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4 ESTUDO 1 – A CIRCULAÇÃO DE CONFLITOS BIOÉTICOS NA FOLHA

5.4 ABORTO(S): EFEITOS DE UMA REPRESENTAÇÃO SOCIAL POLÊMICA

5.4.2 Organização estrutural das representações sociais sobre aborto: a saliência

5.4.2.1 Sistema Periférico

O segundo quadrante agrupa os principais elementos do sistema periférico, chamado na abordagem estrutural das representações sociais de primeira periferia. Tal organização pressupõe maior flexibilidade e variação contextual nos elementos que compõem esse agrupamento (FLAMENT, 2001). As expressões presentes na primeira periferia são injustiça,

crime, feminismo, dor, machismo, gravidez, polêmica, violência, ilegal, preconceito, religião.

De forma similar à organização dos elementos centrais, essas expressões parecem reforçar e apoiar as variações de posicionamentos identificadas no primeiro quadrante. Os termos crime, violência e ilegal parecem ratificar o conjunto de elementos condenatórios à prática do aborto apresentados acima. Já os elementos dor, polêmica e preconceito acionam conteúdos contextuais sobre o fenômeno, envolvendo conflitos nas relações intergrupais, sentimentos e controvérsias sociais na construção representacional do aborto.

Os termos feminismo (16) e machismo (7) ativam o olhar para as discussões sobre as desigualdades de gênero, ressaltando os conflitos ideológicos e de valor presentes nas tomadas de posição sobre o aborto. Mais do que o reconhecimento e a adesão ao machismo ou feminismo, nessa polarização, identifica-se um jogo de culpabilização do outro pelo fenômeno do aborto. Por exemplo, ao se ativar a expressão machismo, não houve uma intenção de autoidentificação com tal postura, mas uma referência condenatória ao machismo como causador das repercussões sociais, políticas e de saúde pelo aborto. Para a expressão

Feminismo, as justificativas acusatórias se embasavam na excessiva liberdade alcançada pelas

mulheres, fruto das lutas feministas. O feminismo também assume um lugar de causadora do fenômeno.

O termo Religião obteve frequência de 15 evocações, mas emergiu na primeira periferia em função do seu baixo índice de atribuição de importância pelos participantes. O termo religião, como elemento representacional, destaca a forte participação da ideologia cristã nos debates bioéticos e na produção de informações e posicionamentos sobre o aborto.

O terceiro quadrante representa a chamada zona de contraste. São elementos que tiveram pouca frequência, mas a que foram atribuídos forte grau de importância. A abordagem estrutural propõe que o forte grau de importância atribuído pelos sujeitos a esses elementos, associado à baixa adesão do grupo como um todo, pode estar apontando para um

conjunto de elementos específicos de algum subgrupo ou para um movimento minoritário de resistência à representação social investigada.

Na zona de contraste, estão elementos com caráter mais favorável à descriminalização e à liberdade de escolha da mulher. Os elementos presentes na zona de contraste são

descriminalização, medo, necessidade, liberdade de escolha, perda, responsabilidade, insegurança, pobreza e discussão. Além de atitudes positivas em relação ao aborto, podem

ser identificados também conteúdos que destacam as questões sociais que promovem maior vulnerabilidade às mulheres, como a pobreza e a insegurança.

A forte presença de elementos favoráveis à IVG contrasta com um conjunto de elementos condenatórios presentes na zona central. A teoria das representações sociais considera tais contradições, dissensos e conflitos entre valores como parte da flexibilidade que uma representação social é capaz de compor. As lutas por espaço, visibilidade de grupos minoritários, assim como as mudanças sociais implicam transformações no pensamento social, de modo que as representações também sofrem questionamentos e reorganizações em seus sistemas de conhecimentos. Por outro lado, o conteúdo de resistência, que provoca questionamento dos elementos mais frequentes, como aqueles ancorados na morte do embrião, já se mostram presentes na própria zona central.

Ao identificar atitudes conflitantes na organização interna do suposto núcleo central, faz questionar a hegemonia da representação social de aborto, aqui investigada. Surge, assim, a hipótese de uma representação social polêmica. Segundo Moscovici (1961), as atitudes são dimensões das representações sociais que podem surgir antes mesmo da sistematização e organização de informações sobre o objeto. O autor ainda destaca que, a produção desses julgamentos, são realizados em função da relação do grupo com o objeto, ou seja, a relevância, a proximidade ou distanciamento do grupo para com o objeto, ou a função do objeto na constituição da identidade grupal influenciam as atitudes dos grupos sobre o objeto.

Os elementos do quarto quadrante, ou 2ª periferia, tendem a apresentar conteúdos vinculados mais diretamente às práticas sociais, ou a posicionamentos individuais sobre o fenômeno. Destacam-se aqui os termos legalidade, ilegalidade, egoísmo, maldade,

irresponsabilidade, desespero, estupro. A discussão legalidade versus ilegalidade traz à tona

o dilema cotidiano sobre as condições de IVG que são consideradas legais ou pelo menos descriminalizadas no país, como as situações decorrentes de estupro, por exemplo. Nesse conjunto, encontram-se também elementos que ressaltam uma avaliação moral sobre as mulheres que interrompem uma gestação, pois essas mulheres são consideradas: egoístas, malvadas, irresponsáveis e desesperadas.

A IVG parece carregar uma crença subjacente de que sua realização exige uma condição de falta de alternativas, de desespero, de modo que apenas em situações muito bem justificadas é permitida uma “autorização social”, uma legitimidade. O peso da criminalização, ilegalidade sobre a prática do aborto, ultrapassa uma questão puramente legal, atinge o campo da avaliação social, a moralidade da sociedade é quem assume o status de juíza sobre essa prática.

Segundo Dworkin (2009), acredita-se que os conflitos sobre o aborto envolvem tanto questionamentos sobre os direitos do feto, quanto questionamentos sobre a condição moralmente condenável da prática de IVG por atentar contra uma vida humana em potencial. Entretanto, o autor sublinha que, para os mais variados grupos, a discussão sobre o valor intrínseco à vida humana embasa todo leque de debates a esse respeito, pois se trata de um debate no campo da moral, “uma objeção independente ao aborto e talvez uma justificação independente para bani-lo ou regulamentá-lo” (p.32).

Ao identificar polarizações de sentidos na estrutura central da representação social do aborto, optou-se por ampliar a investigação estrutural sobre esse fenômeno, atentando também para as relações de ligação existentes entre os elementos mais frequentes (acima de 10 evocações). A seguir, será apresentada a análise de similitude (figura 5) realizada com esses elementos, com a finalidade de complementar a análise prototípica, uma vez que, em se tratando de uma representação social polêmica, não foi possível identificar o consenso esperado na hipótese do núcleo central das representações sociais aqui investigadas.

5.4.3 Análise de similitude: investigação da estrutura representacional através das ligações entre os elementos sobre o aborto.

A grande variedade de termos (242 expressões diferentes) para definir o aborto pode apontar para uma ampla dispersão de vocabulário utilizado para circunscrever o fenômeno do aborto. Ao mesmo tempo, identificaram-se 18 expressões evocadas mais de 10 vezes que, somadas, expressam 48% das evocações. Esse total demonstra a saliência e o forte compartilhamento de expressões-chave para se representar o fenômeno do aborto. A análise de similitude apresentada na figura 5 foi realizada com as 18 expressões mais frequentes.

Figura 8 - Análise de Similitude – gráfico de relações significativas- termo indutor: Aborto

Fonte: MORAIS, 2018.

Entre as expressões evocadas mais de 10 vezes, podem ser verificadas: morte, vida,

direito, mulher, liberdade, escolha, legalização, assassinato, saúde-pública, feto, saúde e sofrimento, compondo o suposto núcleo central. Em função do critério de ordem de

importância, atribuído pelos participantes, as expressões: polêmica, crime, feminismo,

religião, dor e violência, apesar da sua saliência, não compõem o possível núcleo definidor e

organizador das representações sociais sobre aborto.

A estrutura representacional dos elementos mais destacados nas representações sociais de aborto não se organizou em torno de apenas um elemento. Fator que ratifica a hipótese de um locus de coerência externo à representação social de aborto, acentuando o caráter polêmico e não autônomo dessa representação. Observa-se que os elementos se distribuíram através da ligação entre os termos morte, vida e mulher.

A linha morte – vida – mulher expressa a estrutura de base que organiza todos os elementos dessa representação. A ligação entre o termo vida e mulher (15) se apresentou mais forte que a ligação entre morte e vida (13). A distribuição dos elementos na árvore de similitude indica a existência de dois conjuntos organizadores dessas representações sociais. Apesar da forte expressividade do elemento morte como o elemento mais frequente, um conjunto de elementos também expressivos não esteve associado a ele. O elemento vida assumiu uma posição de ligação entre os dois conjuntos organizadores. O elemento mulher centralizou o outro conjunto de elementos.

As relações de similitude, apresentadas no gráfico de relações significativas (figura 5), demonstram o termo morte como fortemente definidor e organizador de parte dos conteúdos centrais do fenômeno aborto. Estão ligados a esse elemento os termos saúde, crime,

assassinato, liberdade, feto, dor, religião e sofrimento. Esse conjunto de elementos

representacionais apresenta sentidos ancorados em crenças e posicionamentos ideológicos fortemente contrários ao aborto. Percebe-se nesse núcleo estruturante uma atitude nitidamente negativa frente à IVG.

Segundo Doise (2001), a ancoragem psicológica está relacionada aos sistemas de crenças e ideologias a que os sujeitos se vinculam e fortemente ligada às atitudes a que eles aderem. Nesse sentido, pode-se refletir que um dos polos de ancoragem psicológica associado à representação social de aborto está estruturado em torno do elemento morte e da associação às crenças na sacralidade da vida.

Vale destacar, também, que o termo feminismo esteve ligado à liberdade. Tal organização ratifica a análise explicitada no tópico anterior sobre esses elementos, ancorada em uma atitude negativa frente ao aborto. Acentua-se um tom condenatório que o feminismo e a liberdade, que ele reivindica para as mulheres, recebem como causa da morte de fetos.

O termo mulher parece também exercer uma função de elemento definidor e organizador das representações sociais de aborto. Entretanto, ele participa da organização de um outro conjunto de elementos, ligados às expressões: legalização e direito. Os elementos representacionais ligados diretamente ao termo mulher relacionam-se, respectivamente, aos elementos representacionais saúde pública; escolha e polêmica. O conjunto de conteúdos ativados através da associação ao termo mulher aponta para uma atitude oposta àquela que ancora o elemento morte, de modo que a árvore de similitude ratificou um conflito de atitudes na organização central dos elementos mais expressivos sobre o objeto aborto.

Levanta-se o questionamento sobre a existência de um núcleo central que exerça a função de locus de referência dessa representação social, uma vez que a estrutura do núcleo central exige uma coerência interna entre os seus elementos organizadores. Será que cabe falar em um núcleo central da representação social de aborto, ou se está frente a uma representação social polêmica que sua própria estrutura se baseia em conflitos atitudinais e são “determinadas por relações antagonistas”? (Sá, 1996, p.40).

Em função do conflito de posicionamentos identificado na estrutura do provável núcleo central, a análise estrutural sobre a representação social do aborto não será aprofundada em termos de consensos. Os conteúdos aqui tratados serão melhor explorados no próximo tópico sobre variação nos posicionamentos e ancoragens, associando à análise contribuições da abordagem societal.

5.4.4 Tomadas de posição e ancoragens das representações sociais sobre aborto: os