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Significação de alguns símbolos culturais afro-brasileiros resgatados na liturgia

Como vimos, a Igreja, especialmente através da Sacrossanctum Concilium, fala da inculturação da liturgia e, nos números 37 a 40, pede variações e adaptações da liturgia à mentalidade dos diversos povos e culturas, pois a liturgia não deve ser estranha a nenhuma cultura. Neste processo, a liturgia é assimilada e expressa com símbolos próprios das culturas. A liturgia inculturada em meios afro é este jeito particular de celebrar o mistério de Jesus Cristo, não somente adaptando o rito romano, mas incorporando símbolos da cultura afro-brasileira nos espaços que o mesmo possibilita. Este processo enriquece a Igreja no que diz respeito à diversidade das manifestações de fé512. Esta liturgia, através de símbolos afro, tem buscado resgatar as raízes culturais que fazem parte da identidade do negro e negra, e que estão de acordo com as orientações do magistério da Igreja, como já comentamos antes. Alguns destes símbolos estão na base da cultura negra e merecem destaque neste nosso estudo513:

a) O espaço: evidencia uma espiritualidade que brota da vida e que resgata muito dos nossos ambientes familiares, por isso é preparado e ornamentado carinhosamente. Onde é possível, vive-se a mística da roda, do círculo ao redor do altar. Recorda o modo como os cristãos celebravam a Eucaristia, durante os primeiros séculos. Para o povo negro, a importância dada a este ambiente se explica pelo fato de que “o espaço no qual nos reunimos para a liturgia ensina-nos muito sobre nossa fé”514.

b) A natureza: Esta é como um grande templo; é santuário de Deus. O povo negro é um povo muito ligado à natureza, por ela ser considerada um ser vivo, maternal e fecundo. Isso o leva a celebrar com abundância de água, fogo, folhas, terra, flores... Em algumas celebrações, quando possível, tiram-se as sandálias para sentir-se mais unido a esta „mãe‟, da qual todos e todas viemos.

c) A comunidade: A valorização da comunidade é fundamental. Vivendo em comunidade, as pessoas encontram proteção, aconchego, amparo. Para o povo negro, a comunidade é centro de suas vivências, de sorte a não conceber „salvação fora da comunidade‟. Fora da comunidade, as pessoas ficam desorientadas, desnorteadas e perdem o sentido de viver. As pessoas nasceram para viver em comunidade e só encontram sentido na ajuda mútua. Quando se celebra a Eucaristia, a comunidade se sente um só corpo sacerdotal (cf. SC 48), de maneira

511

A referência a este apêndice foi feita na Nota 381. Trata-se do item 3.5, sobre a inculturação litúrgica em meios afro-brasileiros vista a partir do Magistério latino-americano e caribenho.

512

CNBB. Pastoral afro, p. 55.

513

Cf. SOARES, E. Op. cit. p. 49. Isso é reforçado por J. G. Rocha: "Nas vivências litúrgicas a partir da negritude podem ser encontrados traços característicos como a alegria, a dinâmica, a musicalidade, as danças, e uma participação efetiva da comunidade celebrante" (ROCHA, J. G. Op. cit., p. 185). Além do que foi dito, o Pe. Antônio Aparecido da Silva, o padre Toninho, afirma, a respeito das celebrações da Comunidade Negra: "São fortemente marcadas pela experiência de uma espiritualidade que nasce da vida. E também centrada nas dimensões escatológicas e libertadoras" (SILVA, A. A. Negritude e liturgia, p 4s). Este item está em sintonia

também com a CNBB que diz em seu documento: “Alguns elementos da cultura negra podem ajudar a

comunidade melhor celebrar: atabaque; vestes como resgate do sentido da festa e da alegria; símbolos que lembrem o que é caro ao povo negro; resgate da memória dos ancestrais que dá o sentido da comunhão dos

santos: elementos da natureza que marcam a nossa história; espaço litúrgico celebrativo” (CNBB. Pastoral afro,

p. 56).

514

que, se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele (cf. 1Cor 12, 26).

d) Os Antepassados: Recordá-los é de fundamental importância, pois eles também fazem parte da caminhada e continuam fazendo história com a comunidade. Já não podem ser mais vistos, mas estão presentes: pela sabedoria que deixou - fonte de inspiração e orientação existencial - e pelo sangue que corre nas veias dos seus descendentes. Aqui se dá o sentido também da comunhão dos santos, conforme afirma a CNBB515.

e) A água de cheiro: A água já tem o seu valor em si, pois sacia a sede, limpa, purifica, é fonte de vida para a plantação nos campos e produz energia. É o tesouro mais apreciado de nosso planeta516. Além destes aspectos próprios da água, os afrodescendentes cultivam o hábito de acrescentar algumas ervas medicinais e perfumadas. Esta „água transformada‟ é utilizada para aspergir as pessoas, trazendo ao ambiente um clima festivo, acolhedor e, portanto, familiar. A preparação é feita antecipadamente, com muito zelo e espírito de fé. f) A festa: Toda celebração é uma festa e esta acontece de fato, manifestando que a vida deve ser diferente, deve ser partilha, gratuidade, alegria e, num sentido escatológico, aperitivo do grande banquete no reino definitivo.

g) A dança517: Celebra-se não somente com a cabeça, com o cérebro, mas com todo o corpo518. O corpo, sendo expressão do divino, faz com que a fé seja manifestada na alegria e com muito gingado, pois o povo negro canta rezando e reza dançando.

h) Os atabaques519: na África, são considerados instrumentos sagrados e responsáveis por anunciar os momentos mais significativos da comunidade. Na celebração tem um papel fundamental: quando eles tocam, fazem com que o corpo se coloque em movimento, louvando a Deus. Os cantos trazem uma mística própria e não precisam ter muita letra, mas muita música520.

515

Cf. CNBB. Pastoral afro, p. 56.

516

Cf. Zilles, Urbano. Op. cit., p. 97.

517Sobre este assunto a CNBB faz algumas observações: “Dançar na liturgia é expressar e vivenciar o mistério

celebrado no dinamismo do Espírito do Ressuscitado que nos insere no movimento de Jesus. É deixar que o mesmo Espírito harmonize nosso ser, nossas relações com os outros, com o universo e com o Senhor, tornando-

nos um corpo, uma comunidade celebrante” (CNBB. Guia Litúrgico Pastoral, p. 90). É importante também observar algumas orientações (ponderações): “a) a dança tem as mesmas características de outras manifestações

artísticas na liturgia: sobriedade, dignidade, leveza, harmonia, simplicidade; b) evite-se a dança como exibição para uma plateia, ela também não é enfeite ou espetáculo alheio ao mistério celebrado; c) os ritos processionais são os momentos naturais e propícios para a dança litúrgica; d) se os passos e movimentos são simples, podem ser realizados por toda a assembleia; d) é recomendável o uso de vestes dignas e adequadas ao momento celebrativo; e) a adoção da dança na liturgia exige discernimento e prudência pastoral e respeito à sensibilidade

religiosa da comunidade” (CNBB. Pastora afro., p. 57).

518“O corpo é nossa linguagem fundamental (...) O homem todo relaciona-se com o mundo que o cerca e com Deus. „Glorificai a Deus em vosso Corpo‟ (1Cor 6, 20) (...) Nosso corpo não só ouve ou faz gestos. Também

tende a mover-se e caminhar com mais ou menos ritmo, expressando a alegria, a comunhão e a festa. A liturgia

lhe dá um sentido de fé e o utiliza sem medo” (Zilles, Urbano. Op. cit., p. 121s). 519

"A liturgia inicial ao som dos atabaques no compasso de danças caracteriza a festa. Na cultura negra os instrumentos musicais, particularmente o atabaque, são instrumentos sagrados. O atabaque está sempre presente na vida do povo, do nascimento à morte. Anuncia as festas, as vitórias e os perigos. Ao som do atabaque a comunidade se torna comunhão" (SOARES, Edir. In. ATABAQUE-ASETT. Op. cit., p. 54s).

520“(...) O cristão canta sua situação humana autêntica no dinamismo que leva a esperança a superar o que há de

mal. É justo cantar com entusiasmo o compromisso com o pobre, os anseios de construir uma cidade nova mais fraterna. O canto, como expressão máxima de um povo em festa, é um elemento essencial na celebração

i) As vestes: expressam a alegria e beleza da nossa cultura afro-brasileira. A Igreja admite a expressão artística de cada região e cultura, enquanto correspondem adequadamente à finalidade e ao espírito a que se destinam. O simbolismo das cores nas vestes é comum nas culturas e expressam uma linguagem que lhe é própria521.

j) A comida: A partilha de alimentos vem ao encontro da dinâmica celebrativa, pois comer juntos é entrar na intimidade do outro, é partilhar a vida. “A refeição sempre é um elemento importante na vida da família. Sentar-se à mesa e comer juntos significa repartir os dons, as alegrias e os sofrimentos e oportunizar o encontro de amigos”522. Foi num contexto assim que também nasceu a Eucaristia. Anuncia uma grande profecia: que esteja ao alcance de todos e todas aquilo que foi feito para todos e todas. Isto acontece através da pipoca, da canjica, da mandioca, da cocada, do amendoim, do angu, da acarajé, do bolo de fubá, das frutas, etc. l) O incenso: é produzido pela queima de uma resina. Para os antigos africanos egípcios, o incenso era considerado como um fenômeno supraterreno e o designavam de „suor divino que caiu na terra‟. Ao mesmo tempo, se tornou símbolo de prece que sobe para o alto. No Antigo Testamento, era usado como símbolo de adoração a Deus. Neste mesmo espírito, no Novo Testamento, os magos oferecem o incenso em seu gesto de adoração ao Salvador da humanidade523. Antes mesmo de ser mencionado na Bíblia, o incenso já era usado nas culturas africanas.

m) Negra Mariama: É uma forma carinhosa, através da qual as comunidades negras se dirigem àquela que gerou o Libertador da humanidade. Ela é a Mãe Maria que ama e não abandona os seus filhos e filhas nas lutas e labutas. É, portanto, símbolo da ternura e do cuidado de Deus, que se identifica com os mais necessitados e marginalizados (cf. Mt 25, 3s).

521

Cf. ZILLES, Urbano. Op. cit., p. 89s.

522

Ibid., p. 141. O mesmo autor recordando o fato da origem da eucaristia assim afirma: “A Eucaristia foi instituída no contexto de uma refeição. O comer e o beber juntos não nos colocam apenas em comunhão com os amigos, mas com todo o universo. Através da comida vivemos uma troca permanente com o universo. Se deixarmos de comer e de beber, deixamos de viver, pela comida e pela bebida entramos numa relação vital com

o mundo” (ZILLES, Urbano. Op. cit., p. 142). 523

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