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Sistema público de saúde: opção econômica e moral

7.1.1 Sistemas de saúde: público ou privado?

A resposta para essa pergunta depende do conjunto de valores de uma determinada sociedade. Dessa maneira, a decisão passa a ser de caráter moral. A constatação de que a saúde não deve ser comercializada deve partir do conjunto de sentimentos que ao longo do tempo formam uma teia de princípios, levando à constituição de sistemas de proteção social.

Os sistemas públicos de saúde partem do princípio da divisão igualitária dos custos e benefícios por toda a sociedade, em que o valor social determinante é a solidariedade. Um nível de saúde mínimo é necessário para se fazer escolhas de vida razoáveis, inclusive para a obtenção de outros bens importantes. Assim, a saúde faria parte das oportunidades devidas a cada cidadão, da mesma forma que as liberdades fundamentais. Logo, os governos seriam responsáveis legítimos pela garantia de uma quantidade mínima de qualidade de vida para todos (SCHRAMM, 2003). Essa proposta está baseada na concepção de John Rawls da “Justiça como Equidade”, segundo a qual, respeitados os direitos fundamentais de cada pessoa, um sistema sanitário justo é aquele que privilegia, quando necessário, os menos favorecidos, como maneira de reequilibrar as injustiças existentes (RAWLS, 1997).

A questão da saúde no Brasil perpassa o campo de discussão da dicotomia neoliberal/social, assumindo uma dimensão moral: o Brasil entende a saúde como um direito fundamental de todo ser humano? Sendo a saúde um direito fundamental, é correto permitir iniquidades de acesso? É justo oferecer sistemas residuais à população de mais baixa renda, quando

esses são os responsáveis diretos pelo aumento do mercado interno e, consequentemente, do crescimento econômico brasileiro? É possível associar a universalização de direitos fundamentais básicos (saúde) à sustentabilidade financeira?

O SUS oferece à nação os melhores conceitos de um sistema nacional de saúde, englobando os sentidos de proteção, justiça como equidade com a garantia de cidadania.

7.1.2 Sistema público de saúde: uma questão moral

A saúde pública, do ponto de vista bioético, pode ser entendida como um conjunto de disciplinas e práticas que tem por objetivo a proteção da saúde das populações humanas em seus contextos natural, social e cultural (SCHRAMM, 2003). Essa disciplina liga-se, estruturalmente, ao conceito de proteção, na dimensão do cuidado do mais fraco.

A proteção pode ser vista como o resgate do sentido da oferta voluntária de cuidados aos outros, no intuito de prevenir o adoecimento e de promover o seu bem-estar. A proteção na saúde pública se divide em dois campos de abrangência: (1) na proteção contra o adoecimento e gestão dos riscos à saúde e (2) na promoção de estilos de vida considerados saudáveis. A saúde pública enxerga a saúde como um bem bastante diferente das mercadorias produzidas, razão pela qual se deveria reservar a mesma um tratamento específico, inclusive em termos de proteção, encarada como um bem comum. A partir de então, integra-se a responsabilidade e a eficácia programática à saúde pública, podendo ser considerada uma genuína ferramenta de ética aplicada (SCHRAMM, 2003).

Benatar et al. (2011) ao analisarem a crise econômica de 2008 e as suas consequências à saúde global, fazem uma chamada para a mudança do paradigma neoliberal no enfrentamento das injustiças sociais. A disposição

do mercado financeiro em proteger seus ativos e socializar perdas com o Estado, agindo com estrito rigor com os mais fracos, fundamenta a falência neoliberal no desenvolvimento humano e na garantia dos direitos fundamentais. Nessa agenda ficou evidente o empobrecimento dos sistemas de proteção social, contribuindo para a ampliação de iniquidades socioeconômicas nos países em desenvolvimento, em especial os mais pobres (BENATAR et al., 2011). As políticas públicas conduzidas pelo mercado financeiro, por meio das agências financeiras internacionais, levaram a profundas injustiças, como no acesso à comida e no aumento dos preços dos alimentos nas últimas décadas, que associados ao desemprego e crescimento desacelerado levaram à fome mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo.

Partindo da constatação da falência do neoliberalismo na promoção de justiça social, a saúde deveria ter uma aproximação ética, entendida aqui na dimensão das relações entre as pessoas a partir dos códigos de conduta que a sociedade estabelece. O discurso ético deveria ser estendido das relações individuais para as instituições (no caso os Estados) na forma de enfrentar os problemas sociais. Um novo paradigma tendo o direito fundamental à vida como valor moral, e os Estados adotando estes valores como princípio ético nas suas relações dentro da sociedade e com as outras nações, passaria a fundamentar as políticas para a saúde das pessoas em escala global (BENATAR et al., 2011). Basta olhar o oposto para se constatar o caráter corrosivo do neoliberalismo, principalmente na saúde, ao se verificar os resultados na geração de iniquidades pelo sistema dos Estados Unidos. Aproximadamente 49,1 milhões de estadunidenses não possuem nenhuma cobertura de saúde, os chamados The Uninsured (os sem seguro), sendo que a maioria são trabalhadores de classe média baixa (3/4 dos não assegurados) afetados pelo aumento do desemprego desde a crise financeira mundial que começou em 2008 (THE HENRY J. KAISER

FAMILY FOUNDATION, 2011). Uma recente avaliação do sistema privado de saúde estadounidense constatou que houve a deterioração, de 2006 a 2011, dos indicadores de acessibilidade aos seguros privados de saúde, como também da cobertura dos serviços de saúde entre adultos (THE COMMONWEALTH FUND, 2011).

Fleury (2011a) afirmou que a associação entre o crescimento econômico e a inclusão social em uma sociedade solidária e coesa, na qual os indivíduos se vinculam por meio de uma teia de direitos cidadãos, é um ideal a ser perseguido pelas democracias na América Latina. A tônica dessa associação estaria no pacto fiscal que viabilizasse a inclusão por meio de uma ampliação progressiva de benefícios sustentáveis pelos recursos disponíveis. A subordinação da universalização a esquemas de garantias mínimas em modelos de proteção, que se referem a seguros individuais, permite a compatibilização do financiamento público com o asseguramento e provisão privados, mas não asseguraria a igualdade e a integralidade pressupostas na garantia estatal do direito universal à saúde (FLEURY, 2011b).

7.1.3 Sistema público de saúde: uma questão econômica

A quebra do paradigma neoliberal que os serviços privados são mais eficientes que os públicos vem dos Estados Unidos. A organização The

Commonwealth Fund (Fundo Comum de Riqueza) estimou que o sistema

de saúde estadunidense poderia economizar até US$114 bilhões anuais reduzindo custos administrativos se seguisse o exemplo de países que adotam sistemas nacionais de saúde, como a Grã-Bretanha (THE COMMONWEALTH FUND, 2011). Já a organização não governamental

Project on Government Oversight (Projeto Observatório de Governo)

divulgou o resultado de uma pesquisa constatando que em 33 de 35 ocupações terceirizadas pelo governo federal estadunidense, na realização

das atividades estatais, foram até duas vezes mais baratas quando realizadas por servidores públicos ao invés dos contratos de terceirização (PROJECT ON GOVERNMENT OVERSIGHT, 2011). Como exemplo, os serviços terceirizados de engenharia de informática custaram para esse governo cerca de US$268 milhões ao ano, enquanto que se a mesma atividade tivesse sido feita diretamente pela administração pública teria custado US$136 milhões (PROJECT ON GOVERNMENT OVERSIGHT, 2011). Ao mesmo tempo em que os Estados Unidos disseminam a saúde como um bem de consumo, eles dão exemplo de eficiência na gestão em saúde com um sistema muito parecido com o dos vizinhos cubanos: o US Department

of Veteran Affairs (VA). Trata-se do modelo destinado aos veteranos de

guerra que é 100% público, agregando financiamento e prestação de serviços na mesma estrutura, diferenciando-se do Medicare (aos aposentados) e do Medicaid (destinados àqueles abaixo da linha de pobreza), que financiam procedimentos contratados na rede privada. O sistema destinado aos veteranos custa menos e tem melhor desempenho quando comparado aos outros modelos de saúde (seguros saúde, Medicare e Medicaid) (GREENWALD, 2010; REID, 2009). As análises sobre a presença de sistemas públicos, nos Estados Unidos, mostram que a escolha pela cobertura pública em detrimento a dos seguros privados é determinada pelo nível de renda dos indivíduos, pela possibilidade de não realizar copagamentos quando de sua utilização e, sobretudo, pela ampliação da cesta de serviços cobertos (SANTOS, 2011).

Numa outra vertente, a Coreia do Sul experenciou, após a crise financeira de 1997, um socorro econômico junto ao FMI, maximizando políticas neoliberais em toda a economia com cortes sensíveis nos gastos sociais (OH et al., 2011). Iniciou-se um ciclo de privatizações das estruturas públicas envolvendo, dentre outras instituições, os poucos hospitais públicos existentes no país asiático. Com argumentos de que tais

instituições eram mal administradas por funcionários públicos preguiçosos. Iniciou-se a privatização de 9 dos 34 hospitais públicos existentes até a crise de 1997. Contudo, o modelo de gestão hospitalar privatizado, na Coreia do Sul, piorou as condições de trabalho dos profissionais de saúde com imediato aumento de taxas de serviços junto à comunidade, ampliando a sobrecarga financeira para os mais pobres. A mudança do direcionamento para a realização de lucros pelos hospitais públicos de gestão privada somou consequências negativas, tanto para os trabalhadores quanto para os pacientes, que na visão dos profissionais da saúde passaram a receber uma assistência de alto custo e de pior qualidade (OH et al., 2011). Com o estudo de Oh et al. (2011) o governo sul-coreano desistiu de terceirizar outros hospitais públicos, que mantiveram seus custos e desempenho acima daqueles em que a administração foi terceirizada, ou melhor, onde houve a privatização.

Para Armstrong e Armstrong (2008) os sistemas públicos de saúde têm melhor desempenho porque não possuem compromisso com dividendos, estabelecem melhores condições de trabalho e salários aos profissionais de saúde, racionalizam melhor a demanda por assistência e são mais baratos por integrarem financiamento com a prestação de serviços. As evidências favoráveis aos sistemas públicos são claras: eles têm melhor desempenho em relação aos modelos privados quanto ao acesso, promoção da saúde, indicadores de morbidade e mortalidade, percepção pela população e menores custos (ARMSTRONG; ARMSTRONG, 2008; BENATAR et al., 2011; LEYS; PLAYER, 2011; SCHOEN et al., 2004). A verdade é que a coletivização dos custos da saúde por meio dos sistemas públicos os tornam mais eficientes do que os sistemas baseados no mercado. O princípio econômico Keynesiano da “socialização geral dos riscos” a partir da análise da grande depressão dos anos 30, fundamenta a afirmação da superioridade econômica dos sistemas

públicos. Esses só se inviabilizam economicamente quando passam a depender do sistema privado, e aí sim, tornam-se insolventes e não cumprem o compromisso com os cidadãos. Se os sistemas públicos fossem insolventes, por que os militares em vários países (i.e. Estados Unidos, Chile e Brasil) não permitiram a sua privatização? A classe de trabalhadores responsável pela segurança de uma nação precisa ter suas vidas protegidas da melhor e mais eficiente forma, ou seja, pelos sistemas públicos de saúde.

7.1.4 Considerações finais

A associação de parâmetros morais e econômicos evidencia que a aproximação pública no setor saúde é mais justa e eficiente. O condicionante moral determina as escolhas de certas sociedades em alocar recursos (físicos, humanos e financeiros) para a proteção de todos, equitativamente. Ao mesmo tempo, o princípio geral da socialização dos riscos sustenta a eficiência pública da gestão dos sistemas de saúde. A associação da variável moral e econômica coloca em insolvência os sistemas privados de saúde pela individualização do cuidado e do financiamento, com o peso de altas taxas administrativas para a geração de dividendos aos mercados, ao mesmo tempo gerando iniquidades de acesso à saúde.