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PARTE III: E SE NÃO FOSSE ASSIM? OUTRA INTELIGIBILIDADE PARA A

9.2 Silêncio e visibilidade: os mecanismos distintos em que funciona o silêncio

Se as crianças conseguissem que seus protestos, ou simplesmente suas questões, fossem ouvidos, em uma escola maternal, isso seria o bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino. (FOUCAULT; DELEUZE, 1972, p.72).

Talvez, mais do que a repressão destes comportamentos por parte dos adultos, pudesse existir, nas sociedades, um respeito para com o modo de ser criança, e assim fossem construídas novas perspectivas para e sobre a infância contemporânea e sua educação em instituições como Creches e

Pré-escolas. Mas como ir ao encontro das crianças? Como propiciar que as crianças falem de si, de suas experiências de seus saberes sobre o viver na Creche, como registrar esses dados? Que caminho seguir para que, ao longo da pesquisa, seja evidenciado as falas, olhares, gestos e vivências das crianças, e não se acabe por transformar os protagonistas (as crianças) em coadjuvantes? (OLIVEIRA, 2001a , p. 5).

De que vozes falam os trechos acima? Em que sistemas de poder o silêncio funciona? Haveria aqui também, como em relação aos tipos de vontade de saber, funcionalidades diferentes para o enunciado“dar voz às crianças”?

O raciocínio metodológico a ser seguido seria mostrar que o silêncio pode servir a diversos mecanismos de poder. Para tal, os elementos da genealogia e da ética foucaultiana são profícuos para mostrar como o silêncio pode ser problematizado para além do seu entendimento como um efeito negativo do poder.

Nos textos genealógicos de que se ocupou o autor, a partir dos anos 1970, seria interessante considerar em especial as práticas de poder que fazem falar e produzem discursos. Passar em revista as descrições históricas foucaultianas, a fim pesquisar de que maneira aborda desde as práticas disciplinares até a tecnologia do eu, os dispositivos de produção da fala e do silêncio em suas funções estratégicas na produção de subjetividade.

Seria importante considerar a critica foucaultiana à idéia de um sujeito soberano, o qual expressaria sua verdade a partir do discurso; ao mesmo tempo, rever as práticas em que a fala é tida como instrumento importante de mobilização das práticas de poder, como nos grupos de informação sobre as prisões, dos quais participou Foucault (2003l, 2003m,2003n). Nos textos sobre a ética, é possível pensar uma experiência diferente entre fala e subjetivação (relação consigo mesmo) e interrogar as possibilidades de subjetivação na “ética” contemporânea, levando em conta os três eixos da experiência, como pensados por Foucault: ser-poder, ser- saber; ser-si (FISCHER, 1999). A questão principal seria, pois, saber como cada um pode reinventar-si hoje e, no caso da infância contemporânea, com que tipo de subjetivação os argumentos em torno do direito a voz se relacionam.

No caso do discurso crítico, argumentamos que a hipótese de que as crianças foram silenciadas funciona como elemento de uma hipótese repressiva, ocupando o centro dos dispositivos de fazer falar a criança como uma naturalidade. Pela história genealógica, a questão do silêncio faz referência às diferenças nos modos de individualização e nos modos de inclusão. No discurso crítico, romper com o silêncio é pensado em termos de liberdade.

Para fugir ao tratamento do silêncio como efeito de um poder repressivo e interditor, e considerando-o como um dos pontos pelos quais se trava a luta discursiva em torno da

infância hoje, poderia ser feita uma análise de suas relações com a visibilidade (FOUCAULT, 1996f), questão importante (mas não, certamente, a única) quando se trata dos mecanismos de um poder positivo.Rever, portanto, os diversos mecanismos de poder em que o silêncio pode fazer parte, ora como efeito desejado, ora como peça para incitação dos discursos. Esta análise possibilitaria estabelecer um entendimento sobre o que é a afirmação tão recorrente no discurso crítico de que as crianças foram durante muito tempo silenciadas. Conseqüentemente, suspende-se a certeza de que a maior resistência aos mecanismos de poder que envolvem o discurso é falar. Falar do quê? Com que objetivo? Em que ordem discursiva?

Poderíamos, a fim de organização do plano desta discussão, percorrer a “obra” de Foucault, estabelecendo as seguintes relações: a) silêncio como condição de visibilidade e individualização na disciplina; b) silêncio, hipótese repressiva e obrigação de falar; c) rompimento do silêncio e os discurso de luta; e c) o silêncio e o caso dos homens infames126.

9.3 “Criança em si” e “criança-aluno”

Esta linha de pesquisa abriria possibilidade de analisar a forma de resistência encontrada pelo discurso crítico quando formula a noção de “criança em si”, para contrapô-la à idéia da criança-aluno.

A idéia da “criança em si” (superindividualização) não seria uma noção- desbloqueio que permite um investimento de poder sobre a criança e que nos sugere uma mudança nos meios de resistência? A “criança com voz”, na medida em que é enaltecida/naturalizada como modelo de subjetividade, não encobriria as tecnologias de poder que a investem cada vez mais insidiosa e precocemente, e que precisam ser analisadas?

Durante muito tempo se discutiu a produção dos anormais e dos desviantes na própria categoria de criança: crianças autistas, surdas, hiperativas, indicisplinadas etc. Não seria a

126 Em seu texto A vida dos homens infames, Foucault esclarece a que tipo de infâmia se refere: “[...] Existe uma falsa infâmia, a de que se beneficiam estes homens de assombro ou de escândalo que foram Gilles de Rais, Guillery ou Cartouche, Sade e Lacenaire. Aparentemente infames, por causa das lembranças abomináveis que deixaram, dos delitos que lhes atribuem, do horror respeitoso que inspiraram, eles de fato são homens da lenda gloriosa, mesmo se as razões dessa fama são inversas àquelas que fazem ou deveriam fazer a grandeza dos homens. Sua infâmia não é senão uma modalidade da universal fama. [...], mas os pobres espíritos perdidos pelos caminhos desconhecidos, estes são infames com a máxima exatidão [...] é a infâmia estrita, aquela que, não sendo misturada nem de escândalo ambíguo nem de uma surda admiração, não compõe com nenhuma espécie de glória”. (FOUCAULT, 2003o, p.210).

categoria criança também uma figura da anormalidade? Temos, com a formulação da figura de subjetividade da “criança com voz”, a possibilidade de questionar a diferença normativa entre adultos e crianças, e não só as diferenças normativas entre as crianças. Vimos que os discursos críticos, na medida em que se situam este problema, apontam como saída o fortalecimento da categoria “criança em si”, como se a criança também não fosse inventada (risco de se fazer uma história da criança como um referente). “A criança em si”, diferente da criança-aluno, é um modelo de resistência à norma?

Os discursos analisados, na medida em que criticam à infância moderna, se voltam à revisão da representação clássica da criança como aluno, fazendo uma representação da criança em geral (NARODOWSY, 2001).

Os homens infames (sem fama, não atores de fatos notórios, homem comum), para Foucault (2003b), foram aqueles que tiveram suas vidas cruzadas pelo poder, e que, do contrário, jamais teriam sido notados. Seriam, sobretudo, os anormais. As crianças não seriam um tipo singular de infame, uma espécie de “anormalidade normal”, a mais naturalizada de todas e que foi, desde a Modernidade, um ponto constante de atravessamento de poder?

Deste ponto de vista, a diferença entre adultos e crianças teria sido constituída como uma “anormalidade normal”, uma vez que anormais seriam todos aqueles que não poderiam se transformar em adultos produtivos. Deste modo, ser criança seria poder seguir esta trajetória; uma anormalidade que mais cedo ou mais tarde se desfaria, raciocínio constituído pela noção de desenvolvimento. Como examinar as tentativas de se desfazer as relações constituintes desta “anormalidade normal”? Foucault (2003i, p.47) fala de dois tipos de resistência: mudar a posição dentro do jogo e recusar o próprio jogo. No caso da criação da “criança em si” o que estaria em questão?

Seria preciso analisar a afirmação de que o aluno é a representação da criança mais ligada à disciplina, enquanto que a representação da “criança em si”- estatuto jurídico - é contrária em si mesma à idéia de sujeito disciplinar (FOUCAULT, 1996i).

A condição da criança, como pessoa, parece ser a condição para que se trabalhe mais exaustivamente a formação de uma identidade infantil, ampliando o campo dos experts, agora compostos pela Psicologia social e Pedagogia crítica. Entendemos que retomar a critica à infância moderna sem constituir uma identidade para a infância poderia ser um caminho. Quais as virtualidades abertas pela crítica à norma e à disciplina? Nisso é preciso identificar os próprios deslocamentos da norma. A luta não parece, como sugere o discurso crítico, ser para libertar a infância, mas para recusar a liberdade que lhe conferem dentro de novas amarras de identidade.