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O jihad tem que ser entendido como uma ideologia político-religiosa, que mistura a ideia de autoridade divina com o elemento simbólico de dever e ser um bom muçulmano.

Jihad provém da raiz árabe jhd (luta ou esforço), sendo considerada mais uma palavra jurídica do que propriamente religiosa. No entanto, ao ser usada enquanto conotação religiosa, a mesma pode significar a luta de superação, de defesa da moral, de luta para alcançar a perfeição da alma e superar as tarefas difíceis (Cherem, 2009; Marranci, 2006).

Assim, o mesmo será visto como uma obrigação religiosa, remetendo a elementos espirituais onde se estipula que “cada qual tem um objetivo traçado por ele. Empenhai-vos na prática de boas ações, porquanto, onde quer que vos acheis, Allah vos fará comparecer, a todos, perante Ele, porque Allah é onipotente” (Alcorão, 2:148, 1974).

Além dessa mensagem, outra passagem do Alcorão faz referência ao combate, a qual transmite “Combatei, pela causa de Allah, aqueles que vos combatem; porém, não pratiqueis agressão, porque Allah não estima agressores” (Alcorão, 2:190, 1974). Nesta passagem a interpretação da luta pode ser vista de forma flexível e adaptada a diferentes interesses e contextos políticos; porém este verso diferencia o combate pela causa de Allah da agressão, sendo esta última considerada condenável perante os olhos de Allah. Entretanto, na mesma surata24 há um adendo no qual se faz menção ao Talião25 como segurança da vida.

Ou seja, o jihad pode ser interpretado como guerra santa a partir do viés do “empenho em busca com o equilíbrio ao serviço do criador, empenho traduzido como esforço de defesa dos valores da fé islâmica” (Procopio, 2001, p. 70), ou como uma luta militar religiosa contra todos os inimigos de Allah.

Desde o início da civilização muçulmana, as batalhas travadas foram para consolidar o Islã como uma religião predominante na península arábica, isto é, surge como uma alternativa aos erros de interpretação que cristãos e judeus deram à palavra de deus, tornando-se assim, a última religião enviada para redimir os pecados dos homens (Alcorão, 1974).

Dessa forma, não há registros exatos que demonstrem se o jihad, na época de Maomé e dos Rashidun, era a palavra usada para batalha. Os únicos registros que temos são as descrições nos Hadiths, os quais foram escritos anos depois da morte de Maomé, e os registros da dinastia abássida, a qual clarificou as doutrinas religiosas do Islã e “desenvolveu a doutrina do jihad, tal como conhecemos hoje, por meio das escolas jurídicas islâmicas” (Cherem, 2009, p. 84).

24 A Surata, ou sura, é o nome árabe para capítulos do livro sagrado dos Muçulmanos, o Corão. Consideradas a palavra literal de Allah, as 114 suras, não organizadas cronologicamente, foram reveladas a Maomé durante um período de 23 anos.

25 A Lex Talionis, ou lei do Talião, é a lei mais antiga da humanidade presente no código de Hamurabi. Esta lei consiste na reciprocidade rigorosa de uma pena; isto é, aplicar a pena na devida proporção da ação cometida contra alguém.

Contudo, alguns teóricos e juristas do Islã, como Bukhari, Ibn Nuhhas, Qutb, usam a palavra jihad para as batalhas que Maomé liderou no combate aos infiéis e no intuito de transformar o seu mundo na terra do islã. Segundo Ibn Nuhaas (814 [1411]), a batalha de Bard, no ano 2 hijrah (624 na era cristã), é a maior das batalhas e pode ser considerada o marco histórico para o início do Jihad.

Nessa batalha, Maomé enfrentou os Coraixitas, tribo politeísta que negava a existência de Allah. Para os muçulmanos, este agir estava de acordo com o Corão, o qual exige a luta contra os descrentes, indicando “oh crentes, combatei os vossos vizinhos incrédulos, para que sintam severidade em vós; e sabei que Allah está com os tementes” (Alcorão, 9:123, 1974).

A vitória foi atribuída a Allah e às promessas feitas aos muçulmanos pelo cumprimento da sua obrigação, segundo consta na surata nove:

Allah cobrará dos crentes o sacrifício de seus bens e suas pessoas, em troca do paraíso. Combaterão pela causa de Allah, matarão e serão mortos. É uma promessa infalível, que está registrada na Tora, no Evangelho e no Alcorão. E quem é mais fiel a sua promessa que Allah? Regozijai-vos, pois, da troca que haveis feito com Ele. Tal é o magnífico benefício (Alcorão, 9:11, 1974).

Notem que nesse versículo se manifesta a troca justa em função de uma aliança feita com deus. Esse argumento, segundo Ibn Nuhaas (814 [1411]) possibilitou aos muçulmanos a força necessária para lutar, bem como a vitória deu aos muçulmanos certa reputação perante os infiéis e, também, marcou o início da expansão da civilização islâmica no Oriente Médio.

Outro ponto relevante a ser destacado nesse versículo é a legitimidade da promessa não só feita aos muçulmanos, senão também aos judeus e cristãos, considerados no Alcorão como o povo do Livro, e consequentemente crentes em Allah, por esse motivo os mesmos deviam ser preservados, posto que o Islã veio para uni-los.

No entanto, alguns versos corânicos mencionam a falta de credulidade por parte de alguns adeptos do livro, por isso

A vergonha estará sobre eles onde se encontrarem, a menos que se apeguem ao vínculo com Allah e ao vínculo com o homem. E incorreram na abominação de Allah e foram condenados à destituição, por terem negado seus versículos e assassinado iniquamente os profetas, bem como por

terem desobedecido e transgredido os limites [...] Aqueles que trocam a fé pela incredulidade, em nada prejudicam a Allah, e sofrerão um doloroso castigo (Alcorão, 3:112-177, 1974).

Desta forma, o combate contra os cristãos e judeus também seria possível caso eles não aceitassem o Islã enquanto a única religião reconhecida por Allah. Assim, a luta pela constituição da fé islâmica seria contra todos os infiéis.

Se bem é certo que a batalha e a luta são mencionadas, muitas vezes se referem à ideia da oração e de conhecimento da religião como uma forma de fortalecer a fé; tal como mencionado na surata vinte dois, por exemplo, onde se diz: “E combatei com disciplina e sinceridade pela causa de Allah; Ele vos elegeu. E não vos impôs dificuldade alguma quanto à religião, porque é o credo de vosso pai, Abraão. Ele vos denominou muçulmanos, antes deste e neste (Alcorão), para que o Mensageiro seja testemunha vossa, e para que sejais testemunhas dos humanos. Observai, pois, a oração, pagai o zakat e apegai-vos a Allah, que é vosso Protetor. E que excelente Protetor! E que excelente socorredor!” (Alcorão, 9:122, 1974).

Embora o Alcorão mencione as batalhas de Bard, Hunain, Uhud e Trincheira como lutas militares em razão de autodefesa, direito de culto e preservação da fé, o jihad não é mencionado e nem está explicito como um pilar da fé islâmica.

Entretanto, é no hadith, livro de palavras e atos de Maomé, onde encontramos essa sugestão controversa dos aspectos espiritual (batalha) e militar (guerra) do jihad (Marranci, 2006).

Isto pode ser percebido em alguns trechos do hadith quando se expõe que o melhor jihad para mulheres, idosos, fracos, etc são a Hajj e a Umrah – peregrinações – (Bukhari, 2009; Ibn Nuhass, 814 [1411]), onde eles podem orar e cumprir com seus deveres de bons muçulmanos.

Assim, o jihad será retratado como um dos maiores atos da religião islâmica, já que esta religião é “hijrah e jihad” e ambas significam acreditar em Allah, no Alcorão e no profeta, assim como deixar os pecados para trás e lutar pela causa de Allah (Ibn Nuhaas, 814 [1411]). Logo, o jihad é retratado, no hadith, como uma das bases e a alma do Islã, definindo a vida do bom muçulmano e de seu compromisso indispensável com Deus.

Deste modo, o entendimento e reconhecimento dessas duas conotações de jihad, permitiu a categorização de dois tipos de jihad, al-jihad al-akbar (o maior jihad) e o al-jihad al-asghar (o menor jihad) (Bakker, 2006; Marranci, 2006). Ambos têm a função de cumprir os ensinamentos de Allah e de Maomé; porém, o primeiro pode

ser como a missão espiritual da luta contra as paixões, da constante oração e de passar os ensinamentos de Allah pelo mundo; enquanto o segundo é visto como a missão militar, combatendo com a espada os injustos, os apostatas e infiéis.

Esses significados são nada mais do que dois pontos de vista expressados desde o âmbito místico dos sufistas e o outro desde a percepção dos ulemás, sendo ambos nada mais do que uma vontade de Allah, segundo pudemos observar em alguns dos trechos do Alcorão. Concomitantemente, é preciso entender que ambos sentidos estão interligados, uma vez que um não nega o outro “sendo o ‘jihad da espada’ muitas vezes um complemento ou uma extensão do ‘jihad da alma’, e que a moral e a ‘boa intenção’ – de lutar para a glória de Deus – estão subentendidos na categorização do jihad” (Cherem, 2009, p.84).

Por sua vez, a ideia do radicalismo do Islã, e do jihad como instrumento de batalha, parte do entendimento de elevar a autoridade de Deus perante uma sociedade que usurpou o seu poder e marginalizou a religião e os valores muçulmanos. Por isso, é a partir das últimas décadas do século XX e inícios do século XXI que jihad se tornou novamente um fenômeno político e missionário, sobre o viés de “destruir a tirania e introduzir a verdadeira liberdade à humanidade” (Qutb, 2006, p.71, tradução nossa), sendo fundamental para o estabelecimento da sharia, o domínio de Deus na terra e a abolição do domínio do homem (Spencer, 2018).

Consequentemente, o jihad para os grupos radicais da nossa era é uma forma de “assegurar a completa liberdade para cada homem na terra, libertando-o da servidão de outro ser humano e, assim, poder servir a seu Senhor, quem é Único e sem associados” (Qutb, 2006, p. 81, tradução nossa). Tornando-se a única ferramenta de fortalecimento do Tawhid e de consolidação do Califado, ou Dar al-

Islã, nos territórios muçulmanos controlados pelos valores e governos seculares.

Esse radicalismo, como visto anteriormente, é resgatado da fusão das teorias radicais de Wahhab e Qutb, quem reformulam o tawhid e o jihad enquanto luta armada, negando a sua espiritualidade e exaltando o jihad al-asghar como a maior das ações.