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Sintetizando: o que fazem essas crianças fora da escola?

3. A QUARTA SÉRIE RE: AS CRIANÇAS EM DIFERENTES TEMPOS E

3.2. Essas crianças da 4ª série RE

3.2.1. Em destaque as crianças entrevistadas

3.2.1.3. Sintetizando: o que fazem essas crianças fora da escola?

Em vários depoimentos, alguns meninos e meninas mostram como parte de seu lazer o passeio na prainha, um lugar na cidade que é turístico, em que se têm alguns bares na areia da praia. Antes de chegar à parte de areia, tem-se o que as pessoas da cidade chamam de orla, uma calçada que tem de comprimento quilômetros e onde muitas pessoas fazem caminhada. Existe um parquinho, em que algumas crianças brincam, e algumas famílias aproveitam as sombras das árvores e fazem piquenique.

As crianças entrevistadas dizem que, na rua, brincam mais de pega-pega, esconde- esconde e de verdade ou desafio. Porém, na escola, não costumam brincar de esconde- esconde e pega-pega. As meninas costumam brincar de “coca-cola” com os meninos da mesma turma. Essa se parece com a brincadeira de roda, com cantorias, mas tem uma regra de que um tem que pisar no pé do outro. Os meninos brincam mais de lutinha e de correr atrás de alguma menina, mas sem combinar algum tipo de brincadeira ou jogo. As outras crianças da escola, entre 8 e 9 anos, gostam mais de brincar de jogos de perseguição, como pega- pega e esconde-esconde, semelhante às brincadeiras realizadas na rua pelas crianças da 4ªRE. Os relatos das meninas indicam que elas são mais livres, em suas brincadeiras, para interagir com

meninos, quando as brincadeiras são realizadas na rua. Porém, elas apontam três situações para que isso não aconteça: a primeira de não brincarem com meninos por não morarem perto de suas casas; a segunda, porque as mães não permitem, e a terceira por não gostarem de brincar com meninos. Já o motivo dado pelos meninos para não brincarem com meninas coincide com os argumentos que as meninas deram. As meninas que responderam que não brincam com meninos por não ter quase meninos perto de suas casas, ou porque a mãe não deixa, interagem com meninos na escola, mais pela conversa do que por brincadeiras ou jogos de perseguição.

A percepção que os profissionais da escola demonstram ter dessas crianças é de que são desocupadas, sem controle por parte dos responsáveis e provindas de “famílias desestruturadas”. Em seus pronunciamentos, elas são nomeadas de “crianças-problema”, a ponto de as crianças das outras quartas séries se referirem a elas da mesma forma. Verifiquei, no livro de ocorrências disciplinares da escola, que, nas demais quartas séries, se apresentavam números equivalentes de ocorrências registradas. Também tive a oportunidade de ouvir sérias reclamações de uma professora da outra 4ª série, sobre alguns de seus alunos. O discurso sobre a “sala das crianças-problema”, estereotipado e estigmatizante, era vigente antes mesmo da entrada dessas crianças na escola, sendo que essa marca perseguiria qualquer criança que fosse estudar nessa classe.

Ali, se produzem identidades e subjetividades, através de gestos, de palavras e de práticas visíveis e invisíveis, sutis, perceptíveis e imperceptíveis, conscientes e inconscientes. Eles e elas eram levados a se auto-classificarem como diferentes das outras crianças. Como numa corrente de persistência e repetição: de tanto ouvir dizer que sou “X”, posso acabar por acreditar que sou “X”. As crianças tinham suas formas de resistência, enfrentavam os adultos, não concordavam com suas declarações, mas, como vítimas de um assalto, podem não resistir e se entregar.

As contradições são inevitáveis. De um lado, cabisbaixos, engolem as suas palavras e entram na linha da normalidade; de outro, não desistem e contra-atacam, fazendo questão de vestir a roupagem34 que lhes foi oferecida, bem como fazendo uso das armas recebidas, as quais deverão abalar ainda mais as estruturas da ordem social e escolar, que já são tão temidas e criticadas socialmente.

Telles (2005) também relatou, em sua pesquisa, a discriminação que sofrem as crianças que são mais desfavorecidas economicamente. Segundo a professora da sala que

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Utilizei essas metáforas para expressar a roupagem que significa o estigma de crianças-problema e as armas são as características que apresentam essas crianças de serem agressivas, briguentas e indisciplinadas.

observou, as crianças que faltavam o faziam em virtude da desestrutura das famílias, pois afirmava que “meninos e meninas não faziam nada o dia inteiro e a maioria ficava na rua”(p.102).

As famílias dos alunos da 4ª série RE também são vistas como desestruturadas, mas o que seria uma família desestruturada? Seria uma família que não é composta por pai, mãe e irmãos? Se for por esse motivo, há um engano aí, pois a maioria dessas crianças tem em suas casas pai, mãe e irmãos. Seria outro, então, o motivo? Talvez o fato de que a criança provenha de uma família menos favorecida economicamente? Nesse caso, os professores e demais profissionais da escola contariam, porventura, com renda salarial tão acima daquela média apresentada pela família de seus alunos?

Como observado nos depoimentos das crianças, eles e elas trabalham, sistematicamente, todos os dias, seja se responsabilizando por importantes afazeres domésticos, seja trabalhando fora de casa e ganhando algum dinheiro ou não. Das dez crianças entrevistadas, entre meninos e meninas, somente uma não tinha uma rotina de trabalho comprometida com certos tipos de atividades domésticas, sendo que uma delas não o realizava por que trabalhava fora de casa. Três crianças faziam trabalhos informais, sendo que somente um menino não estava trabalhando naquele momento, mas havia trabalhado em oficina mecânica.

Portanto, essas crianças não são desocupadas, pois vivenciam uma rotina permeada por responsabilidades comparadas, em vários casos, às de um adulto. Observe-se, no quadro abaixo, o que disseram as crianças entrevistadas sobre seus compromissos diários com responsabilidades que envolvem trabalho:

Quadro 1. Nome das crianças e tipo de ocupação diária.

Nome da criança Idade Tipo de ocupação diária

Raí 11 anos Vendedor de picolé

Taís 11 anos Ajuda nos afazeres domésticos

Alessandra 12 anos Ajuda nos afazeres domésticos

Lílian 11 anos Brinca e assiste televisão

Suzana 11 anos Trabalha de babá

Jéssica 10 anos Ajuda nos afazeres domésticos

Jonas 11 anos Ajuda nos afazeres domésticos

Jorge 10 anos Cuida do irmão mais novo

Gustavo 12 anos Ajuda nos afazeres domésticos

e cuida do irmão mais novo

Quando elas dizem que se consideraram adolescentes e vivem como crianças, como veremos adiante, revelam que “brincar” significa coisa de criança, e, como gostam de brincar, consideram-se crianças. Da mesma forma, por observarem as transformações no próprio corpo, pensarem em namorar e terem responsabilidades de trabalho idênticas às dos adultos, consideram-se adolescentes. A dicotomia entre ser criança e ser adulto está presente em suas falas, uma vez que, para elas, ser adolescente é quase uma forma de ser adulto.

As diferenças de gênero precisam ser analisadas de acordo com o contexto social observado, uma vez que os resultados desta pesquisa não coincidem com o que mostra Telles (2005), sobre serem as meninas que apresentam um maior controle nos tempos da casa e na escola. Observei, ao contrário, que as meninas e os meninos, de modo geral, realizam os mesmos tipos de tarefas, como lavar a louça, limpar a casa e cuidar dos irmãos mais novos. Os meninos, no entanto, não exerciam somente serviços considerados masculinos por envolver força física, como carregar lixo, varrer o quintal etc., mesmo em casas em que se tinha irmã e os afazeres eram divididos. Os meninos brincam à noite na rua como as meninas, porém uma das meninas respondeu que a mãe não a deixa brincar com outros meninos, e uma respondeu que brinca à noite, mas não gosta de brincar com meninos.

As categorias como raça/etnia, classe, religião, idade se entrecruzam com a categoria de gênero, para que possamos entender o fenômeno das relações sociais. As diferenças de gênero vão além dos papéis masculinos e femininos socialmente atribuídos a meninos e meninas como comportamentos considerados desejáveis em sua cultura ou sociedade. A influência do meio social em que vivem e os significados atribuídos às diferenças dos sexos podem, em situações circunstanciais, e, dentre essas, as condições econômicas familiares, influenciar para que meninos exerçam papéis considerados femininos e as meninas exerçam papéis considerados masculinos. Os papéis sociais, como as identidades, são políticos, negociados e readaptados. A sua constituição não é nem fixa e nem binária, segundo é comumente definida. Embora sejam constituídos por oposições binárias, não são fixos.As próprias normas são constantemente ressignificadas e reordenadas segundo os lugares e as situações específicas em que ocorrem.

Por meio das relações dialógicas, a palavra tem a função social de comunicação e de instituir significados e sentidos para as práticas sociais. Ela pode (re)produzir modos de ser, de pensar e de agir, pois a sua enunciação, transmitida de “boca em boca”, cria e recria modos de interação social ou grupal. Isso ocorre, seja de forma imposta ou coercitiva, seja através de formas sutis e subliminares. As palavras expressam e instituem práticas e representações preconceituosas sobre determinado objeto, grupo ou pessoa. No caso dessas

crianças, por mais que resistissem ao estigma de “crianças-problema”, responsabilizadas pelo abalo da ordem escolar, tornava-se grande a probabilidade de que se identificassem com o rótulo a elas conferido. As representações dos adultos dessa escola acerca de crianças que fazem parte de grupos de recuperação de ciclo reafirmam a identificação que receberam e reiteram seu baixo rendimento escolar e desvalorização social.

Bakhtin concebe as relações dialógicas como formadoras de ideologia e da constituição da subjetividade. Numa releitura desse autor, Jobim e Sousa (1994) trazem essa discussão para reflexão sobre as trocas verbais na construção da subjetividade da criança e a apreensão que esta faz do seu meio social, absorvendo e produzindo seus discursos pelo uso dinâmico da palavra. Assim, destacamos essa análise.

Entretanto a concepção de linguagem por ele construída nos remete para um novo olhar e uma outra compreensão do papel das trocas verbais na formação das ideologias e na constituição da subjetividade da criança. As questões sócio-ideológicas abordadas na perspectiva do dialogismo bakhtiniano podem ser retomadas como um tópico primeiro para uma teoria da cultura. Permitindo uma redefinição do lugar que a criança ocupa na constituição dos valores que transitam em nosso contexto social, as idéias desse autor nos orientam na direção das seguintes indagações: Como a criança apreende o discurso do outro? Como ela experimenta as palavras do outro na sua consciência? Como o discurso é ativamente absorvido pela consciência e qual a influência que ele tem sobre a orientação das palavras que a criança pronunciará em seguida? Que concepção de mundo se explicita na sua linguagem? Como a sua palavra revela a ideologia do cotidiano? Como essas manifestações da ideologia do cotidiano questionam ou alimentam os sistemas ideológicos constituídos? Enfim, como se articula a consciência da criança com a lógica da comunicação ideológica? (JOBIM E SOUSA, 1994, p.115-116).