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Simbolismo e nova política criminal

No documento Crimes contra o mercado de capitais (páginas 60-63)

3. O PROCESSO DE CRIMINALIZAÇÃO DA TUTELA PENAL

3.1. Simbolismo e nova política criminal

A expressão “simbolismo penal” tem sido usada de modo bastante significativo por amplos setores da doutrina para se referir, de maneira crítica, à criação de leis penais para satisfazer anseios ou clamores sociais, buscando-se atingir apenas efeitos ilusórios, sem alterar efetivamente a realidade fática.

Por meio da criminalização desenfreada de condutas, o legislador transmitiria à população a mensagem de que está agindo; de que a matéria objeto de preocupação é relevante; e de que os problemas serão solucionados. A sociedade, por sua vez, reduziria suas reivindicações em torno do assunto, pressupondo ter sido resolvido pelo legislador.

Cria-se, assim, uma nova política criminal que pretende não mais proteger bens jurídicos relevantes socialmente, mas apenas transmitir ilusões e falsas soluções.

Entretanto, tais criminalizações não costumam levar em conta a capacidade de o direito penal lidar com a matéria, suas possibilidades de efetividade, tampouco se há ou não um bem jurídico a embasar a norma penal. Díez Ripollés descreve com precisão as características do modo de agir legislativo ao se valer do simbolismo penal:

Assim, entramos no reino do proceder legislativo declarativo-formal, cuja pretensão fundamental é a de traduzir na norma legal, de modo mais fiel e contundente possível o estado atual das opiniões coletivas sobre uma determinada realidade social conflitiva, e que está distante de qualquer consideração sobre a medida em que a norma em questão pode colaborar para a solução do problema. 134

O que se vê, como resultado do simbolismo penal, é a criação de normas penais ilegítimas e ineficientes, que não obedecem aos princípios penais mais comezinhos,

134 DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. El derecho penal simbólico y los efectos de la pena. Actualidad Penal,

não se acomodam às finalidades que deveriam apresentar as penas em um Estado democrático de direito, bem como não conseguem ter aplicação prática efetiva.135

Paulo Silva Fernandes pondera que o direito penal, ao tornar-se simbólico, “arrisca-se a fugir do direito penal”, posto que ao se relativizar, politizar ou administrativizar, buscará referenciais diversos dos seus para conseguir maior efetividade.136

Silva Sánchez, por seu turno, aponta que tal função simbólica de início pode até ser benéfica, pois traz à população em geral uma sensação de segurança e efetividade. Contudo, a criminalização de condutas desprovida de uma eficaz proteção a bens jurídicos certamente se mostrará ineficiente ao longo do tempo, acabando por levar o direito penal a uma situação de descrédito.137

Não se pode, também, ignorar a atuação dos denominados “gestores atípicos da moral” (atypische Moralunternehener) – nas palavras de Silva Sánchez: expressão com a qual se designam alguns novos gestores da moral coletiva (e do recurso ao Direito Penal, naquilo que aqui especialmente interessa)” – no sentido de fomentar criminalizações desse gênero.138

É inegável que toda norma penal está dotada de certo valor simbólico enquanto expressão de comportamentos socialmente indesejados,139 mas este não pode ser um fim em si mesmo, tal qual observa Roxin:

135 Conforme aponta Renato de Mello Jorge Silveira: “A mera construção de novos tipos penais, ou ainda, um

simples endurecer penal, além de propiciar uma falsa ilusão de resolução dos problemas sociais, acaba por desvirtuar o sistema por completo. Não é compatível nem com a dogmática moderna, nem com os princípios e garantias assegurados pelo Estado Democrático de Direito”. (Direito penal supra-individual. Op. cit., p. 170)

136 Op. cit., 53

137 Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona: Bosch Editor, 2002, p. 305-306

138 “Se os tais ‘gestores’ vinham sendo tradicionalmente determinados estamentos burgueses-conservadores,

hoje adquirem tanta ou mais relevância em tal papel as associações ecologistas, feministas, de consumidores, de vizinhos [...], pacifistas [...], antidiscriminatórias [...] ou, em geral, as organizações não governamentais (ONGs) que protestam contra a violação de direitos humanos em outras partes do mundo. Todas elas encabeçam a tendência de uma progressiva ampliação do Direito Penal no sentido de uma crescente proteção de seus respectivos interesses. [...] A reviravolta tem sido tamanha que aqueles que outrora repudiavam o Direito Penal como braço armado das classes poderosas contra as ‘subalternas’ agora clamam precisamente por mais Direito Penal contra as classes poderosas”. (A expansão do direito penal .... Op. cit., p. 63-64)

139 Quanto a este efeito “simbólico” inerente às normas penais, Hassemer os denomina como efeito

Dado que todas as leis penais tem um impacto simbólico mais ou menos grande por dever operar sobre a formação da consciência da população, os elementos ‘simbólicos da legislação não são inadmissíveis de modo geral. Tudo depende de até que ponto se segue garantindo suficientemente a referência ao bem jurídico. No caso de preceitos que estendem amplamente a punibilidade ao campo prévio às ações concretas ou que castigam meras manifestações da atitude interna, pode ser absolutamente duvidosa sua admissibilidade desde os pontos de vista do Estado de Direito.140

Nesse contexto, cabe especial atenção ao se tratar da tutela penal de interesses supra-individuais, como observa Renato de Mello Jorge Silveira:

De fato, as normas podem descrever funções retóricas ou funções simbólicas. As primeiras caracterizam-se pelas resoluções diretas do problema jurídico-penal, enquanto as segundas atingem seus efeitos na opinião pública. Essa ambivalência é presente em praticamente todas as disposições legais. O grande problema vivido, sobremaneira, no caso difuso, consiste no fato da assunção do caráter absoluto assumido pelo efeito simbólico. Está a se perder, com isso, a função retórica. Assim, não raras vezes, despreza-se a tudo e a todos, para que se venha a valorizar, quase que exclusivamente, a importância penal ante a opinião pública. Perdendo a confiança dogmática no que se tem cientificamente por certo, não podendo cumprir suas funções de proteção, a função simbólica do Direito Penal acaba por obstaculizar a função instrumental deste, ilegitimando a integralidade do próprio sistema.141

Uma vertente do simbolismo penal apontada pela doutrina seria a criminalização de condutas típicas das classes mais altas, passando à população a impressão de que também “os ricos e poderosos” estariam sujeitos ao sistema penal142. Dessa forma, o legislador conseguiria minimizar a percepção de que o sistema penal é desigual e preconceituoso, além de combater, simbólica e ilusoriamente, as diferenças sociais. Trata-se, como afirma Paulo Silva Fernandes, da ‘técnica do bode expiatório’.143

perspectiva descritivo-analiítica. (Derecho Penal Simbólico y Protección de Bienes Jurídicos. Pena y Estado:

función simbólica de la pena. n. 1, Barcelona: PPU, 1991, p. 28

140 Derecho Penal Parte General. Op. cit., p. 59, tradução nossa 141 Direito PenalSsupra-individual. Op. cit., p. 172-173

142 BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Necesidad de la pena, función simbólica y bien jurídico medio ambiente. In:

_____. Pena y Estado. Santiago de Chile: Jurídica ConoSur, 1995. p. 101. Acerca do tema, Luciano Anderson de Souza faz relevante reflexão: “Outro mecanismo de atuação simbólica do aparato penal é a tentativa estatal de incutir na população a sensação de que a repressão aos delitos é cada vez mais efetiva. Desse modo, valendo-se de operações policiais grandiosas e dirigidas contra indivíduos com certa projeção social, tenta-se transmitir ao cidadão comum a idéia de que ele não poderá desviar as suas condutas, andando

na linha, sob pena de sofrer uma repressão tão ou mais rigorosa e eficaz. Passa-se a mesma sensação quando

se determina o recolhimento ao cárcere de pessoas ainda inculpadas que ocupam uma posição no ápice da

pirâmide socia’” (Expansão do direito penal e globalização. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 157

Quanto aos crimes contra o Mercado de Capitais, estes certamente encerram condutas praticadas tipicamente por parcelas sociais mais privilegiadas, incrementando o risco de se proceder a uma criminalização simbólica. Dessa forma, resta imprescindível a correta definição do bem juridicamente tutelado pelas normas incriminadoras, bem como uma rigorosa análise de suas estruturas típicas, a fim de evitar que se recorra a expedientes meramente simbólicos, em todo condenáveis.

No documento Crimes contra o mercado de capitais (páginas 60-63)