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A primeira personagem caracterizada na rubrica é evidenciada por seu aspecto aguerrido e religioso, por seu figurino, por sua constituição física e psíquica:

Vera, entre 25 e 35 anos. Forte, rude, decidida. Imagino-a com roupas de guerrilheira, cartucheiras tramadas no peito, um fuzil, cantil, talvez chapéu estilo caubói. Mas também a imagino toda de couro negro, cabelos muito curtos, eriçados, descoloridos. De qualquer forma, seu visual deve dar a ideia exata do que ela fundamentalmente é: uma guerreira. Iansã de frente. (idem, p. 181).

É importante observar, na descrição de Vera, que seus traços são relacionados em muito à figura daqueles que participam de alguma luta armada por causa ideológica, frequentemente contra algum regime autoritário, e seu figurino sugere certa sensualidade por causa de sua roupa que, segundo a rubrica, pode ser de couro negro,

estilo dominatrix. Assim, a descrição também esbarra em certo tom de paródia, se for lembrada a caracterização de muitos personagens de filmes oitentistas que tematizam um mundo pós-apocalíptico38.

Há ainda que se notar um aspecto religioso atrelado ao caráter expresso na rubrica de apresentação, que é fundamental para identificar o comportamento da personagem Vera com a deusa, divindade e orixá feminina Iansã, encontrada entre os mitos da Umbanda e do Candomblé. Na mitologia africana, a figura de Iansã (ou Oiá) “dirige o vento, as tempestades e a sensualidade feminina. É a senhora do raio e soberana dos espíritos dos mortos, que encaminha para o outro mundo” (PRANDI, 2015, p. 22). Está, assim, mais associada às atividades relacionadas com as funções tipicamente masculinas, já que se faz presente tanto nos campos de batalha, no lugar em que se combatem as grandes lutas, como nos obstáculos cheios de perigo e de peripécias; portanto, não aprecia obrigações do lar, rechaçando o comportamento e o papel feminino tradicional. Dessa mesma forma age Vera em relação a sua irmã e às funções que assumiu: é encarregada de sair nas ruas desagradáveis com nuvens radioativas que queimam a pele deixando feridas que nunca cicatrizam para procurar as refeições e o que mais fosse preciso para satisfazer as necessidades diárias dentro da funerária. O significado de seu nome – “do russo Wera, Wjera: ‘fé, crença’; ou do lat. vera: ‘verdadeira, real’” (GUÉRIOS, 1994, p. 325) – também influi muito na personalidade e em seus atos durante a peça. Vera apresenta-se muito franca e sincera em suas atitudes, além de demonstrar muita fé no futuro em Calmaritá: “CARMEM – Fé? Meus Deus, Vera, você está sentindo fé? // VERA – Pode ser. Fé. É isso aí” (ABREU, 2009, p. 207).

Por outro lado, sua irmã Carmem esconde-se em seu mundo de fantasias, fazendo com que Vera sempre advirta a irmã sobre a realidade:

CARMEM – Você vai me deixar outra vez sozinha aqui? Ah, Vera, a última vez foi horrível. Você demorou horas, cheguei até pensar que eles tinham apanhado você, e que logo viriam me pegar também, e que nós estávamos perdidas, e que...

VERA (Cortando.) – Você pensa muita bobagem. Afinal, você sabe perfeitamente que se eles me pegarem eu não vou dizer nada. Podem me matar, ou me contaminar, o que é pior, mas eu não digo nada.

CARMEM – Não quero ficar sozinha aqui. VERA – Então vem comigo.

CARMEM – Deus me livre.

38 Lembro aqui a indumentária clássica de couro que Schwarzenegger carrega em O exterminador do

futuro (1984) e os trajes de Mel Gibson em Mad Max (1979). Os cabelos descoloridos, aliás, remontam à

VERA – Por quê? Vamos nós duas juntas. Por que é que tem que ser sempre eu, enquanto você fica aí no bem-bom, delirando dentro desse caixão medonho? (ABREU, 2009, p. 185).

Outro aspecto importante a ser analisado é que Vera carrega sempre o fuzil para sua defesa e de sua irmã; de igual modo, a figura de Iansã sempre aparece como uma espada na mão, que, após casar-se com Ogum e ter nove filhos, ganhou para sua defesa e dos seus. Contudo, apesar dos atributos guerreiros e de sua conduta racional, a personagem Vera acentua outro lado quando cede aos desejos carnais e conhece o Homem de Calmaritá; assim, por ter um relacionamento erótico com este, a personagem transita entre dois planos durante a peça: o Real e o Alfa. Inicialmente se conhece este homem por ele habitar seus sonhos quando aparece na cena 2, numa sequência que envolve [a] sexualidade (“Ah vem, mata a minha sede”), [b] tesão (“me morde, me arranha, me rasga. E me toca.”), [c] fetiche (“O homem amarra pelos pulsos e

tornozelos, amordaça-a – tudo com trapos que arranca da própria roupa”), [d] estupro

(“Rasga a roupa de Vera”, “É um estupro. Vera debate-se como pode”), [e] denúncia do HIV39, vírus que se proliferou no Brasil a partir da década de 1980, nos seres ditos “contaminados” (“CARMEM – Me larga, eu não estou contaminada.”, ao que o Homem responde: “Hum... é verdade, não tem nenhuma mancha. Nenhuma ferida. Bom, isso não prova nada. A peste deve estar em seus estágios iniciais. No começo não se nota nada”) e [f] o uso da camisinha como proteção metaforizada pelas luvas (“O homem então tira um par de luvas de borracha de algum lugar, veste-as e começa a lubrificá-las lentamente” [ABREU, 2009, p. 184]).

Esta cena reforça não só os desejos, a “fome e tesão”, de Vera como também a virilidade masculina vista numa perspectiva machista de sexualidade: o homem, dominador e ativo; a mulher, um ser passivo e servil. Como aponta Pierre Bourdieu em

A dominação masculina:

Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo – o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo feminino como desejo da dominação masculina, como subordinação erotizada, ou mesmo, em última instância, como reconhecimento erotizado da dominação (BOURDIEU, 2014, p. 31).

39 Caio Fernando Abreu descobriu ser portador do vírus HIV em 1994, mas, como nos indica Italo

Moriconi, “pode-se constatar facilmente que o discurso da Aids, em torno da Aids, pautado pela Aids, já estava presente na ficção de Caio desde o início da epidemia, na primeira metade da década de 80” (MORICONI, 2002, p. 15). Esse discurso se metaforiza em sua obra e no corpo de seus personagens.

Além dessas ideias sobre os modos de agir do Homem e de atitudes que partem da postura de Vera ao aceitar os impulsos de seus desejos carnais, conservando relações sexuais, não se excluem, porém, certas reservas a respeito do tipo de relacionamento que ela admite ter com este que ela chama de “maldito macho”40, como é visto na Cena

7, em que não se evita o referido contato carnal:

VERA – Não me toque.

HOMEM – Que é isso? Por que não? É tão bom sempre. Você gosta, eu gosto. Vem cá, deixa disso.

VERA – Estive pensando, é melhor acabar logo com tudo.

HOMEM (Tirando o fuzil das mãos dela.) – O quê? Você quer acabar com a única coisa que nós temos? Ora, garota, nós não temos nada, você e eu, além de nós mesmos. Nenhum esperança, nenhum futuro. Nós só temos hoje e medo.

VERA – Agora e terror.

HOMEM – The horror... The horror...41

VERA – Tesão e fome.

HOMEM – Isso. Tesão e fome, ao mesmo tempo. Vem cá, deixa eu comer você. Deixa eu matar minha fome.

VERA – Não! Hoje é a última vez que nos encontramos. (ABREU, 2009, p. 193).

Não apenas nesta passagem, mas também em outros momentos percebe-se a desconfiança que Vera demonstra ter em relação ao Homem, pois, mesmo amaciando seu ego e exaltando sua beleza, afirma que não pode confiar nele: “mas eu tenho uma intuição estranha... como uma certeza... uma certeza absurda que você vai me trair. (Afasta-o.) Vai embora, eu não posso confiar em você. É muito perigoso.” (idem, ibidem). Nesse mesmo sentido se pintam os trechos em que o Homem se comporta de modo a mostrar atitudes de proteção ou certo tipo de valentia. Por exemplo, após uma manhã de sexo, diante da tentativa de Vera de ir para casa, o Homem insiste que ela passe mais tempo com ele para que depois ele a leve embora, mas Vera recusa a proposta dizendo que necessita ir e não confia nele ao ponto de mostrar onde mora.

VERA (Tirando as luvas.) – Deve passar do meio-dia. Tenho que ir. HOMEM – Mais um pouco. Fica mais um pouco.

VERA – Não, é muito arriscado.

40 Os exemplos cinematográficos já citados que tematizam mundos pós-apocalípticos também costumam

incluir a relação carnal entre os protagonistas. Nesse sentido, o Homem de Calmaritá lembra, em muito, Kyle Reese, personagem d’O exterminador do futuro que, ao retornar do futuro, se envolve sexualmente com Sarah Connor – de cuja relação nasceria o filho responsável por liderar uma revolução no futuro.

41 Para continuar a trilha de referências apocalípticas, Caio coloca, em inglês, a célebre frase do Coronel

Kurtz de Apocalypse now (antes disso celebrizada em Coração das trevas, de Conrad) na boca do Homem de Calmaritá. Ainda vale a menção ao filme de Andrei Tarkovsky, Stalker (de 1979), que apresenta inúmeras semelhanças com o enredo da peça – fato que merece, noutro momento, análise mais detalhada.

HOMEM – Eu levo você em casa.

VERA – E você acha que vou dizer onde moro? HOMEM – Você não confia em mim?

VERA – Confio. Sei lá, acho que sim. Mas não a esse ponto. (Procura o

fuzil.). Semana que vem eu volto. (ABREU, 2009, p. 200).

Após o encontro amoroso, em que o parceiro promete livrá-la da Zona Contaminada e do Poder Central, Vera volta à casa-funerária, que fica “diagonal à praça de Hiroshima” (ABREU, 2009, p. 206), acentuando o clima de incredulidade existencial vivido pelos personagens. O Homem, nesse diálogo, promete levá-la para as terras de Calmaritá, onde encontrará descanso e tranquilidade. Vera, não acreditando muito, brinca com um amor romântico, em uma cabana, no cenário de praia: “Coqueirais e areia branca, sei, drinques tropicais de abacaxi com camarão. Um lugar paradisíaco onde a gente pudesse tomar banho de mar e fazer amor o tempo todo. Mas, onde, meu bem? Capri, Goa, Arembepe?”42 (idem, p. 200-201). Depois do breve devaneio, porém, reafirma a realidade para o Homem, demonstrando a certeza de que “A luta é aqui. O que existe é isso. Estou farta de sonhos idiotas e escapistas” (idem, ibidem). Do relacionamento do casal um fruto será produzido, instaurando uma mudança fundamental no comportamento da mulher guerreira. Vera, que não tinha mais esperança na humanidade e nem gostaria de ter um “filho monstro”, como ela mesma diz, engravida do Homem e reacende seu desejo pela vida, crendo na possibilidade de recomeçar e ter uma nova chance em Calmaritá: “Eu sei o que eu disse: no que depender de mim, a humanidade pode acabar, não foi isso? Pois eu mudei de ideia. (Acariciando o ventre.) Desde que comecei a sentir a presença de uma outra coisa aqui, naquele mesmo lugar onde só existiam tesão e fome” (idem, p. 207).

Do momento em que Carmem prepara as coisas para ir para “Calmaritá, Calmaritá. Ao norte, nas terras altas” (idem, p. 209), da denúncia feita pelo Homem de Calmaritá ao Poder central sobre o paradeiro das irmãs, quando é capturado e torturado, até o final desnorteado da peça, a personagem Vera lutará por sua libertação e de seu filho, que “é tudo. Tudo que é necessário para começar um mundo novo” (idem, ibidem). Além disso, sua insistência de guiar a irmã para as terras de Calmaritá com o mapa que ganhou do Homem revela outra semelhança com a figura de Iansã, que guia os eguns até o reino dos mortos e ganha de Obaluaê este reino. No final, Carmem desiste de seguir para as terras de Calmaritá, abandonando sua irmã, que insiste para que

42 No conto “Mel & girassóis (ao som de Nara Leão)”, em Os dragões não conhecem o paraíso, a

temática do romance à beira do mar é tratada de forma longa e detalhada entre dois desconhecidos que se apaixonam.

ela a acompanhe, e o Homem de Calmaritá é crucificado como Cristo. Desiludida com Carmem, Vera sai perdida em busca da saída de Zona Contaminada e da redenção para seu filho e para si mesma: “A saída, eu sei que existe uma saída! Ele me deu o mapa, eu tenho o mapa. Eu tenho que chegar lá. Preciso salvar meu filho. Eu sei que existe outro lugar. A saída, meu Deus, onde fica a saída? Me diga onde fica a saída!” (ABREU, 2009, p. 215).