Há o sistema de Copérnico, há sistemas filosóficos e sistemas políticos. Mas, quando o nacional-socialista diz "o System'', ele se refere especificamente ao sistema da Constituição de Wei mar. O termo, com esse uso particular na LTI, logo se tornou conhecido - na verdade, o uso ampliou-se para designar todo o período de 1 9 1 8 a 1 933. A palavra tornou-se rapida mente muito mais popular do que a designação de uma épo ca, como o Renascimento. Já no verão de 1 935 um carpinteiro que arrumava o portão do jardim me disse: ''Ah, estou suan do em bicas! Bom mesmo era o tempo do System, em que se usavam os Schillerkragen [colarinhos "estilo Schiller"] , desa botoados, que deixavam o pescoço livre. Hoje isso nem existe
mais, tudo já vem apertado e às vezes até engomado." O ho mem não desconfiava que sua frase era um lamento pela li berdade tolhida; ao mesmo tempo, usando uma alegoria, de monstrava desprezo pelo momento presente. Não é necessário enfatizar que Schillerkragen simbolizava perfeitamente a liber dade. Difícil de entender é que o termo "sistema" contenha uma censura metafórica.
Para os nazistas, o sistema de governo da República de Weimar era pura e simplesmente o System, contra o qual eles estavam em conflito permanente. Consideravam-no a pior forma de governo, alimentando contra ele uma oposição fe roz, em contraposição à afinidade que sentiam, por exemplo, em relação à monarquia. Criticavam o efeito paralisante que a pulverização de um sem-número de partidos teria produzi do durante a República de Weimar. Depois da primeira farsa democrática - uma sessão do Reichstag sob o chicote de Hi tler, na qual não se discutiu nada e todas as medidas do go-
LT I - A L I N G UAG E M DO T E RC E I RO R E I C H
vemo foram aprovadas por unanimidade -, os jornais do partido, em tom triunfalista, publicaram que em meia hora de sessão os novos parlamentares tinham produzido mais do que o parlamentarismo do System em meio ano.
Do ponto de vista linguístico-conceitual, por trás da rejei ção ao termo System se esconde muito mais do que exclusiva mente a significação de "parlamentarismo de Weimar'� Um
System é algo "elaborado", construído, executado pelas mãos e as ferramentas das pessoas, conforme os ditames da razão. Justamente nesse sentido concreto e "construtivo", até hoje falamos de um sistema ferroviário ou de um sistema de ca nais, por exemplo. Com maior frequência, entretanto, o ter mo é empregado quase unicamente em sentido abstrato (pois em outros casos usamos mais "malha" ou "rede" ferroviária). O sistema kantiano é uma rede de conceitos entrelaçados de maneira lógica, visando a captar a complexidade do mundo. Para Kant, para o filósofo, por assim dizer, qualificado, filoso far significa pensar de maneira sistemática. Mas é isso que o nacional-socialista rejeita profundamente, pois, por instinto de preservação, ele precisa execrar o pensamento sistemático. Quem pensa não quer ser persuadido, mas sim convenci do; é bem mais difícil convencer quem está habituado a pen sar sistematicamente. Por isso a LTI detesta a palavra filosofia, mais ainda do que a palavra sistema. A LTI dá uma conotação nociva ao termo "sistema", mas o emprega com frequência; não pronuncia jamais a palavra filosofia, sempre substituída por Weltanschauung132 [visão de mundo] .
Anschauen [ "ver" por intuição] não faz parte do pensar, pois o pensador faz exatamente o contrário: abstrai, consegue afastar seus sentidos e o objeto. Anschauen nunca se refere
132 A LTI distorce o sentido do conceito. O termo foi criado por Wilhelm Dilthey no século XIX em sua Teoria das concepções do mundo (ver ca pítulo 22 deste livro).
CAPIT U LO 1 7 1 S I ST E M A E O R G A N I ZAÇÃO
somente a órgãos dos sentidos. O olho está limitado a ver. Mas ao verbo alemão Anschauen reservou-se, não sei dizer se uma "ação" ou um "estado" mais precioso, mais solene, no qual se consegue pressentir algo de maneira vaga. Não sei pre cisar se denota um "ver" que mobiliza a essência do observa dor ou se denota um "ver" que enxerga mais do que somente o lado externo do objeto, conseguindo captar os mistérios da essência do outro, sua alma. Weltanschauung, termo bastante difundido antes mesmo do nazismo, perdeu o encanto domi nical quando a LTI passou a empregá-lo em detrimento de filosofia, caindo na trivialidade dos afazeres cotidianos. Schau
[ponto de vista, visão] , vocábulo sagrado no circulo de Stefan George, 133 também é uma palavra culta na LTI -se eu escre vesse este caderno de anotações em forma de léxico, no estilo da minha querida Enciclopédia, 134 seguramente indicaria aqui o verbete Barnum135 -, enquanto System encabeça a lista das palavras abomináveis, junto com Intelligenz e Objektivitiit.
Se System é um termo proibido, então como se chama o sistema de governo dos próprios nazistas? Pois os nazistas, é claro, possuem um sistema de governo e sentem orgulho de que ele esteja na origem de cada manifestação e de cada situa ção de vida, razão pela qual Totalitiit é um dos pilares da LTI.
Eles não possuem um "sistema", e sim uma organização. Não sistematizam com a razão, mas ficam na espreita, tentan do captar os segredos do organisch [orgânico] .
Tenho de começar com o adjetivo organisch, único dessa
Sippe [família, clã] de palavras que conseguiu preservar sua beleza e glória do primeiro dia, diferentemente dos substan-
133 Poeta lírico alemão { 1 866- 1 933) que teve um grupo de seguidores muito conhecido, o Círculo de George.
134 Obra de Klemperer sobre a literatura francesa, que abarca o período que vai do século XIII até 1 920.
135 Primeiro desfile de carros alegóricos em Nova York, cujo nome vem do pioneiro do circo, Phineas Taylor Barnum ( 1 8 10- 1 89 1 ) .
LTI - A L I N G UAG E M DO T E R C E I R O R E I C H
tivos Organ [órgão] e Organisation [organização] e do verbo
organisieren [organizar] . (Mas quando foi esse primeiro dia? Sem dúvida, foi na aurora do romantismo. Mas cuidado: em pregamos "sem dúvida" exatamente quando temos dúvidas; essa questão terá de ser tratada em uma reflexão à parte.)
Durante a incursão da Gestapo em minha casa na Caspar David-Friedrich-Strasse, quando Clemens136 bateu em mi nha cabeça com O mito do século XX, de Rosenberg, e rasgou minhas notas sobre esse livro (felizmente, sem que as enten desse) , eu já havia comentado no diário a teoria délfica de Rosenberg sobre a "verdade orgânica". Já naquela época, antes da invasão da Rússia, eu escrevera: "Toda essa fraseologia teria sido ridícula se não tivesse trazido consequências tão funestas e assassinas!"
Segundo Rosenberg, os filósofos profissionais costumam cometer um duplo erro. Em primeiro lugar põem-se "à pro cura da verdade pretensamente única e eterna". Em segundo lugar sua busca se faz "pela via do raciocínio puramente lógi co, extraindo deduções a partir de axiomas propostos pela ra zão". Se, em vez disso, tomarmos o sentido místico que Alfred Rosenberg quer dar à sua visão de mundo não filosófica, en tão "todo esse monte de lixo intelectualizado e anêmico, de nominado System, haverá de desaparecer" de uma só vez. Es sas citações contêm o principal motivo da aversão da LTI à palavra e ao conceito System.
Logo a seguir, nas últimas páginas de O mito, a palavra
Organisch é entronizada definitivamente; em grego, ela signi fica expandir, germinar como uma planta que cresce incons cientemente. Wuchschaft [brotar, evoluir] é a forma alemã pa ra organisch. Em vez daquela verdade generalista, que serviria para uma sociedade imaginária, surge a organische Wahrheit
[verdade orgânica] que emana de forma autêntica do sangue
CAPIT U LO 1 7 I S I ST E M A E O R G A N I ZAÇÃO
de uma raça e serve somente para essa raça. Essa verdade or gânica não faz parte nem do saber nem do intelecto, não apa rece elaborada em um pensamento consciente, mas está "no centro misterioso da alma do povo e da raça': corre no sangue nórdico desde os tempos imemoriais: "O saber derradeiro de uma raça já está contido em seu primeiro mito religioso."
Nem que eu tivesse juntado todas as citações, elas não es clareceriam mais nada, pois a intenção do próprio Rosenberg não era torná-las mais esclarecedoras. Pensar exige clareza de ideias, enquanto magia se pratica sob o domínio do obscuran tismo. Cingido pela glória dessa magia e envolto pelo odor anestesiante do sangue, esse discurso enigmático sobre o or gânico perde seu conteúdo linguístico, por assim dizer, ao se fazer a transposição do adjetivo para o substantivo e para o verbo. Bem antes da existência do NSDAP 137 já havia os ter mos políticos Parteiorgane [órgãos do partido] e Organisatio nen [organizações] . Apareceram na década de 1 890, quando ouvi falar de política pela primeira vez. Era comum dizer-se em Berlim, quando um trabalhador era membro do Partido Social-democrata, que ele era um Organisierter [pessoa orga nizada] ou organisiert [organizado] .
Porém, um Parteiorgan não é criado por forças místicas que correm pela corrente sanguínea, mas a partir de ações cal culadas. E uma Organisation não é gerada como um fruto, e sim construída com empenho. Os nazistas diziam aufgezo gen 138 [atiçado] . Eu mesmo cheguei a me deparar com autores (antes da Primeira Guerra Mundial; em meus diários constava entre parênteses "verificar onde e quando!': mas essa questão de verificar, mesmo agora, um ano após a rendição, 139 ainda apresenta dificuldades) que viam na própria Organisation os
137 Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei [ Partido Nacional-so cialista dos Trabalhadores Alemães] , o Partido Nazista.
1 38 Para uma tradução mais completa do termo, ver o capítulo 7. 139 Klemperer refere-se ao fim da guerra.
LTI - A L I N G UAG E M DO T E R C E I R O R E I C H
meios para suprimir o que era Organisch [orgânico] , de modo a entseelen [ desespiritualizar] para que a Organisation pudesse tornar-se algo mecânico. Entre os próprios nacional-socialis tas, no romance de Dwinger140 sobre o Kapp-Putsch, Auf hal bem Wege [A meio caminho] , de 1 939, encontrei a coesão "la mentável" da organização, considerada artificial, em contraste com a coesão "autêntica" que se desenvolve na natureza. É que Dwinger só aos poucos foi descambando para o nazismo.
De qualquer forma, Organisation permaneceu um termo honrado e respeitado na LTI, conseguindo até mesmo passar por um refinamento que nunca tinha experimentado antes de 1 933, apesar de usos especializados, esporádicos e isolados.
A vontade totalitária criou um enorme número de organi zações, descendo na escala até o nível dos Pimpfe [meninos] , não, o nível dos gatos: eu não tinha mais o direito de pagar à Sociedade Protetora dos Animais minha contribuição para os gatos, pois a Deutsches Katzenwesen [Entidade dos Gatos Ale mães] - era assim que constava no boletim informativo - tornara-se um órgão do partido e não havia mais lugar para
artvergessene Kreaturen [ criaturas racialmente perdidas] , que viviam com judeus. Depois, tiraram e mataram nossos ani mais domésticos - gatos, cachorros e até mesmo canários. Não foi um caso isolado, uma infâmia, mas uma intervenção oficial e sistemática. Essa é uma das crueldades não relatadas em nenhum dos processos de Nuremberg. Para puni-la, se eu tivesse esse poder, construiria a forca mais alta possível, nem que isso me custasse a salvação eterna.
Essa temática não me afastou muito da LTI, apesar das apa rências, pois justamente a Entidade dos Gatos Alemães per-
140 Escritor alemão ( 1898- 198 1 ) cujas obras glorificavam a guerra e o an ticomunismo. O romance citado faz alusão à primeira tentativa da ex trema direita alemã de derrubar a jovem República de Weimar em 1 920, denominada "Putsch de Kapp': A segunda, também frustrada, foi liderada por Hitler em 1 923.
CAPIT U LO 1 7 1 S I ST E M A E O R GA N I ZAÇÃO
mitiu popularizar e ridicularizar essa nova criação linguística. Dada a sua mania de tudo organizar e de tudo centralizar, os nazistas criaram "organizações unificadas" a partir de organi zações específicas. Por ocasião do primeiro carnaval do Ter ceiro Reich, o número especial do jornal Münchner Neuesten Nachrichten, de Munique, que acreditava que ainda se podia permitir alguma esperteza - em seguida ele se tornou sub misso, para dois ou três anos depois calar-se compulsoria mente -, trouxe uma notícia sobre a Dachorganisation des Deutschen Katzenwesens [Organização Central das Entidades dos Gatos Alemães] .
Essa pilhéria foi um caso isolado, sem difusão. A alma do povo, porém, desenvolveu uma crítica não irônica, totalmen te inconsciente, à mania nazista de organizar tudo. Para ex pressar de forma menos romântica: a crítica emergiu de uma só vez, de vários pontos, de maneira natural. Sua causa é a mesma que consta no início do meu "caderno de anotações":
Sprache, die für uns dichtet und denkt [língua que pensa e poe tiza por nós] . Observei essa crítica inconsciente em duas fases de seu desenvolvimento.
Em 1936, trabalhando sozinho, um jovem mecânico con seguiu dar conta de um conserto complicado e urgente em meu carburador e disse: Habe ich das nicht fein organisiert?
[Organizei isso bem, não é?] . As palavras "organização" e "or ganizar" estavam de tal forma enfronhadas em seu ouvido, ele se encontrava de tal forma impregnado da ideia de que qual quer trabalho tinha de ser organizado, ou seja, distribuído por um chefe para um grupo, que não lhe ocorriam expressões comuns como "trabalhar'� "resolver", "executar" ou simples mente "fazer':
Pude observar pela primeira vez a segunda fase, decisiva, do desenvolvimento dessa crítica nos dias de Stalingrado e depois. Perguntei se ainda era possível adquirir sabonete de qualidade, ao que me responderam: "Não é possível comprar,
LTI - A L I N G UAG E M DO T E R C E I R O R E I C H
será necessário organizá-lo:' A palavra gerava suspeita, chei rava a negócios ilícitos, a mercado negro. Exalava odor igual ao das organizações nazistas oficiais. Entretanto, as pessoas que falavam daquilo que "organizavam" não tinham nenhu ma intenção de realizar negociações ilícitas. Organisieren era um termo benigno, que se encontrava em voga por toda par te, era a definição óbvia de uma ação óbvia ...
Mas quem, ainda ontem, disse Ich muss mir ein bisschen Tabak organisieren [preciso organizar um pouco de tabaco para mim] ? Desconfio que tenha sido eu mesmo.
CAPITU LO 18