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Há uma necessidade de compreendermos o sentido da ação dos sujeitos em outro nível, se até agora trabalhamos com a dimensão demanda, incorporamos agora a nossa análise ao mesmo tempo a admissão de existência de um campo de conversação social unificado pelas redes sociais e pela mídia e que sendo unificado tendeu a produzir uma agenda de conversação civil.

Com base na admissão de um campo unificado de conversação civil composto por uma agenda construída na própria conversação propomos a esquematização destes em tipos ideais segundo o método weberiano dos temas em disputa a partir das manifestações de junho, ou melhor, de percepções dos temas em disputa, que apresentamos no quadro 4. Encontramo-nos no campo da compreensão da articulação entre elementos/momentos dos discursos como nos aponta Laclau (2013), entendendo os elementos como as menores unidades de análise do discurso e compreendendo este como um construto intelectual que se dá, nos termos de Young (2001), a partir de uma perspectiva social, aquela que decorre das posições de sujeito. Este enquadramento não é dotado de um conteúdo específico, não pode ser confundido com opinião ou interesse, trata-se daquilo que leva os agentes à conversação. Aqui, percepções e perspectivas sociais estão imbricadas.

Propomos que junho abriu a possibilidade da conversação civil amplificada sobre oito percepções mais ou menos gerais na sociedade brasileira, a saber: a) de que o Estado brasileiro é injusto e consente com a desigualdade; b) de que o Estado brasileiro

é violento e autoritário; c) de que o Estado brasileiro é negligente e ineficiente; d) de que, nas últimas décadas, a corrupção tem ampliado; e) de que a classe política brasileira é, em geral, desqualificada, privilegiada e não representativa; f) da quebra de hierarquias sociais; g) de que houve uma ampliação da agitação social e política; e h) de que o ciclo virtuoso na economia perdera a força. Os quadros 4, 5 e 6120 apresentam as descrições destes tipos ideais.

Quadro 4- Tipos de percepção social que emergiu e norteou a conversação civil a partir de junho de 2013 no Brasil com foco no Estado.

Tipos de

percepções

Definição Eventos exemplares

Do Estado

como injusto e condescendente

com a

desigualdade.

Trata-se dos casos em que o Estado democrático de direito e a igualdade jurídica entre os cidadãos não se efetivam; em que a positivação do direito não é suficiente para a garantia da igualdade e respeito aos direitos humanos; em que o Estado não interrompe a reprodução de relações de desigualdade material, simbólica e jurídica; ou mesmo em que à revelia da lei ou no uso desta se excluem etnias, grupos sociais ou menos indivíduos.

Ataque aos direitos dos indígenas; remoção forçada de comunidades para implementação de grandes projetos econômicos. Do Estado como violento e autoritário.

Trata-se dos casos em que agentes ou instituições estatais atuam de maneira violenta e autoritária contra cidadãos brasileira à revelia da lei ou em nome dela, não preservando os direitos humanos e atuando no controle e punição de práticas, indivíduos e populações com base na estigmatização, marginalização, incriminação e criminalização.

Ações violentas em favelas; repressão policial às manifestações nas ruas.

120 A discussão foi compartimentada em três quadros para facilitar a visualização de leitor e nossa

Conclusão Do Estado como negligente

e ineficiente.

Trata-se dos casos em que o Estado através de suas instituições e agentes prevarica no cumprimento

de seus deveres

constitucionais ou quando os cumpre o faz de maneira

não planejada,

descoordenada com efeito de prestação de maus serviços públicos e desperdício de recursos.

Tragédias cotidianas que poderiam ter sido evitadas (enchentes; deslizamentos; “bala perdida” etc.); Tragédia na boate Kiss; Violência urbana.

Fonte: elaboração do autor. 2015.

O primeiro grupo de percepções toma o Estado como objeto de discussão, não diz respeito propriamente a um dos poderes, mas a lógica de relação entre e Estado e sociedade, porém dado a forma do debate político brasileiro, que por vezes sobrecarrega as funções e expectativas sobre o executivo, em particular o federal, pode assumir com maior frequência os contornos dos órgãos, serviços e lógicas de ação do poder executivo, mas sem dúvida não é exclusivo, e em muitos casos nem mesmo majoritária. Quadro 5- Tipos de percepção social que emergiram e nortearam a conversação civil a partir de junho de 2013 no Brasil com foco no legislativo.

(Continua)

Tipos de

percepção

Definição Eventos exemplares

Da ampliação da corrupção.

Trata-se do fato da corrupção pública ter se tornado cada vez mais visível, revelando a existência de grupos especializados em saquear os cofres públicos para enriquecimento pessoal, para instrumentalizar grupos políticos ou para obter vantagens empresariais e fiscais.

“Mensalão”, cobertura da mídia e repercussão; denúncia de cartel em licitação de metrô em São Paulo.

(Conclusão) De que a classe política é

desqualificada, privilegiada e não representativa.

Trata-se dos casos em que fica flagrante que a classe política se distancia e se apresenta como superior à média dos cidadãos brasileiros através da votação de aumentos em seus próprios salários, ampliação de privilégios; construção de pautas parlamentares de caráter antipopular e sectário com objetivos de adquirir dividendos políticos ou chantagear o Executivo; da proteção corporativista de membros do parlamento que cometem desvios éticos e/ou roubos; posturas debochadas e cínicas em relação à opinião pública.

Eleição do pastor Marco Feliciano para presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal; eleição de Renan Calheiros para a presidência do Senado; rejeição da cassação do mandato do deputado federal preso Natan Donadon; autoridades viajam a lazer com família e amigos em avião da FAB; projeto de “Cura gay”; tramitação da PEC 37.

Fonte: Elaboração do autor. 2015.

Esta duas percepções atingem fortemente o poder legislativo e suas conexões, por mais que em situações concretas se espraie para outros poderes e relações, todavia a imagem de político corrupto e descomprometido no Brasil normalmente é atribuída ao legislativo ou prefeito de cidades interioranas. No caso do legislativo possivelmente este atributo negativo devasse também a traços intrínsecos deste poder como a representação e mediação de interesses de seguimentos, interesses e grupos sociais, econômicos, étnicos, religiosos específicos etc. diversos.

Quadro 6- Tipos de percepção social que emergiram e nortearam a conversação civil a partir de junho de 2013 no Brasil com foco no lulismo.

Tipos de

percepções

Definição Eventos exemplares

Da quebra das hierarquias sociais.

Trata-se dos casos em que os cidadãos em suas relações cotidianas percebem com estranheza a quebra de tradicionalismos que se sustentavam em desigualdades “naturalizadas” como classe, etnia-raça, gênero, escolaridade, território, origem social, religiosidade e sexualidade.

Lei das empregadas domésticas; instituição do sistema de cotas em universidades federais; surgimento da “nova classe média”; existência de programas sociais de transferência de renda. De que o recente ciclo virtuoso na economia perdera a força.

Trata-se do fato de que o ritmo do crescimento econômico experimentado de 2004 a 2010 desacelerou e tendeu a reduzir o ritmo de avanço da renda do trabalhador e da lucratividade dos capitalistas, com possíveis impactos nas políticas de distribuição de renda no curto e médio prazo.

Disparada do preço do tomate; redução do ritmo de crescimento econômico a partir de 2011.

De que se

ampliou a

agitação social.

Trata-se do fato de que o número de greves, manifestações e protestos estava relativamente mais elevado que o período imediatamente anterior.

Greve de funcionalismo público federal; protestos contra lideranças políticas; manifestações contra os chamados megaprojetos. Fonte: Elaboração do autor. 2015.

Este último grupo de percepções liga-se particularmente aos efeitos dos governos petistas tornando-se parte fundamental do debate político e social nas redes sociais no período de efervescência de junho, em que a polarização entre defensores do legado do lulismo e as vozes dissonantes deu a tônica e mesmo muito dos significados e pujança dos eventos de junho.

Desta forma as percepções indicam-nos agregados de discussões cotidianas de modo que ao selecionar acontecimentos contemporâneos a junho e observar como se tornavam objetos de conversação civil, vemos que contribuíram na formação das ditas percepções sociais, múltiplas e que se realizaram nos embates nas redes sociais online e off-line. Nesse sentido, ao se considerar a importância de aspecto (a) para a ocorrência do evento (y), dever-se-ia também levar em conta os aspectos (b, c, d...) sobre tal evento

bem como que (y) se relacionava, se articulava, se subordinava ou coordenava os eventos (x, w, z...). Dessa forma, a conversação civil implicava uma “nebulosa de associação”121

entre temas, aspectos, perspectivas sociais, posições de sujeito, opiniões, interesses, estabelecendo ligações que criaram nexos de causalidades plausíveis nas articulações discursivas.

A conversação civil na medida em que saíra da contestação imediata do reajuste das tarifas do transporte público ou de sua qualidade e passara a questionar os gastos com os grandes eventos, a qualidades dos serviços públicos em geral, mas também dos privados, a legitimidade da representação e dos representados tendeu, aos poucos, a polarizar o debate público, de um lado, entre oposicionistas e governistas, de outro lado, entre esquerda e direita. Era possível encontrar cidadãos sendo tensionados a ocupar estas posições, limitando as rearticulações possíveis de posições e discursos. Isto particularmente após a fase que chamamos de excepcional, neste sentido o diagrama 3 nos ajuda a visualizar a redução das posições políticas possíveis e das posturas em relação ao governo.

Esta polarização em eixos comportamentais e atitudinais frente à conjuntura política acarretaram uma redução dos discursos possíveis naquele momento, silenciando vozes minoritárias que não cabiam em rótulos. Ou seja, se no período excepcional de junho houve uma ruptura da hegemonia dos discursos otimistas e emergiram para cena pública os muitos discursos não alinhados ao otimismo vigente, na fase subsequente de junho, a radicalizada, as polarizações tornaram-se dominantes e os discursos e visões políticas tenderam a se enquadrar em pares de oposição.

Se, na fase excepcional, foi difícil localizar a origem e para onde se direcionavam pautas, demandas e sujeitos, na fase radicalizada, houve este realinhamento que, por mais que as identidades políticas ainda não fossem claras já que as posições de sujeito ainda se realinhavam, a configuração dos quatro polos tensionadores de posições de sujeitos e discursos pareciam pressionar para configuração de novas totalizações, ainda que dicotômica, embora nenhuma das partes conseguisse conformar-se como hegemônica.

121

Tomamos emprestado de ACSELRAD (2011) o conceito de nebulosa associativa aplicada a redes de movimentos sociais, que para o autor é nebulosa em dois sentidos que também se aplicam ao fenômeno que analisamos: por um lado ao ser composto por múltiplos atores políticos (em nosso caso temas, aspectos, perspectivas sociais, posições de sujeito, opiniões, interesses) que tornam tais redes (conversações) sem forma (em nosso caso a forma é dada na conversação que hierarquiza o que se conversa, portanto não está previamente definido e pode se recombinar no processo interacional) e dois por mover-se de forma imprevisível.

Figura 4. Diagrama de polarização política dos comportamentos com base nos polos direitas e esquerda e governistas e oposicionistas.

Fonte: Elaboração do autor. 2015.

Apesar do estreitamento, gerador de invisibilidades de diversas posições que não conseguiram ou não aceitaram estas tentativas apressadas de totalizações parciais, a fase radicalizada produziu antagonismos sociais que passaram a disputar o horizonte político que se abrira com o fim da hegemonia otimista. As percepções apresentadas acima se tornaram a agenda da conversação civil, em particular nas redes sociais online. Configurados os antagonismos, as narrativas voltaram-se para a memória dos vínculos políticos e ideológicos, lançando-se mão de argumentos históricos em que temas como o “janguismo”, o Golpe, a repressão militar, torturas e desaparecimentos voltaram ao centro dos debates. No diagrama 4 apresentamos a tendência de atribuição de origem histórica das percepções presentes na esfera pública a partir de junho de 2013.

Figura 5- Diagrama de enraizamento histórico das percepções sociais que emergiram em junho de 2013.

Fonte: Elaboração do autor. 2015.

O embate público promovido nas redes sociais online e off-line trouxe para a conversação civil a trajetória histórica da Nova República, mas também o “lulismo”. Nesse sentido, tendeu a se direcionar para o passado em busca da origem dos problemas nacionais e dos agentes neles implicados. Por mais que a polarização tenha dificultado o debate público em diversos momentos, já que produziu fortes ruídos e muitos desentendimentos, a própria conversação foi capaz de reconstruir os problemas. Quando vindo do polo oposicionista, no geral, os problemas eram contemporâneos aos governos petistas e os legados anteriores a estes sempre positivos, quando vindo do polo governista, as qualidades eram contemporâneas aos governos de Lula e Dilma e os problemas tinham raízes históricas. A conversação civil produziu tese e antítese sem produzir síntese, apenas pontos iniciais de tensão122.

Não se conseguiu, porém construir uma cadeia de equivalências mais geral entre as demandas possibilitando sua rearticulação em novos caminhos possíveis. Junho configurou-se como uma profusão de demandas fragmentadas que, com o tempo, foi tendencialmente polarizada, empobrecendo-se, sem produzir uma síntese operada na lógica da equivalência. Não houve uma mediação destas demandas democráticas em

122 Apesar de minoritária a variante relevante deste esquema era a esquerda oposicionista, que no geral ou tendia

a concordar, mantendo as críticas, com a leitura da esquerda governista ou consideravam as duas fases históricas existentes nos discursos políticos um grande contínuo indistinguível de fracassos.

novos processos de articulação por agentes e organizações sociais ou políticas que pudessem traduzi-las como demandas populares capazes de exigir dos que detêm o poder um caminho para a resolução das demandas postas. Tal ausência ou incapacidade teve por efeito manter, ainda que numa atmosfera de polarização, manifestações múltiplas que nunca foram respondidas de maneira satisfatória e promoveram o que chamamos de ciclo de confrontos, sem que se anunciasse um projeto ou pacto a coordenar as vozes.

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