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Singularidades, séries: “A grande descoberta da matemática foi pensar a singularidade não mais em relação ao universal, mas em

relação ao ordinário ou regular”, afirmou Gilles Deleuze em um de seus cursos sobre o pensamento de Leibniz. Naquele curso, Deleuze revisitava as arquiteturas da geometria clássica para delinear os impactos trazidos pelo cálculo diferencial de Leibniz — notadamente a inclusão das curvas — e, a partir dali, chegar a um conceito filosófico de singularidade. Ao conceito, importa justamente aquela descoberta pela qual, mais uma vez, a matemática antecipou a filosofia: a singularidade não é uma ponte para o universal, mas um ponto que transtorna o sentido do que está em sua vizinhança. Mais além, não apenas o singular coloca-se em relação com o ordinário, mas em larga medida depende dele — é pelo prolongamento dos sentidos ordinários transtornados que o singular se faz ver e ouvir:

O que conta, no pensamento, são os pontos singulares e aqueles ordinários. Ambos são

necessários: se o seu pensamento é composto somente de pontos singulares, você não tem qualquer método de extensão ou prolongamento — é inútil; se você tem apenas pontos ordinários, é do seu interesse pensar em qualquer outra coisa. […] Em outras palavras, o pensamento do singular é o mais modesto pensamento do mundo. É ali que o pensador necessariamente torna-se modesto, porque o pensar é a extensão em série de ordinários, e o pensamento explode no elemento da singularidade — tal é o conceito.69

No esteio das — tão alegres — formulações de Deleuze, entendemos a singularidade como um elemento tão súbito quanto extraordinário que faz o pensamento explodir em possibilidades e transtornar os sentidos. O pensar, por sua vez, vem como um prolongamento variante daqueles sentidos transtornados, agora compondo uma série, de que majoritariamente fazem parte os elementos ordinários. A ideia de série, portanto, é a de uma extensão. Há, na série, pontos extraordinários, singulares, que acarretam a inflexão dos sentidos, que levam a linha a curvar-se. Entretanto, para que as curvas se formem, é preciso que haja pontos ordinários para compô-las e percorrê- las, não de cabo a rabo (porque é próprio das séries o infinito e o infinitesimal, e tal é a novidade do pensamento barroco de que Deleuze se apropria),70 mas sempre parcialmente, um elemento de cada vez,

sempre preparando o terreno para que a próxima singularidade se aproxime e, mais uma vez, modifique seu sentido. O mundo, dessa 69 DELEUZE. Sur Leibniz. Transcrição da aula de 29 de abril de 1980, s/p. 70 “O barroco inventa a obra infinita ou a operação infinita. O problema não é como findar uma dobra mas como continuá-la, fazê-la atravessar o teto, levá-la ao infinito”, escreve Deleuze. Da leitura que o filósofo francês faz dos escritos (notadamente os marginais) de Leibniz, interessam as virtualidades das linhas de inflexão que se atualizam na alma e se realizam na matéria. Cada atualização e cada realização, por sua vez, reportam não à totalidade do universo, mas ao seu infinito de possibilidades. A dobra, nesse sentido, é a curvatura, a inflexão que cada coisa — atualizada, realizada — faz sobre si própria para incluir (e não apenas conter) esse campo de infinitudes sempre moventes e infinitamente permutáveis. No limite, a dobra é a inflexão do infinito sobre o infinito mesmo — mesmo, e portanto sempre-outro. DELEUZE. A dobra, p. 66.

maneira, é visto como “uma infinidade de séries convergentes, prolongáveis umas nas outras, em torno de pontos singulares”,71 e o

pensamento é o que se dá na passagem entre singular e ordinários, uns afetando o outro (que assim difere de si próprio), não tendo em vista o universal, mas traçando um movimento infinitamente prolongável e extensivo de regularidade e variância, ou ainda, de repetição e diferença. Tal é um dos motivos da afirmação de Deleuze, em Lógica do

sentido, de que “a forma serial se realiza necessariamente na

simultaneidade de duas séries pelo menos”.72 De duas séries pelo menos:

porque, se as séries convergem umas nas outras infinitamente, se elas se prolongam umas nas outras infinitamente, o olhar para uma série necessariamente deve considerar ao menos uma outra para a qual ela há de convergir. Não há, nesse sentido, uma série absoluta que remeta a um universal. Há, ao contrário, uma infinidade de séries que só podem ser percorridas em relação a.

Quanto a este trabalho: tendo sempre em vista o horizonte de um

outro livro que não se lê, procuramos percorrer, em suas duas primeiras

partes, séries distintas — e convergentes — disparadas a partir de duas figuras reconhecidas nos excertos do Viajante de Calvino. Cada uma das séries tem como porta de entrada uma singularidade que se estabelece em relação com o livro: a primeira, o gesto de sua leitura; a segunda, o de sua escritura. Não há, entretanto, uma porta de saída, senão uma continuidade projetada (ou, para rememorar a fórmula de clausura de Leibniz celebrada por Deleuze, não há janelas, mas a infinitude de um movimento interior). Trata-se, assim, de um regime de composição (e igualmente de pesquisa e escritura) que não busca chegar a conclusões universalizantes ou a um termo final — não há, de fato, ponto de chegada, senão um movimento em direção a, e é justamente esse movimento, sujeito às intempéries da inflexão, que buscamos para fazer juz a uma questão (a questão do livro) que, se resolvida, concluída ou

71 DELEUZE. A dobra, p. 106. As noções de singularidade e inflexão serão investigadas de maneira mais detida na primeira parte deste trabalho. Aqui, interessa-nos tão somente delinear o nosso método de escritura a partir das figuras: um método de passagem, que vai do singular ao ordinário e do ordinário ao singular, não tendo em vista efetuar retenções universalizantes, mas buscar o movimento em torno do qual um livro dobra um outro.

levada a termo, não pode resultar senão em incompreensões, totalizações e, no limite, à nulidade de efeitos.

Nossa escrita, portanto, não visa a análises demasiado detidas, senão a uma leitura que procura percorrer as séries pela passagem de um

elemento ao outro. Afinal, é ao transitar pelas séries que se assomam

que se pode perceber o transtorno dos sentidos em torno de suas singularidades. Mais além, pode-se experienciar o prolongamento, ou a extensão desses sentidos transtornados em cada elemento regular que se segue. Nessa escrita que vai de um elemento a outro, de uma ideia a outra, de um texto a outro, ou ainda, de um livro a outro, buscamos um efeito, um sentimento linguageiro, amoroso, talvez, que se produza do movimento percorrido e da sucessão de signos, imagens e leituras.

Tendo isso em vista, se na primeira parte temos como ponto de partida a figura de uma singular cena de leitura, passamos dela a um livro — o Viajante —, e do livro em sua materialidade à busca de uma operação que se efetue sobre ele; das (im)possibilidades da operação de leitura ao que ela tem de inesgotável, do visível ao legível, do legível ao invisível, do invisível ao ilegível; desse senso de ilegibilidade (ou de uma leitura de olhos fechados), passamos à busca de uma linha; da linha, passamos à dobra. Já na segunda parte do trabalho, escrevendo a partir da figura de uma cena de escritura, passamos da notte buia da escritura à escuridão noturna e plena de dúvidas do Viajante; das obscuras questões que rodearam aquele que o escreveu ao seu artifício de dobrá-las no livro e na ponta do próprio nome; da dobra como artifício, ou da dobra da dobra, chegamos a um desejo pelo livro perdido, escondido e distante: o apócrifo, dobra do lado de fora, um outro livro que não se lê.

3. Dobras, desdobras: É certo que a dobra, ao longo deste