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CAPÍTULO 3 ANÁLISE COMPARADA DOS DRAMAS TRÁGICOS A MORTE

3.4 O realismo psicológico: como ponto de interseção entre o teatro moderno norte-

3.4.1 A simultaneidade do espaço e do tempo

Miller e Andrade romperam com a estrutura formal do texto dramático, para que assim pudessem representar uma dupla temporalidade, entre o passado e o presente. Notamos que nas duas peças este recurso inovador está disposto de formas diferentes. No caso do drama norte-americano, os dois tempos se fundem de modo mais indivisível, assim como o espaço e o tempo, os quais, segundo Rosenfeld (1985), perdem a sua definição nítida, assemelhando-se a estrutura de um sonho. Isso explica o cenário da casa dos Loman ser em parte transparente, como Miller detalha na rubrica inicial:

Quando a ação se desenrola no presente, os atores devem respeitar as linhas imaginárias do cenário e entrar na casa apenas através da porta à esquerda. Mas, nas cenas do passado, estas convenções são quebradas, e os personagens entram ou saem de um quarto através das paredes. (MILLER, 1976, p. 10)55

55 Whenever the action is in the present, the actors observe the imaginary wall-lines, entering the house only through its door at the left. But in the scenes of the past these boundaries are broken, and characters enter or leave a room by stepping ‘‘through’’ a wall on to the forestage. (MILLER, 1998, p. 1)

Essas ocorrências de transposição temporal, encontradas também em Depois da queda, surgem na peça como representação da realidade subjetiva de Willy Loman. Ela, segundo Rosenfeld (1985), está associada à tentativa do protagonista de encontrar uma explicação para o próprio fracasso e o do filho. A cena que destacamos para exemplificar o uso desse recurso é a do restaurante, onde estão Biff e Happy em companhia das jovens Letta e senhorita Forsythe. Os rapazes estão à espera do pai, como combinado. Logo em seguida, chega Willy, esperançoso de ouvir do filho alguma boa notícia. Ao descobrir que novamente Biff fracassara, Willy retorna ao dia em que o filho vai ao hotel em Boston e descobre a sua farsa. Suas lembranças invadem-no aos poucos, até que involuntariamente ele volta a revivê-las, como se observa na cena seguinte:

A MULHER – (agora nervosa) Willy, você não vai atender à porta?! (O chamado da mulher faz com que Willy se aprume. Tenta sair, aturdido.)

BIFF - Ei, onde é que você vai? WILLY – Abrir a porta.

BIFF – A porta?

WILLY – O banheiro... a porta... onde é a porta?

BIFF – (conduzindo Willy para a esquerda) Siga em frente. (Willy se move pela esquerda.)

A MULHER – Willy, você vai se levantar, levantar, levantar? (Willy sai.)

[...]

A MULHER – Você não vai atender a porta? Ele vai acordar o hotel inteiro.

WILLY – Não estou esperando ninguém.

A MULHER – Por que você não toma mais um drinque, querido, e relaxa um pouco?

WILLY - Estou tão solidário.

A MULHER – Sabe que você me conquistou Willy? De agora em diante, toda vez que você chegar ao escritório, vou botar você imediatamente em contato com os compradores. Você não vai ter que esperar mais. Você é fantástico, Willy. (MILLER, 1976, p. 165-168)56

56THE WOMAN- (Now urgently) Willy, are you going to answer the door! (The woman’s call pulls Willy back. He starts right, be fuddled.)

BIFF - Hey, where are you going? WILLY - Open the door.

BIFF - The door?

WILLY - The washroom… the door... where’s the door? BIFF – (Leading Willy to the left] Just go straight down. [Willy moves left.)

THE WOMAN - Willy, Willy, are you going to get up, get up, get up, get up? (Willy exits left.)

Ao voltar à realidade, o velho caixeiro é informado por Stanley, o garçom, que seus filhos já foram embora, deixando a conta paga. Nessa cena, a simultaneidade temporal, permite que os espectadores tenham conhecimento geral e imediato do conflito existencial do protagonista, ao relembrar do dia em que seu filho tão querido deixou de ser um rapaz alegre, cheio de vontades, para se tornar um homem fracassado e sem grandes ambições.

Esta dupla temporalidade age também como recurso para intensificar algum momento de tensão, sendo um instrumento para demonstrar semelhanças, contrastes de sentimentos ou para evidenciar alguma ironia dramática. A ironia é traço constante na peça de Miller, já que Willy Loman mostra ser apegado aos tempos em que tinha muito sucesso nas vendas e nos relacionamentos de negócios. No início da peça, Willy relembra a época em que se vangloriava para os filhos de seus feitos como caixeiro.

WILLY – Eu entrei na estrada e segui para o norte. Fui até Providence. Encontrei o prefeito.

BIFF – O prefeito de Providence!

WILLY - Estava lá sentado no saguão do meu hotel. BIFF – E o que foi que ele disse?

WILLY – Ele disse “Bom dia!” e eu disse: “O senhor tem aqui uma bela cidade, prefeito”. E aí ele tomou café comigo. Depois eu fui a Waterbury. Bela cidade. Tem lá um relógio grande, o famoso relógio de Waterbury. Vendi bastante por lá. Depois, Boston. Boston é o berço da revolução. Bela cidade. Depois visitei outras cidades do Massachusetts, depois Portland, depois Bargor e daí para casa! (MILLER, 1976, p. 37-38)57

THE WOMAN - Aren’t you going to answer the door? He’ll wake the whole hotel. WILLY - I’m not expecting anybody.

THE WOMAN - Whyn’t you have another drink, honey, and stop being so damn self-centered? WILLY - I’m So Lonely.

THE WOMAN - You know you ruined me, Willy? From now on, whenever you come to the office, I will see that you go right through to the buyers. No waiting at my desk any more, Willy. You ruined me. (MILLER, 1998, p. 89- 91)

57WILLY - Well, I got on the road, and I went north to Providence. Met the Mayor. BIFF – The Mayor of Providence!

WILLY – He was sitting in the hotel lobby. BIFF - What’d he say?

WILLY – He said, ‘‘Morning!’’ And I said, ‘‘You got a fine city here, Mayor.’’ And then he had coffee with me. And then I went to Waterbury. Waterbury is a fine city. Big clock city, the famous Waterbury clock. Sold a nice bill there. And then Boston - Boston is the cradle of the Revolution. A fine city. And a couple of other towns in Mass., and on to Portland and Bangor and straight home! (MILLER, 1998, p. 18- 19)

Em A Moratória, a ironia é clara na cena em que Joaquim lê a notícia de que o governo concedeu dez anos para que os fazendeiros paguem as suas dívidas. A alegria que sente neste momento contrasta, simultaneamente, com o sentimento de tristeza de Helena no segundo plano, quando ela fica sabendo da crise do café e das consequências disso para o futuro de sua família.

JOAQUIM – (Primeiro Plano) Moratória! Moratória, minha filha! LUCÍLIA – (Primeiro Plano) O que isto?

ELVIRA – (Segundo Plano) É preciso ânimo, Helena!

JOAQUIM – (Primeiro Plano) Prazo! Prazo de dez anos aos lavradores. LUCÍLIA – (Primeiro Plano) Dez anos ?!

HELENA – (Segundo Plano) (Procurando a sua volta) É preciso... é preciso...

[...]

LUCÍLIA – (Primeiro Plano) Será verdade que vamos voltar? HELENA – (Segundo Plano) Minha casa!

JOAQUIM – (Primeiro Plano) Não tenha dúvida, minha filha! HELENA – (Segundo Plano) (Ainda mais angustiada) Minha família! LUCÍLIA – (Primeiro Plano) E a fazenda vai ser inteiramente nossa? HELENA – (Segundo Plano) (Num desespero crescente) Nossas terras! JOAQUIM – (Primeiro Plano) Foi sempre nossa!

HELENA– (Segundo Plano) Nossas terras! Não! Elvira! Será o fim de tudo! (ANDRADE, 1986, p. 146)

Na peça de Andrade, a alternância de planos e de tempo, de realidades do passado e do presente, ocorrem de forma mais objetiva, já que no cenário, há a divisão do plano da direita, que representa o ano de 1932 (primeiro plano), com o plano da esquerda, o ano de 1929 (plano esquerdo). Segundo Prado (1986, p. 628), esse esquema permite que o autor aproxime os fatos separados no tempo, destacando os momentos para os quais tem a intenção de chamar a atenção. Dentro dessas ocorrências de intercalação de planos, podemos notar que, além da ironia, Andrade utilizou o recurso para também reforçar o paralelismo entre ações ocorridas em momentos diferentes. É o caso da discussão entre Lucília e Olímpio, no plano da esquerda, e entre Quim e Marcelo, no plano da direita.

LUCÍLIA – (Segundo Plano) (Começando a entregar-se) Não. Não! JOAQUIM – (Primeiro Plano) Marcelo!

OLÍMPIO – (Segundo Plano) Não posso compreender, Lucília. Realmente não compreendo.

JOAQUIM – (Primeiro Plano) Quero saber por que é que saiu do frigorífico!

LUCÍLIA – (Segundo Plano) Basta que eu compreenda. Agora antes que... Por favor, deixe-me.

Marcelo – (Primeiro Plano) (voz) Estou com dor de cabeça.

JOAQUIM- (Primeiro Plano) Preguiçoso! Enquanto trocar o dia pela noite, será sempre assim.

OLÍMPIO – (Segundo Plano) Seja franca, Lucília! Está acontecendo alguma coisa que eu não posso saber? (Aproximando-se) confie em mim!

LUCÍLIA – (Segundo Plano) (Temendo o contato) Não me encoste a mão, já disse.

[...]

JOAQUIM– (Primeiro Plano) A Lucília parece outra! ... E você nesta indiferença! (Pára e olha para o quarto) Marcelo! (ANDRADE, 1986, p.156-157)

Nessa cena simultânea, ainda na fazenda Lucília decide terminar seu namoro com Olímpio, para poder ficar com os pais e assim ajudá-los com seu trabalho de costureira. Já no primeiro plano, na cidade, Joaquim chama a atenção de Marcelo, pela falta de compromisso com o trabalho no frigorífico. Notamos o contraste de personalidades entre Lucília e Marcelo, já que ela sacrifica sua felicidade para trabalhar e ele, alcóolatra, passa mais de uma noite fora de casa, sem se esforçar para ajudar a família.

Essa ênfase na temática temporal e espacial reforça o contraste entre o “velho” e o “novo”, assim como entre a vida da cidade e a do campo, entre o desenvolvimento urbano e a decadência rural – que Jorge Andrade, antes de escrever A Moratória já fizera questão de focalizar, em O Telescópio. De acordo com Rosenfeld (1986), a peça mostra “um quadro da vida rural” de alguns anos após a crise do café, traçando um retrato de “um estilo de vida sólido e tradicional, de uma velha geração de fazendeiros em contraste com o dos jovens, dissolutos, instáveis, contagiados por padrões metropolitanos”. (ROSENFELD, 1986, p. 603)

Assim como A Moratória, a peça acima citada também dispõe do jogo de simultaneidade entre dois espaços (da varanda e da sala da casa). No plano da varanda, fica o casal Francisco e sua mulher Rita a admirarem o céu através de um pequeno telescópio, juntamente com os vizinhos, o fazendeiro Antenor e a sua mulher Alzira. No outro plano, no espaço da sala, estão os filhos Geni, Ada, Bié, Leila e seu marido Luís, que passam o tempo a jogar cartas e a disputar entre si e contra a vontade dos velhos, a

partilha da fazenda. Tal recurso cenográfico proposto por Andrade deixa claro o confronto entre as gerações.