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SILVIANO SANTIAGO: O COMPASSO DO JAZZ MARCA O CONTO “AUTUMN

No livro Keith Jarrett no Blue Note (Improvisos de Jazz) 29, de 1996, Silviano Santiago reuniu contos escritos a partir das canções que compõem o CD do mesmo título do músico jazzista americano Keith Jarrett. Os contos – cinco – apresentam os mesmos títulos das também cinco músicas do CD: “Autumn leaves”, “Days of wine and roses”, “Bop-be”, “You don´t know what love is” e “When I fall in

Love”.

Como as peças jazzísticas, esses contos de Santiago são polirrítmicos, identificando-se com formas musicais, como sinaliza Heloísa Buarque de Hollanda na orelha do livro, “e, mais do que isso, toma como referência explícita um dos grandes improvisadores do jazz americano”. Na improvisação do jazz, a marca autoral, a identidade pessoal do artista – o músico – que aqui se faz na escrita desse autor, também um teórico da literatura brasileira desde Prosa literária atual no Brasil, de 1984, Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural (1978); Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais (1982); Nas malhas da letra (1989); As Raízes e o Labirinto da América Latina (2006). Além disso, em suas obras literárias, encontramos, entrelaçada à ficção, a performance do

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SANTIAGO, Silviano. Keith Jarrett no Blue Note (Improvisos de Jazz). Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

teórico, como no romance O falso mentiroso: memórias (2004) e Histórias mal contadas, livro de contos lançado em 2005.

Aparentemente, Silviano tenta seguir os movimentos do jazz de Keith Jarrett, na estrutura dos contos, com seus improvisos, como avisa no subtítulo do livro: (Improvisos do jazz). Como exemplo, as repetições de frases em parágrafos e contextos diferentes, como as sequências em Paris e na fazenda do avô do primeiro conto, “Folhas secas”, na tradução que segue o título em inglês.

No conto Autumn Leaves (“Folhas secas”), o primeiro movimento acontece com a chegada do protagonista ao apartamento iluminado e aquecido pela calefação em contraste com o tempo frio e sombrio lá de fora. Esse instante e todos os outros evocados na narrativa são lembrados pelo narrador – uma espécie de narrador confidente ou alter ego do protagonista. Ele narra os rituais domésticos desse sujeito não nomeado, um brasileiro, pelas menções ao Brasil 30 e ao Rio 31. Sabemos, também pelo narrador, que ele deve ser professor, pois, entre outras pistas dadas, chama de colega o professor de literatura romântica inglesa que encontra no jantar 32. Conhecendo a produção literária de Silviano Santiago – lembrando somente de Em liberdade (1981) e de O falso mentiroso: memórias (2004) – verificamos que os limites entre ficção e realidade são constantemente borrados na sua escrita.

Percebe-se a intenção do escritor em demonstrar o desencontro entre os os movimentos do jazz de Keith Jarrett, que desenham musicalmente as imagens das folhas tangidas pelo vento de outono e as duras imagens da vida num local onde o clima é inóspito, mesmo no final do inverno (“nesta última semana de março, em que não existe o menor sinal de prenúncio de primavera nos ares” 33

ou “Os pinheiros continuam verdes e as árvores de galhos nus” 34

, situando-as no espaço de uma cidade do interior americano onde se encontra o protagonista chamado de “você”, por esse narrador muito íntimo que se reflete na sua personagem.

_____________ 30 Ibid., p. 33. 31 Ibid., p.32. 32 Ibid., p. 31-32. 33 Ibid., p. 20. 34 Ibid., p. 28.

Num segundo momento, esse “você” começa a ouvir o cd que comprara nas suas andanças pela cidade gelada naquela tarde 35. A partir daí, outro movimento, provocado pela música do grande improvisador do jazz, embalará as memórias do protagonista, via narrador: as caminhadas pela cidade fria, varrida pelo vento invernal, cidade suja de “calçadas cobertas de lixo do Primeiro Mundo” 36

. As folhas de outono, ou folhas mortas, da canção de Keith Jarrett, aqui se tornam as “folhas secas encharcadas” que aparecem sob a neve dissolvida pela chuva. Levadas pelo vento, passam a incorporar o lixo das ruas, formando um bolo amarelado de folhas amassadas e trituradas pelos pés dos passantes, indistintas na lama.

O tempo da narrativa se estende por dois dias que se abrem – pela música – a outros dias, a outros anos e décadas passadas na vida do protagonista, relembradas pelo narrador. No seu passeio de “ontem” pela cidade enlameada, “você” pegou três folhas e delas escolheu a mais limpa, perfeita e a mais firme, para que lhe trouxesse recordações dessa temporada, quando aberto o livro num dia de sol e solidão no Rio. Logo depois, porém, “você” decidiu por deixá-la onde estava, pois não valia a pena tal lembrança. Entretanto, a música de Keith Jarrett não lhe permitiria o esquecimento, assegura o narrador.

As autumn leaves da música fazem-no evocar as “folhas secas encharcadas” das margens do Sena e o tempo que passou em Paris, jovem sem dinheiro flanando por aquelas margens, no início dos anos 1960, sozinho, ou acompanhado por eventuais amantes. Ou voltava quinze anos depois, em meados dos anos 1970, quando a “imutável fisionomia nostálgica de Paris” 37 havia sido destruída graças à especulação imobiliária. Dessa vez, “sentado no mesmo banco do mesmo parque”, pode sentir o perfume outonal espraiando-se pelo cais do rio, que no verão era tomado por outros (maus) odores. As folhas secas da cidade americana se perderão na lama e na lembrança; “você” fez questão de pisá-las “hoje”, ao voltar para casa.

_____________ 35 Ibid., p. 17. 36 Ibid., p. 23. 37 Ibid., p.39.

O conto de Silviano Santiago, como outras das suas obras, põe em cena elementos da alta cultura, da baixa cultura, da cultura pop, referências a personagens e obras da literatura francesa, do cinema, do teatro (a Tosca, de Puccini, Romeu e Julieta, de Shakespeare, Our town, de Thornton Wilder, os musicais da Broadway e off Broadway são mencionados); da música erudita e popular, brasileira e estrangeira; referências aos jornais americanos, às revistas femininas (moda e maquilagem) e às esportivas (futebol americano), às revistas sobre e para negros e às revistas pornográficas, que aparecem no início e no final do conto. Todos esses elementos compõem os vários ritmos de Autumn Leaves.

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