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Site specific: a cidade como obra e território

2.2 Teatro Público: a comunidade protagonista e a cidade como palco

2.3.1 Site specific: a cidade como obra e território

Considerando o nosso ideal de efetivação de um teatro público, a partir da relação direta com uma comunidade, cabe aqui discutir este conceito, situando-o também como um dos paradigmas da arte pública contemporânea, conforme também entendem alguns pesquisadores. Pois, a vinculação com um ambiente ou espaço específico e o diálogo aprofundado com o site onde ocorre um espetáculo, atribui a uma obra de site-specific um caráter de interação com as pessoas e com o local específico, possibilitando a criação de obras que possam dialogar com as necessidades e demandas dos habitantes. A escolha de um local ou arquitetura específica para um espetáculo teatral em comunidade visa trazer a voz e a semântica deste espaço para a cena, e não simplesmente levar o espetáculo teatral para a rua. Um site specific theatre se realiza a partir da apresentação do próprio local sob um novo olhar:

(. . . ) quando um galpão de fábrica, uma central elétrica ou um ferro- velho se torna espaço de encenação, passa a ser visto por um novo olhar, ‘estético’. O espaço se torna coparticipante, sem que lhe seja atribuída uma significação definitiva. Mas em tal situação os especta- dores também se tornam coparticipantes. Assim, o que é posto em 3 Essa descrição de “intervenção urbana” está baseada em informações extraídas do site: <http://ww

cena pelo teatro específico ao local é um segmento da comunidade de atores e espectadores. Todos eles são ‘convidados’ do lugar; (. . . ) Atores e espectadores vivenciam a mesma experiência não cotidiana de um espaço descomunal, de uma umidade desconfortável, talvez de uma decadência na qual se identificam vestígios da produtividade e da história. Nessa situação espacial volta a se manifestar a concepção de teatro como tempo compartilhado, como experiência comum (LEH- MANN, 2011, p. 281 -282).

O espaço, portanto, torna-se elemento simbólico da encenação que apresenta possibilidades de leitura e interpretações, considerando que uma determinada comu- nidade de pessoas estabelecerão relações diferentes das cotidianas, revelando ou criando novos sentidos para ele. A presença física do espectador, imerso no espaço, na ação e na consolidação dos sentidos da obra, constitui um agente primordial para a efetivação da experiência. Assim sendo, especificidades como: geografia, memó- ria, histórias, contextos, simbologias, entre outras características, são elementos que caracterizam as obras site specific, em qualquer linguagem artística, os quais geram aproximação com espectadores, possibilitam a ativação de espaços de debate, uso e apropriação de espaços públicos por meio da reunião comunitária em torno de um evento cênico com identidade local.

Miwon Kwon (2007) pesquisadora que desenvolve estudos sobre arte e arqui- tetura contemporâneas, bem como sobre a relação entre arte e cidade, apresenta uma perspectiva histórica sobre as práticas site-specific, e seus desdobramentos, em decorrência de reflexões sobre o papel e o lugar da arte. Cita como emblemáticas para o estabelecimento dessa relação, diversas mudanças, ocorridas por volta dos anos 70, período em que ganharam força paradigmas que solicitavam um maior engajamento da arte com a vida cotidiana. Momento em que foram colocadas em pauta, críticas acerca do confinamento dos artistas nas galerias e ambientes institucionalizados, além de enfatizarem temas como ecologia, condições de moradia, Aids, homofobia, racismo e sexismo. Um movimento que caminhava na direção de uma desmaterialização do site e do próprio trabalho de arte, limitados aos espaços específicos das galerias, passando a contrariar os desejos institucionais, resistir à mercantilização da arte e adotar mode- los antivisuais4. Constituiu-se, dessa forma, uma compreensão de obra artística que,

segundo Kwon, deixa de ser um “substantivo/ objeto” para se tornar “verbo/processo”, possibilitando ao espectador o desenvolvimento de uma “acuidade crítica (não somente física)” em relação aos aspectos ideológicos da experiência. A relação da arte com o site deixa de ser exclusivamente pela permanência física para dar espaço à experiência de impermanência, transitoriedade e efemeridade de uma obra.

4 Miwon Kwon (1997) , caracteriza como antivisuais as obras que se utilizam de estratégias textuais,

expositivas e didáticas, além de outras que possuem aspectos imateriais como: gestos, eventos e performances limitadas pelo tempo.

Permeadas por um processo de busca da desmaterialização do site, e por necessidades que o próprio caráter de interdisciplinaridade artística apresenta, Kwon menciona ainda que algumas abordagens passaram a localizar a ideia de site em aspectos discursivos. Alguns artistas, engajados em projetos de grande impacto em políticas de identidade, como escravidão, racismo e tradições etnográficas, passaram a estabelecer tais assuntos como sites de investigação artística. Os debates culturais, um aspecto teórico, uma determinada comunidade, uma questão social, evento ou contexto histórico passaram a ser considerados sites, fator que ampliou ainda mais a noção de site-specific e expandiu seu caráter político. Neste movimento de ampli- ação e reelaboração das práticas, outro conceito apresentado pela autora, o qual foi proposto por James Meyer, é o “functional site”, prática que propunha uma dinâmica de desterritorialização em oposição ao ideal de permanência e imobilidade da obra em um site específico. O caráter de transitoriedade e desterritorialização, tem como suporte, mídias que possibilitam uma circulação – jornais, revistas, cartazes, impressos – e meios eletrônicos, como rádio, jornal e internet.

(. . . ) agora o site é estruturado (inter)textualmente mais do que es- pacialmente, e seu modelo não é um mapa, mas um itinerário, uma seqüência fragmentária de eventos e ações ao longo de espaços, ou seja, uma narrativa nômade cujo percurso é articulado pela passagem do artista (KWON, 2007, 172).

O lugar não é compreendido a partir de uma materialidade física, pois o site é constituído a partir de um padrão de movimento semelhante ao dos espaços cibernéti- cos e de uma virtualidade que confere uma interatividade muito próxima da que ocorre no espaço de uma cidade. Como afirma Kwon (2007, p. 173), essa transformação “textualiza espaços e espacializa discursos”.

Todas essas definições constituem orientações para o estudo das práticas do teatro contemporâneo na cidade, na medida em que problematizam as formas de relação com os espaços pelo vetor das implicações estéticas e políticas. Esse teatro, o qual estamos escavando, se alinha ao conceito de evento site-specific, por buscar um vínculo com a cidade em que está inserido, propondo uma relação indissociável entre o espaço cênico e o espaço urbano., configurando uma “abordagem estética da produção, a qual procura envolver organicamente atores, espaço e texto” (CABRAL, 2012, p. 14). Além disso, conforme aborda Cabral (2012, p. 14), caminhamos na perspectiva de que “o sentido de uma experiência pode ser alcançado pela ideia de uma ação através da interação entre condições sociais e físicas imediatas”, princípio que, sem dúvidas, agrega significados às práticas teatrais em comunidades.

Ressaltamos que a relação dessas discussões com as práticas, fornece meca- nismos para uma análise da experiência desta pesquisa-ação, dos resultados e das

orientações metodológicas do nosso processo teatral educativo e comunitário. Cabe ainda mencionar, que não nos interessa criar definições fechadas para as nossas práticas, pois todas as que apresentamos até aqui podem se sobrepor, gerar outras possibilidades de inter-relação, ou simplesmente guiar as nossas trajetórias reflexivas.

Prosseguindo neste percurso de reflexão sobre as vinculações do teatro com a cidade, bem das relações da arte com a sociedade, ampliaremos nossas referências para possibilitar uma compreensão mais aprofundada dos direcionamentos e aspectos que permitem a caracterização do nosso teatro público em comunidade. Visando o alcance dos objetivos de interferência e discussão sobre os contextos do nosso território de ação, partimos em busca definições especificas do campo teatral, para pensar a relação da cena com a cidade. Neste intuito, nos aproximamos da definição Teatro de Invasão, abordagem do professor e pesquisador André Carreira, desenvolvida e criada com seu grupo teatral, denominado (E)xperiência Subterrânea, fundado em 1995, em Florianópolis - SC (BRITO, 2012). Carreira apresenta alguns pressupostos que orientam grande parte das práticas de site specific theatre, multiplicando as formas de diálogo do teatro contemporâneo que intervém na cidade e pela cidade.