• Nenhum resultado encontrado

Sinais de uma epistemologia complexa

No documento Lista de Ilustrações (páginas 62-68)

INDÍGENA APINAYÉ: INDÍCIOS DE IMPLICADORES MÚTUOS

3.3 Sinais de uma epistemologia complexa

intuição, a emoção, os sentimentos, e a razão são elementos inseparáveis do homem. Na próxima subseção busco as marcas de um processo epistêmico sujeito às emergências e incertezas inerentes à vida, a sua necessidade de sobrevivência e transcendência.

3.3 Sinais de uma epistemologia complexa

Desejo prosseguir a discussão no sentido de procurar elementos que me permitam identificar uma epistemologia dos educadores indígenas apinayé. Assim, além de continuar com a tarefa de distinguir a Educação Indígena da Educação Escolar Indígena, estou propelido a abrir um espaço no âmbito desta tese para exemplificar o que me parece ser a gênese da investigação. Para tanto, faz-se necessário dar voz para uma atividade didática da Educação Indígena Apinayé, na qual as crianças apinayé desempenharam um papel ativo na produção e difusão de fazeres e saberes que são próprios daqueles que convivem, sobrevivem e

transcendem como bricoleurs da natureza.

Não esquecendo, obviamente, a perspectiva teórica apontada na natureza da problematização deste estudo, que propõe o estabelecimento de possíveis confluências entre a Etnomatemática a Teoria da Complexidade e a Educação Indígena. Nesse momento, reportar-me então, a informações registradas no caderno de campo, relativas ao dia 06/09/2010, mais precisamente no final da tarde.

Naquela tarde, eu me dirigira para a casa do Tehprè (Sr. Alcides), na

Aldeia São José ± TO, com a finalidade de atender a uma solicitação que ele me

fizera alguns dias antes. Disse-me ele que queria fazer um retrato de toda a sua família, mas antes eles fariam pinturas corporais para que a fotografia ficasse bonita.

O seu genro, Saki (Osvaldo) ficara com a responsabilidade de procurar jenipapo

(Genipa americana) na mata.

A extração do sumo do jenipapo é uma das formas pelas quais os

apinayé obtém a cor preta para as suas pinturas corporais. Enquanto Tehprè

explicava-me que a época não era propícia para colheita dos frutos do jenipapeiro, e

até aquele momento o Saki não havia encontrados os frutos apropriados para a

extração da tinta, os quais devem ser colhidos antes de madurarem, eu observava a movimentação de um grupo de crianças que brincavam à sombra de uma mangueira

(Mangifera) a cerca de 60 metros de onde nos encontrávamos. Quando percebi, um dos meninos estava acendendo uma pequena fogueira; subitamente, disse para

Theprè, misturando palavras da Língua Apinayé ao meu Português, que iria ver a brincadeira das crianças, ao passo que também me despedia dele na língua indígena.

Aproximei-me das crianças cumprimentando-as na língua indígena e, da mesma forma, as inquiri sobre os seus nomes indígenas. Essa conversa mediou a descontração, pois a minha dificuldade em pronunciar os nomes corretamente os levava a sorrir. Mas nada se compara quando quis saber a respeito da brincadeira que elas estavam fazendo, usando o meu escasso vocabulário da língua indígena, e novamente misturando palavras da Língua Apinayé e Portuguesa, penso que foi o suficiente para inserir-me entre essas crianças.

Eram quatro meninos e quatro meninas, cujas idades estimo que variavam entre 3 e 10 anos. Essas crianças foram guardando os frutos do cajueiro (Anacardium occidentale), as amêndoas, popularmente chamadas de castanhas, após consumirem o pseudofruto durante aquele dia, para torrá-las posteriormente.

Conforme observei, os meninos acenderam duas pequenas fogueiras reunindo algumas pedras e cacos de tijolos em volta de cada fogueira para servir de suporte para duas panelinhas onde seriam depositadas as castanhas para

VHU³TXHLPDGDV´H[SUHVVmRXVDGDQRVHQWLGRGHDVVi-las.

FIGURA 05± CRIANÇAS APINAYÉ QUEIMANDO CASTANHAS DE CAJÚ

Convém observar que as panelinhas eram ligeiramente diferentes quanto à altura da borda, sendo que a mais alta possuía alguns furos no fundo que servem para permitir que as chamas entrem em contato com as castanhas.

Assim que o fogo foi aceso, as panelinhas foram colocadas sob as pedras e, em seguida, as crianças colocaram as suas castanhas para queimar. É importante frisar que, nesse momento, uma conversa entre elas levou-as distribuir as castanhas entre as duas panelinhas por critérios que desconheço na sua totalidade, no entanto, observava que a capacidade das panelinhas tinha sido considerada em função do número de castanhas que fora colocada na panelinha de borda maior.

Os dois meninos que estaYDP ³HQFDUUHJDGRV´ GH TXHLPDU DV

castanhas portavam pequenas varas secas de cerca de um metro de comprimento, as quais foram colhidas nas imediações da mangueira. As varas serviram para mexer as castanhas nas panelinhas, pois, à medida que as castanhas vão sendo aquecidas, desprendem óleo e, inicialmente uma fumaça branca e densa é liberada. Os meninos se mantêm ligeiramente afastados e mexendo as castanhas com as varas, pois é comum que pequenas gotas de óleo se desprendam sob pressão, causando queimaduras caso entrem em contato com a pele. Por sinal, várias vezes eles deram boas gargalhadas dessa situação, pois cada vez que uma dessas gotas se desprende ouve-se um barulho bem característico.

FIGURA 06±SABERES E FAZERES AO QUEIMAR CASTANHAS DE CAJÚ

Observei também, por duas vezes, que os meninos que estavam queimando as castanhas solicitavam aos demais que apanhassem nas imediações gravetos secos para alimentar o fogo, o que era atendido por quase todos, a exceção era por parte de uma das meninas, a que me pareceu mais velha, e sua tarefa consistia em dispensar cuidados para a mais nova. A menina mais nova, cerca de três anos, dirigiu-me a palavra várias vezes, mas pouco me foi traduzido,

um dos meninos que queimava as castanhas disse-PHSDUD³ILFDUROKDQGRRIRJR´

Em determinado momento, quando o óleo das castanhas está suficientemente aquecido, as chamas que passam pelos furos da panelinha desencadeiam a combustão, e as castanhas literalmente pegam fogo. No caso da outra panelinha, que não possuía furos, após o menino observar que as castanhas haviam desprendido óleo suficiente, ele usou a extremidade da vara que portava para desencadear a combustão, para isso a colocou em contato direto com o fogo em baixo da panelinha e logo que uma chama se formou, como uma tocha, ele a colocou em contato com as castanhas, e o óleo entrou em combustão.

Não se pode deixar as castanhas queimarem por um tempo indefinido, pois isso leva as castanhas a passarem do ponto. Para a minha surpresa, uma das meninas, de súbito, ao perceber que chegara o momento de se apagar as chamas das castanhas, abaixou e apanhou um punhado de areia do chão e arremessou com força sobre o fogo que estava sob as castanhas, apagando-o. Uma gargalhada gostosa se fez ouvir, e se repetiu logo depois em relação à outra panelinha.

FIGURA 07±SER E CONVIVER TRABALHAR EM GRUPO

Com a vara os meninos empurraram as panelinhas para o lado, cerca de um metro, afastando-se, assim, das brasas das fogueiras; depois, despejaram as castanhas das duas panelinhas no mesmo local no chão. As crianças se aproximaram do local, enquanto os que já estavam próximos enterravam as castanhas, jogando punhados de areia sobre elas. Em seguida, um dos meninos pisou sobre o local e, depois, as crianças passaram a revolvê-las na areia. Além de esfriar as castanhas ao enterrá-las por alguns minutos, a areia do solo ajuda a retirar o excesso de óleo que, porventura, ainda esteja nas cascas, pois o óleo das castanhas mesmo depois de submetido a esse processo ainda conserva SURSULHGDGHV³iFLGDV´TXHHPFRQWDWRFRPDSHOHFDXVDPTXHLPDGXUDV

Por duas vezes essas crianças dividiram o que tinham para comer comigo. Em ambas as ocasiões o número de castanhas que me era oferecido era superior àquele que ficava em suas mãos. Agradecia na língua indígena e, misturando Apinayé ao Português, tentava dizer-lhes que não estava com fome. Tomei, assim, duas castanhas e devolvi as demais, para, em seguida, tal qual as crianças fizeram, usar as pedras locais para quebrar as cascas e saborear as amêndoas junto delas.

Tenciono, a seguir, pontuar mais algumas reflexões a partir da experiência proporcionada pelas crianças apinayé.

(i) Qualifiquei as crianças apinayé como sendo bricoulers da

natureza, no início dessa subseção; para além de lhes outorgar um adjetivo, num sentido de uma licença poética, é preciso perceber que elas, em meio aos saberes e fazeres de que dispunham, selecionaram e articularam informações, imputaram-lhes significados, procuraram sinais e encaixes entre as mesmas, e, como hábeis artesões, geraram, validaram e difundiram conhecimentos, os quais, num plano mais imediato, estão interconectados com a sua sobrevivência.

(ii) Perceber as crianças apinayé como epistemólogas de saberes tradicionais perpassa a noção de que o conhecimento pode configurar-se como um produto artesanal cognitivo, há marcas que transcendem o plano perceptível e coabitam a sua forma de ser e conviver de forma inseparável da vida.

Imputar as crianças indígenas apinayé o reconhecimento de sua produção intelectual frente à indeterminação e incertezas inerentes a sua sobrevivência e transcendência, significa que elas dispõem de uma epistemologia complexa, ou seja, uma epistemologia que é tecida em conjunto, integrada, interconectada as tradições socioculturais de seu povo, significa reconhecer a existência de processos e instrumentos cognitivos capazes de enfrentar os paradoxos e antagonismos que as qualificam, entre outras coisas, como epistemólogas das tradições socioculturais de seu povo.

Ao expor esses fatos, percebo a necessidade de nutrir a investigação com informações decorrentes da literatura, bem como, do trabalho de campo, para posteriormente compor o teor das respostas que vislumbra uma sistematização da epistemologia dos educadores indígenas apinayé. No próximo capítulo, apresento elementos que, segundo minha percepção, caracterizam o cinzel epistemológico dos educadores indígenas apinayé.

4 O SABER/FAZER/SER E CONVIVER APINAYÉ: UM CINZEL

No documento Lista de Ilustrações (páginas 62-68)