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Na se¸c˜ao 2.1, observamos como o tempo m´edio que o sistema passa ocupando um estado macrosc´opico dado depende das probabilidades de observa¸c˜ao do conjunto de estados microsc´opicos compat´ıveis com aquele. Embora determinar a probabilidade de observa¸c˜ao de um ´unico microestado seja simples, bastando para isto conhecer sua energia, no caso geral n˜ao existem bons procedimentos para enumerar todos os microestados compat´ıveis com um macroestado. Na pr´atica, ´e necess´ario calcular probabilidades aproximadas para cada macroestado, baseadas em algum tipo de amostragem dos microestados compat´ıveis e o tempo em que o sistema os ocupa. Dentre v´arios protocolos poss´ıveis para este tipo de amostragem termodinˆamica, uma ideia relativamente direta ´e simular a evolu¸c˜ao temporal do sistema partindo de uma condi¸c˜ao inicial conhecida, e coletar as probabilidades a partir da trajet´oria dinˆamica do sistema.

Aqui, continuamos sob as hip´oteses adotadas na se¸c˜ao anterior; tratamos as estruturas de prote´ınas e quaisquer outras mol´eculas, tais como ligantes, ´ıons ou sol- vente, como conjuntos de ´atomos com posi¸c˜oes e velocidades determinadas com precis˜ao arbitr´aria, sob a a¸c˜ao de for¸cas determinadas por equa¸c˜oes Newtonianas simples. De fato, sob uma descri¸c˜ao totalmente cl´assica, as for¸cas decorrem imediatamente da energia potencial:

mi~r¨i = −∇iV ( ~r1, ~r2, . . . , ~rN) (2.14)

Naturalmente, a energia na equa¸c˜ao 2.14 ´e o pr´oprio campo de for¸ca des- crito na se¸c˜ao anterior. Em primeira aproxima¸c˜ao, observar a evolu¸c˜ao das configura¸c˜oes atˆomicas sob essas equa¸c˜oes de movimento seria equivalente a acompanhar a evolu¸c˜ao do sistema em tempo real com um aparato experimental de alt´ıssima precis˜ao, e de fato simula¸c˜oes de dinˆamica molecular oferecem muitas vezes a ´unica alternativa para observar determinados mecanismos moleculares. A solu¸c˜ao anal´ıtica destas equa¸c˜oes ´e, contudo, evidentemente invi´avel para qualquer sistema de interesse, dados os m´ultiplos acoplamen-

CAP´ITULO 2. ENERGIA E CAMPOS DE FORC¸ A EM PROTE´INAS 39 tos entre as equa¸c˜oes de movimento de cada coordenada. Ainda assim, existem estrat´egias de integra¸c˜ao que permitem propagar solu¸c˜oes num´ericas por muitos passos, mantendo caracter´ısticas de performance e estabilidade aceit´aveis. Talvez surpreendentemente, a estrat´egia mais direta n˜ao ´e uma delas. Calcular as posi¸c˜oes e velocidades aproximadas a um tempo t + ∆t mediante uma expans˜ao de Taylor de primeira ordem em torno de ~r(t) ou ~v(t), denominado m´etodo de Euler, incorre em s´erios problemas de estabilidade para tempos longos e acumula um erro global de ordem linear em ∆t[38]. M´etodos de integra¸c˜ao mais sofisticados s˜ao necess´arios, e o empregado aqui e na grande maioria das aplica¸c˜oes em dinˆamica molecular ´e o algoritmo Verlet-velocidade, com melhor estabili- dade e erro global da ordem de (∆t)2 sem grande aumento do custo computacional[39].

A dependˆencia dos erros acumulados com ∆t p˜oe em evidˆencia tamb´em o compromisso entre precis˜ao e custo computacional, na medida em que diminuir o erro esperado requer a subdivis˜ao do tempo real simulado em um n´umero maior de passos calculados.

De todo modo, pressuposta a disponibilidade de tempo computacional, o c´alculo de trajet´orias longas permite a observa¸c˜ao direta dos tempos de residˆencia ou n´umero de visitas do sistema ao estado de interesse, e com isto a caracteriza¸c˜ao de suas propriedades termodinˆamicas e a compara¸c˜ao com medidas experimentais. Para permitir compara¸c˜oes em equivalˆencia de condi¸c˜oes, ´e frequentemente prefer´ıvel simular o sistema sob temperatura constante, uma sofistica¸c˜ao em rela¸c˜ao `a energia total constante que j´a ´e assegurada pela integra¸c˜ao correta das equa¸c˜oes de movimento.

As t´ecnicas utilizadas para simular o acomplamento do sistema a um banho t´ermico s˜ao denominadas “termostatos”[40]. Aqui, o m´etodo utilizado ´e a integra¸c˜ao da equa¸c˜ao de movimento original perturbada pela adi¸c˜ao de um termo dissipativo e um estoc´astico, denominada equa¸c˜ao de Langevin[39]. Os termos adicionais atuam em conjunto para corrigir a energia cin´etica m´edia na dire¸c˜ao do valor desejado. Algoritmos similares existem tamb´em para o controle da press˜ao.

A combina¸c˜ao do algoritmo de integra¸c˜ao, do termostato e de um campo de for¸ca adequado ´e suficiente para realizar o que se entenderia por uma simula¸c˜ao de dinˆamica molecular padr˜ao, amostrando configura¸c˜oes atˆomicas de acordo com suas expec- tativas termodinˆamicas. Em alguns casos, contudo, modifica¸c˜oes podem ser incorporadas para acelerar a amostragem ou aproximar o sistema simulado de situa¸c˜oes experimentais espec´ıficas. Aqui, utilizamos dados provenientes de simula¸c˜oes adaptadas para repre- sentar a dissipa¸c˜ao de energia a partir de uma condi¸c˜ao inicial correspondente a uma perturba¸c˜ao t´ermica localizada. O protocolo utilizado nestas simula¸c˜oes ´e denominado Anisotropic Thermal Diffusion (ATD)[41, 42].

No protocolo ATD, estabelece-se um gradiente local de temperatura mediante o acoplamento seletivo de apenas um setor do sistema ao banho t´ermico. O gradiente ´e mantido por um tempo curto, durante o qual o fluxo de energia ´e observado e registrado. Detalhadamente, um experimento de ATD em uma estrutura de prote´ına consiste nos

seguintes passos:

(i) Um conjunto de conforma¸c˜oes inicias aleat´orias s˜ao amostradas a partir de uma distribui¸c˜ao de equil´ıbrio a 300K, e cada uma ´e subsequentemente re-equilibrada a uma temperatura de 10K.

(ii) Para cada conforma¸c˜ao resfriada, um res´ıduo de amino´acido ´e selecionado e seus ´

atomos s˜ao acoplados ao banho t´ermico quente (300K), enquanto o banho t´ermico frio ´e desligado. O sistema ´e simulado por um tempo curto fixo da ordem de picos- segundos, durante os quais as temperaturas da prote´ına e de cada res´ıduo individual s˜ao periodicamente registradas.

(iii) O passo anterior ´e repetido para cada res´ıduo de cada conforma¸c˜ao inicial. Ap´os todas as simula¸c˜oes, e supondo que os resultados tenham convergido adequadamente, os resultados s˜ao tipicamente apresentados na forma de gr´aficos de temperatura final de cada res´ıduo, ou da prote´ına como um todo, em fun¸c˜ao do res´ıduo aquecido.

Figura 2.2. Resultados de um experimento de ATD, reportados na forma de um mapa de difus˜ao t´ermica (direita), tabulando a temperatura final atingida por cada res´ıduo em fun¸c˜ao do res´ıduo aquecido. `A esquerda, o mapa de contatos para a mesma prote´ına; a similaridade entre ambos evidencia a forte rela¸c˜ao entre a topologia das liga¸c˜oes e a capacidade de difundir calor. Reproduzido com autoriza¸c˜ao de [6].

O protocolo descrito mimetiza uma condi¸c˜ao experimental em que uma mol´ecula de prote´ına ´e sujeitada a uma excita¸c˜ao externa que incide sobre um res´ıduo espec´ıfico, tal qual a absor¸c˜ao de radia¸c˜ao ou a cat´alise de uma rea¸c˜ao qu´ımica[42]. Tendo em vista que o processo observado ocorre fora do equil´ıbrio, imp˜oe-se que as simula¸c˜oes sejam re- alizadas com a mesma dura¸c˜ao fixa para que os resultados sejam compar´aveis. Ainda

CAP´ITULO 2. ENERGIA E CAMPOS DE FORC¸ A EM PROTE´INAS 41 assim, a temperatura final atingida pela prote´ına varia substancialmente em fun¸c˜ao de qual res´ıduo se acopla ao banho t´ermico quente. Tal resultado ´e particularmente inte- ressante na medida em que res´ıduos identificados como especialmente capazes de dissipar calor sobre o resto da estrutura frequentemente coincidem com aqueles que destroem a atividade quando substitu´ıdos em experimentos de mutagˆenese s´ıtio-dirigida[42].

Embora possa-se conjecturar que a varia¸c˜ao da capacidade de difundir calor dependa da massa do res´ıduo aquecido, de seu car´ater f´ısico-qu´ımico ou sua acessibilidade ao solvente, a inspe¸c˜ao dos resultados sugere que o parˆametro dominante em primeira ordem ´e o tipo e n´umero de intera¸c˜oes das quais o mesmo participa. Um exemplo ´e ilustrado na figura 2.2. O cap´ıtulo 3, a seguir, ´e dedicado `a formaliza¸c˜ao desta observa¸c˜ao; constru´ımos e resolvemos analiticamente um modelo simples que reproduz adequadamente os resultados obtidos por simula¸c˜oes de ATD, destacando a importˆancia da topologia na difus˜ao de energia em prote´ınas.

Cap´ıtulo 3

Modelos de rede para

difus˜ao t´ermica em

prote´ınas

Neste cap´ıtulo, descrevemos investiga¸c˜oes realizadas com o objetivo de expandir e com- plementar os resultados obtidos durante o projeto de mestrado do autor[3], que tratou da modelagem da prote´ınas como redes de amino´acidos interagentes e a subsequente aplica¸c˜ao de ferramentas de Teoria de Redes para a identifica¸c˜ao de res´ıduos importantes no contexto da difus˜ao t´ermica. Apresentamos aqui, de forma resumida, a motiva¸c˜ao por detr´as de tal investiga¸c˜ao, bem como uma breve revis˜ao dos resultados apresentados por ocasi˜ao do fim daquele projeto, com o objetivo de contextualizar os experimentos realiza- dos posteriormente. Em seguida, apresentamos os desenvolvimentos que levaram `a forma final do trabalho, publicado em [43].

3.1

Difus˜ao t´ermica em prote´ınas

Apresentamos no cap´ıtulo 1 algumas caracter´ısticas f´ısico-qu´ımicas gerais de prote´ınas, enfatizando seu car´ater dinˆamico descrito como um ensemble de m´ultiplas conforma¸c˜oes. No cap´ıtulo 2, discutimos brevemente as leis que regem as probabilidades de ocupa¸c˜ao de cada conforma¸c˜ao, e como estas probabilidades podem ser calculadas por amostragem em experimentos de simula¸c˜ao computacional. At´e aquele momento, estivemos restritos ao caso particular em que a estrutura estudada est´a em equil´ıbrio t´ermico com sua vi- zinhan¸ca, com temperatura bem definida e, consequentemente, probabilidades relativas fixas. Apesar disso, gradientes ou varia¸c˜oes temporais de temperatura podem revelar em prote´ınas mecanismos de resposta ou adapta¸c˜ao que n˜ao s˜ao necessariamente previs´ıveis a partir de seu comportamento de equil´ıbrio.

Um exemplo pode ser observado quando uma prote´ına ´e submetida a uma per- turba¸c˜ao localizada, que leva um determinado res´ıduo a um estado vibracional consistente com uma temperatura mais alta que a do resto da estrutura. A relaxa¸c˜ao de um tal estado excitado se d´a, tipicamente, mediante transi¸c˜oes entre estados vibracionais caracterizados por deslocamentos progressivamente menores de um conjunto de ´atomos progressivamente maior, `a medida que a estrutura retorna ao equil´ıbrio. A transferˆencia de energia entre estados vibracionais distintos ´e possibilitada por acoplamentos que dependem do pr´oprio

CAP´ITULO 3. MODELOS DE REDE PARA DIFUS˜AO T´ERMICA EM PROT. 43 conjunto de intera¸c˜oes, covalentes e n˜ao-covalentes, entre ´atomos ou res´ıduos vizinhos. A topologia das intera¸c˜oes, contudo, imp˜oe que os efeitos de perturba¸c˜oes desta natureza n˜ao se propaguem isotropicamente sobre a estrutura, definindo “canais preferenciais” atrav´es dos quais a energia se dissipa mais rapidamente[44–46]. A figura 3.1 ilustra esse conceito. Quando n˜ao ´e dissipada eficientemente, uma perturba¸c˜ao dessa natureza pode precipitar o in´ıcio de uma rea¸c˜ao de desnatura¸c˜ao[47]. De fato, em algumas prote´ınas termof´ılicas e hipertermof´ılicas, a manuten¸c˜ao da atividade catal´ıtica parece depender da capacidade de direcionar excessos de energia para regi˜oes perif´ericas m´oveis, enquanto a estrutura¸c˜ao e flexibilidade adequadas s˜ao mantidas nos s´ıtios funcionais[48].

Figura 3.1. Ilustra¸c˜ao do mecanismo referido no texto por “difus˜ao anisotr´opica” de calor. `A esquerda, representa¸c˜ao de um gradiente transiente de temperatura, induzido por uma perturba¸c˜ao local que, a partir do ponto de aplica¸c˜ao, se dissipa isotropica- mente atrav´es de um meio uniforme. `A direita, uma perturba¸c˜ao localizada incide sobre a extremidade de uma cadeia polipept´ıdica. O efeito das distribui¸c˜oes n˜ao-uniformes e heterogˆeneas de cavidades e de contatos no interior da estrutura pode resultar na pro- paga¸c˜ao ao longo de canais privilegiados, de tal forma que regi˜oes distantes do ponto de aplica¸c˜ao da perturba¸c˜ao podem atingir temperaturas mais altas que regi˜oes adjacentes, se o acoplamento em rela¸c˜ao `as ´ultimas for de menor intensidade.

O mesmo tipo de fenˆomeno se observa em mecanismos de alosterismo, quando a associa¸c˜ao a um ligante ocasiona uma perturba¸c˜ao que se transmite e efetua uma mu- dan¸ca dinˆamica ou conformacional em uma regi˜ao distinta e possivelmente distante da estrutura[49–52]. Nestes casos, a existˆencia de canais preferenciais pode atuar no sentido de retardar uma dissipa¸c˜ao desorganizada da energia, permitindo a transmiss˜ao atrav´es do interior da estrutura at´e um s´ıtio funcional secund´ario[53].

Independentemente das suas consequˆencias funcionais, a existˆencia de canais sobre os quais a propaga¸c˜ao de energia ´e privilegiada parece ser uma propriedade intr´ınseca de estruturas de prote´ınas. Propriedades como a densidade e a compressibilidade de prote´ınas s˜ao similares `as de s´olidos, mas a distribui¸c˜ao espacial interna se assemelha a um empacotamento aleat´orio de esferas, com alta variabilidade nos raios das cavidades internas e densidade de empacotamento pr´oxima do limiar de percola¸c˜ao[54]. Em aglome- rados de percola¸c˜ao, canais de transporte surgem naturalmente como consequˆencia de sua

geometria[55], sugerindo que no interior de prote´ınas a existˆencia de canais preferenciais pode ser resultado do mesmo fenˆomeno. Esta observa¸c˜ao ´e parte da motiva¸c˜ao para os experimentos realizados neste cap´ıtulo.

Por seu car´ater eminentemente dinˆamico e transiente, a propaga¸c˜ao de energia fora do equil´ıbrio como nos contextos citados ´e de dif´ıcil observa¸c˜ao experimental. Embora existam alternativas como experimentos de relaxa¸c˜ao de spin em RMN[56], neste trabalho nos restringimos a t´ecnicas computacionais de modelagem, e na se¸c˜ao 2.3 apresentamos o protocolo ATD de simula¸c˜oes modificadas de dinˆamica molecular. O protocolo ATD ´e uma t´ecnica para acompanhar a propaga¸c˜ao de energia t´ermica em prote´ınas, tabulando a resposta de cada res´ıduo individual a partir de um estado inicial que simula uma per- turba¸c˜ao localizada. Os resultados de simula¸c˜oes de ATD tipicamente ressaltam o car´ater anisotr´opico e dependente da topologia da propaga¸c˜ao da energia, na medida em que os mapas de difus˜ao t´ermica observados guardam forte semelhan¸ca com o mapa de contatos entre res´ıduos na estrutura nativa[42].

Inserido nesse contexto, o projeto de mestrado do autor investigou o uso de redes complexas para modelar estruturas de prote´ınas enfatizando a topologia de suas liga¸c˜oes, e a subsequente aplica¸c˜ao de ferramentas de teoria de redes para identificar res´ıduos importantes para a difus˜ao de energia. Na pr´oxima se¸c˜ao, apresentaremos a metodologia empregada e os resultados obtidos.