Bezerra
A criação de gado foi uma atividade que sempre timbrou a economia sergipana, desde os
primeiros tempos de nossa existência.
Os colonos luso-baianos que para aqui se deslocaram, logo após a conquista de Cristovam
de Barros, alegam, infalivelmente, em seus pedidos de terra, que trazem entre outras cousas,
suas criações, além das miunças (gado, ovino e caprino).
Acompanhando o povoamento de Sergipe existe assim, em nossa história, um verdadeiro
ciclo de economia pastoril. Geograficamente ele se traduz nos currais espalhados em nosso
território, nos pousos e feiras que geraram núcleos de população atuais, cujos nomes indicam
claramente suas origens, como em outros tantos pontos do Brasil. E aí estão campos (hoje
Tobias Barreto), ou Estância, na bacia Real Piauí mas propriamente no vale do rio Real, como
Curralinho ou Curral Novo, ou Ilha dos Bois, na margem sul do São Francisco, que nos
pertence. Daí a função especial de ambos esses rios limites tipicamente criadores, posição que
conservavam através dos tempos e que ainda mantém em nossos dias.
Desde o principio da vida da Capitania estabeleceu-se uma correlação muito íntima entre
os dois elementos fundamentais de nossa economia, que desde logo aqui se instalaram: a cana
e o gado. Os engenhos necessitavam da carne para alimentação e dos bois para o serviço de
fabricação de açúcar. As boas pastagens locais e as reses trazidas por quantos se deslocavam
para aqui vindos de Salvador ou do Recôncavo na qualidade de sesmeiros, facultaram a
posição que Sergipe del Rei tomou, como manancial de carne para a subsistência das
holandeses, fossemos o centro abastecedor de carne para as tropas e gente de ambos os
contendores.
O acreditado historiador dos flamengos GASPAR BARLEU declara que, antes da invasão
dos seus, Sergipe já possuía, pelo menos, quarenta currais de gado. Mas FELISBELO
FREIRE dá muito mais que isso, cerca de quatrocentos, entre os quais os pertencente a
Camarão, origem da atual cidade de Siriri (vila do Pé do Branco), durante as lutas Sergipe
serviu a dois senhores, e todos ou quase todo o gado fora consumido e apreendido pelos
exércitos dos dois lados: o Conde de Bagnuolo levou e destruiu umas três mil cabeças,
segundo FELISBELO, enquanto BARLEU afirma que ele abatera cinco mil e levara oito mil;
além de que os holandeses abateram três mil, afora o que levaram para suas fortificações. No
que estão acordes os historiadores citados.
Após a retirada dos batavos, o criatório ainda constituía fonte de receita da Capitania a
agora única renda existente.
É que a sangria das lutas com os invasores não lograra extinguir o gado de Sergipe. Já em
1651, apenas seis anos após a eliminação definitiva dos flamengos de nosso território, foram
fornecidas à Bahia trezentas reses, e mais ainda no ano seguinte. Daí por diante, a Capitania
vai sofrer sempre e de quando em quando a perda de gado, desviado para Salvador, sob
pretexto de garantir a alimentação do povo e das tropas, por ocasião de um eternamente
esperado ataque à capital da Colônia. O fantasma da invasão acompanhou, por muito tempo, a
gente baiana, e Sergipe del Rei teria que abastecer a grande praça.
A penetração para oeste também concorreu para o estabelecimento de fazendas pastoris.
Internavam-se os homens, com seus rebanhos, afim de escaparem às requisições tantos de
portugueses como de holandeses, ao tempo das lutas em nosso território. Gado que vivia à
solta, em criatório extensivo, feito para além da zona dos canaviais. Acolá não era preciso,
pelo alto Vaza Barris, pelas cabeceiras do Sergipe, passavam os tangedores dos Garcia d’Avila ou seus rendeiros; e mais tarde o fracionamento dos latifúndios iria provocar querelas entre herdeiros e sesmeiros, questões que se haviam de projetar na divisão administrativa da
terra.
O cuidado da Casa da Torre no apossamento do solo sergipense é indisfarçável, pelo valor
das terras, próprias para o desenvolvimento e acomodação de criatório extensivo. O número
dos que povoavam Sergipe, saídos de Tatuapara, já permite a expressão de criador
“sergipano”, que se queria emprestar a Garcia d’Avila. “A penetração do gado em Sergipe foi, para o norte do Brasil o mesmo que a do Paraguai para a bacia do Prata. Marcava as vias de
acesso e fornecia os meios de subsistência aos pastores, enquanto não completava a sua
evolução como fonte econômica”, analisa J. F. de ALMEIDA PRADO.
O que foi a importância dessa atividade pastoril no interior nordestino, nos tempos
coloniais, descreve-se o piedoso ANDREONI ANTONIL, em sua “Cultura e Opulência”,
quando batiza o São Francisco de rio dos currais. E é bem de ver que Sergipe participou desse
admirável ciclo de nossa economia colonial, dentro do mesmo quadro de devassa e posse de
território, miraculosamente ocupado por poucos, em larguíssima extensão de terreno.
Confirma-se, deste modo, no caso particular de Sergipe, o que se vê no quadro brasileiro: o
valor da pecuária não apenas estritamente econômico, também histórico e social, na ocupação
do solo e povoamento da terra. Ajusta-se o nosso Estado, por conseguinte, no grande ciclo do
couro, com os caminhos de ida e volta que forneceu aos tangedores.