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Situação cultural do Sul cearense

Colombo, nesses mapas, procurou provar a importância dessas duas áreas e mesclou fatores que simbolizariam a veracidade desse documento, como os dados quantitativos e gráficos comparativos, visando favorecer sua perpetuação às futuras gerações. Esses mapas são documentos/monumentos (LE GOFF, 1994)69 criados para corporificar a sua ideia de Cariri, maquiada e engendrada de vários acréscimos e exclusões movidas para responder aos questionamentos dos técnicos da Chesf.

Enfim, tais cartografias se traçaram por meio de uma operação construtora de balizas criadoras de um panorama e bases para sua atuação intervencionista. Colombo se achava o líder desse movimento, por isso, ousou criá-los, detalhou o seu território e o ampliou, ou seja, agregou-lhe cidades que, no campo visual da cultura local, não figuravam em seu espaço. É a partir disso que pensamos as teias de relações movidas por seu status como chefe dessa causa e tutor do Comitê Pró-Eletrificação. Tal posição social lhe deu cabedal simbólico para promover um forjamento de uma nova memória visual para a região, propositadamente feita em prol de sua energização. Por que, então, destacaram-se, nesse empreendimento, somente os aspectos econômicos e culturais? Porque foram os condutores da formulação do Memorial em prol da Chesf, os fios de sua ligadura, os impulsionadores de suas bases para a eletrificação regional e para a expansão da Companhia de Eletricidade do Cariri, como também no fornecimento de suas cidades de pequeno porte e de um projeto futuro para sua eletrificação rural.

Depois de enviado esse Memorial, Colombo propôs um acréscimo, em maio de 1950, no nome do comitê, da palavra industrialização, para representar que não se buscava só a energia, mas que, junto a esta, fosse fomentada aquela. A partir daquele mês, o nome oficial passou a ser este: Comitê Pró-Eletrificação e Industrialização do Cariri (Cpeica). Para esse professor, o projeto fomentado por esse grupo se associava a uma ideia de “INDUSTRIALIZAÇÃO moderna” e ao princípio do planejamento dito econômico, técnico e racional. Sendo influenciado pelos princípios propagados pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe 70, enfatizou que era urgente pensar um Planejamento Industrial

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Conforme Le Goff, o documento resulta de um exercício de montagem, seja ela consciente e inconsciente. Dessa forma, é construído e manipulado por vários sujeitos que os elegem, ou seja, “o documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser, em primeiro lugar, analisados, desmistificando-lhe o significado aparente. O documento é monumento” (1994, p.548).

70 Segundo Pinheiro (2014), ao ser criada em 1948 a Cepal, ligava-se às Organizações das Nações Unidas (ONU)

e visava desenvolver economicamente as regiões da América Latina. Para isso, promoveram uma “reflexão autóctone” e construíram certa identidade latino-americana. Tal atuação do pensamento cepalino favoreceu uma racionalização econômica para esses países – considerados periféricos – e sua imersão “como atores coletivos” no cenário internacional (MELLO E SILVA apud PINHEIRO, 2014, p.162).

para o Cariri. Dessa forma, integrou o projeto de modernização regional a uma organização econômica, como também a um conhecimento técnico, ou melhor, para ele, “O PLANEJAMENTO é o ponto alto da economia moderna e a maior conquista da técnica, aliada ao espírito de organização” (SOUSA, 1951, p.119).

Apesar dos discursos proferidos, por exemplo, por Colombo de Sousa, a fim de unir as forças oposicionistas nos setores político-econômicos entre Cariri e Fortaleza, tais conflitos se tinham iniciado desde finais de 1940, no tocante à eletrificação do Sul cearense. Conforme alguns fortalezenses, a “influência de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte nas regiões do Cariri e do Vale Jaguaribano” estava afastando-as “de Fortaleza”; isso resultava em “perdas econômicas para o Ceará” (SOUSA, 1951, p.41), pois o porto da Capital não se sustentava, devido à falta de relações econômicas com essas duas regiões detentoras de um mercado consumidor e uma florescente economia. Segundo o Correio do Ceará,

Enquanto Fortaleza se transforma rapidamente num novo Aracati (pelo seu porto saíram menos de 40 mil toneladas de mercadorias em 1949), o Estado não arrecada nem para pagar ao seu funcionalismo. Deixando de retirar de nossa produção os lucros comerciais e os impostos decorrentes da movimentação das mercadorias, empobrecemo-nos gradativamente, à medida que aumenta o fluxo das mercadorias pelas fronteiras, permitindo que os Estados limítrofes dilatem a sua economia à nossa custa. [...] Na verdade, estamos diante de um dilema inapelável: ou abrimos os braços ou seremos engolidos, economicamente pelos estados limítrofes71.

Para os defensores desse discurso, a sua eletrificação aumentaria o fosso existente entre ela e a capital do Estado, como também a perda, por parte de Fortaleza, de sua soberania econômica e de sua influência sociocultural. O medo do outro e das mudanças financeiras acarretadas por esse insumo no Cariri tecera expectativas futuras de decadência fortalezense como condutor econômico perante as cidades cearenses. Essa posição estava sendo intensificada e conseguindo, pós-1945, algumas iniciativas de legitimação nas regiões mais próximas. Outra região, o Vale Jaguaribano, também tinha sua singularidade e tratos econômicos realizados com outras praças comerciais e não com a capital cearense.

Segundo Ana Silva (2015), no Vale do Acaraú, a cidade de Sobral se colocava como a condutora de sua região, para isso os seus intelectuais construíram uma imagem de superioridade regional que usou para tal intuito o enaltecimento via comparação entre ela e as outras como uma forma de sua legitimação desde o século XIX. Dessa forma, consoante ela, a influência de Fortaleza sobre as outras localidades cearenses não era unanime, o conflito com outros espaços do Ceará como Sobral, Juazeiro e Crato era amiudado - pois esses possuíam

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relações econômicas e sociais para além das fronteiras cearenses. A disparidade se arrefeceu em proporção ao Cariri, devido à distância territorial existente entre seus espaços, como também às problemáticas referentes às precárias estradas estaduais que não favoreciam seu contato. Portanto, as políticas econômicas de seus estados vizinhos concediam-lhes economicamente preços mais propensos do que Fortaleza - tanto na compra de produtos como na ida a essas localidades72.

Para construir e corroborar essa diferença, foram utilizadas imagens e discursos do passado. Essa afirmação de uma identidade se manipulou para promover o levantamento dos caririenses contra uma suspeita de complô e boicote a seu plano de eletrificação. Os argumentos utilizados por um grupo de fortalezenses, especialmente os pertencentes a alguns órgãos de imprensa da Capital, contra esse projeto se fundavam no seguinte receio: “o centro industrial do Estado” se deslocaria ao Cariri e “nasceriam desse acontecimento consequências funestas para Fortaleza, que perderia a sua liderança econômica” (SOUSA, 1951, p.43).

Enfim, essa desconfiança se espalhou no Cariri e se tornou um elemento importante à promoção de uma unidade entre os municípios do Sul cearenses. O Cpeica arrolava os nomes suspeitos, divulgava os deputados, senadores e o nome de destacados homens públicos que eram contra o projeto. As tensões entre essas regiões, assim, teceram-se por teias discursivas de intriga, pelo desejo de modernização e o temor de uma possível castração desse sonho. O início dos anos 1950 fora o tempo em que se movimentaram discursos, imagens e outras artimanhas na arte produtora de certa unidade caririense, bem como essas desconfianças se intensificaram e deixaram de ser suspeitas, para tornarem-se fundamentos à construção de outra proposta política para a eletrificação do Ceará.

1.3 A União

“O Cariri é uma das zonas mais ricas, mais férteis e mais futurosas do Ceará. Graças à Chapada do Araripe, diz-se que ali se encontra o celeiro do Nordeste. [...] O

que está faltando ao Cariri para corresponder às expectativas mais exigentes do Nordeste e não só do

72 Conforme Silva Filho, o vínculo acarretado com a construção da ferrovia de Juazeiro do Norte a Fortaleza na

década de 1920 favoreceu um fluxo de produtos entre essas espacialidades, do interior se transportavam matérias-primas e safras alimentícias, em contraponto os caririenses compravam da Capital produtos importados. Contudo, esses tinham um preço acima dos comprados em outras capitais dos estados vizinhos, “afora isso, a preeminência da praça de Recife, geograficamente mais próxima e detentora de fluxos de capitais mais vultosos, permanecia notória sobre o assim chamado “celeiro do Ceará”” (2008, p.38).

Ceará é a facilidade de transportes, mas, sobretudo, a barateza da força motriz73.

A citação acima expressa o enaltecimento de algumas singularidades do Cariri cearense, destacando os fatores econômicos, naturais e históricos, e o que os ligava eram as expectativas desse colunista em relação às mudanças, acelerações da vida cultural e material caririense, pós-eletrificação da Chesf. Paralela a essa particularidade regional, os anos após o Estado Novo requisitavam uma renovação no panorama político cearense e nas formas de se fazer projetos de governança no Brasil.

Conforme Neves, esse período se constituiu, enquanto experiência de um sistema liberal, pautado pelo viés democrático e representativo. Nesse novo quadro político, também, emergiu-se uma avalanche fundacionista de agremiações e partidos políticos que disputaram intensamente o voto dos eleitores cearenses. Contudo, a cultura política de então se fundamentava em uma tradição paternalista. Conforme esse historiador, “a superposição e a combinação destes modelos políticos – liberal e paternalista – determinam a formação de uma nova estrutura de sentimentos” (2007, p.94). Dessa forma, as percepções de combate à seca, como a “solução hidráulica” e a “fixação do homem no campo”, conforme ele, permaneceram, mas lhes foram atribuídos novos sentidos. Essas duas políticas públicas, destacadas por esse historiador, a partir de 1950, utilizaram-se de uma manipulação política, como as trocas de favores entre o retirante e os grupos detentores dessas obras assistencialistas. Portanto, tais obras públicas favoreceram a manutenção de relações de poder entre os grupos políticos tradicionais do Nordeste e seu curral de eleitores.

Os primeiros anos da década de 1950 foram de intensos debates pela defesa da eletrificação caririense, cujo território fazia parte da zona de extensão das redes da Chesf, mas não estava contemplada em seu projeto piloto. O professor Colombo de Sousa, o Cpeica, seus líderes políticos e intelectuais procuraram defender, de múltiplas maneiras, a sua energização.

Após 1945, os esforços desse comitê eram primeiramente de congregar as forças internas regionais, para pleitear a energização de seu território, aos prestígios políticos e econômicos que possuíam. Para isso, o fosso entre as suas cidades de maior poder econômico, Juazeiro do Norte, Crato e Barbalha, deveria diminuir, sendo necessária para tal a construção de uma agência que construísse entre elas uma ponte simbólica impulsionadora de um campo de diálogo e certo contrato de paz naquele momento, principalmente, entre as duas primeiras.

Segundo os discursos das elites culturais locais, precisavam aproximá-los, traçar aspectos comuns e produzir ligações que diminuíssem suas disparidades.

Entendemos que as elites culturais caririenses eram compostas por bacharéis e letrados (sem titulação acadêmica) que possuíam uma rede de meios de produção e mediação na região e que buscava abranger vários de seus aspectos, por exemplo, político e socioeconômico. Para Sirinelli, a elite cultural é formada pelos homens que criam ou mediam o saber artístico, literário e científico. Essa representava o poder de influência e as suas redes de relação, “as elites também se definem não só pelo seu poder e por sua influência intrínseca, como também pela própria imagem, que o espelho social reflete” (2000, p.262). Boa parte dos que pertenciam a sua elite cultural tinham profissões liberais, ligavam-se às entidades religiosas e educacionais, aos clubes e órgãos civis dedicados à fabricação de sua história e promoção cultural. Vinculavam-se ademais aos quadros jornalísticos como correspondentes dos jornais da Capital, eram fundadores ou pertencentes aos quadros da imprensa local e radiofônica - meio muito mais rápido e de maior acesso para a propagação de informações, como também detentor de um número mais expressivo de consumidores.

Sobre esses dilemas e tensões inter-regionais, o jornalista do Sul do Brasil, Mario Vilhena, em visita ao Cariri, traçou suas impressões sobre a região e publicou-as no Jornal do Cariri, em 18 de fevereiro de 1951. A busca de forjá-lo certa unidade se propalava discursivamente pelos políticos locais imagens e traços que o possibilitassem, isso para fomentar algumas mudanças de atitudes mais imediatas em seu cenário político e econômico. Tais esforços não edificaram sua união instantaneamente, nem promoveram mudanças repentinas entre os dilemas que separavam as suas elites, nos anos 1950, mas procuraram construir amálgamas para fabricar discursivamente uma representação de que todos os caririenses estavam de acordo sobre a necessidade dessa força.

Mario Vilhena, ao visitar especificamente Crato e Juazeiro, percorreu suas ruas, seus bairros, seus espaços de sociabilidade e lazer. Seu olhar partiu do exterior e, enquanto morador da cidade de São Paulo, destacou não o ordenamento e a organização desses espaços urbanos, mas a aceleração que os movimentava cotidianamente. Sentindo-os, traçou suas percepções pelos sentidos corporais, percebendo os impactos que os inquietavam, as redes de sociabilidade e subjetividade vivenciadas em suas feiras74. Operando assim, em seu olhar, sistemas de relações por meio de seus sentidos, esse visitante frisou não somente a

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Conforme Albuquerque Junior (2008, p.113), “nossa sensibilidade é histórica: o tato, o olfato, o paladar, a visão e a audição também são testemunhas de um dado tempo e de um dado contexto”.

materialidade das ruas, mas, sobretudo sua experiência, ou melhor, seus espaços de circulação, de sociabilidade e sua hibridação de odores. Segundo ele,

Vá a Juazeiro, leitor, e veja como a cidade do Padre Cícero fica em dia de feira: o movimento começa logo de manhã e só decai lá para as 3 horas da tarde. Tudo se vende na rua, uma rapadura (dinheiro trocado, 1$500, dinheiro para trocar, 1$60) uma rede, um colar de ouro, uma corda, um calango seco ao sol, um chapéu, um par de sapatos, um bom almoço, um punhal, uma “peixeira”, um chicote [...] enfim, leitor, pense numa coisa qualquer e você a encontrará na feira de Juazeiro. No Crato, também, as ruas se transformam em departamentos de vendas (cada rua para cada coisa), mas há menos variedade, menor volume de negócios. Esta é a minha impressão e já sei que os cratenses me odiarão por dizer que a feira do Juazeiro é melhor. Crato vive querendo ver a caveira de Juazeiro e Juazeiro gosta de qualquer coisa no mundo, menos de Crato. Barbalha entra, ainda, nesse triângulo de rivalidades do Cariri, o que é muito divertido para o forasteiro. No tempo dos jagunços, Juazeiro tomou o Crato e anexou-o. Isso nunca mais será esquecido. Crato anda humilhadíssimo porque o seu clube está localizado sobre um armazém de secos e molhados, enquanto o de Juazeiro tem luxuosa sede própria; então, os cratenses se reuniram e estão construindo um clube que também humilhará o de Juazeiro. Dançamos em ambos, mas nos bailes de Juazeiro não apareceu uma só moça cratense e, no Crato, nem sombra de pequena do Juazeiro, apesar das duas cidades distarem vinte minutos de automóvel75.

Ao comentar sobre essas feiras, Vilhena traçou uma cartografia de suas ruas. Procurou também, em seu olhar para a multidão citadina, senti-la em seus aspectos urbanos e de pertencimento às suas respectivas localidades. Foi nela em que percebeu os vários Cariris e esse olhar para a região, de distanciamento e encantamento, estranheza e paixão, o possibilitou escrever as suas impressões de tais cidades. Essas, por sua vez, destoavam com o discurso político da época, que pregava a sua unidade. Ao visitá-las, sua atenção fora despertada diferentemente em cada uma delas: em Juazeiro do Norte, ficou apaixonado pelo seu caos, pelo frenesi de sua multidão e pela variedade de seus produtos, que o encantaram; em Crato, a pouca movimentação de pessoas e a escassez de seus produtos nas feiras despertaram-lhe uma percepção negativa.

A construção de elos identitários para essa região estava se mostrando como elemento necessário ao Cpeica pós-1950, para corroborar e arregimentar os políticos que a pertencia ao projeto de eletrificação. Os Poderes Executivos e Legislativos perceberam que as suas ações solitárias eram insuficientes, naquele momento da democracia brasileira, e que, para conseguir algum benefício para Juazeiro ou Crato, precisavam não falar mais em nome de uma ou outra cidade, mas do Cariri. Dessa forma, construíram imagens e discursos que fortalecessem essa ideia de unidade. Fabricaram mitologias políticasa fim de vigorá-la, como o mito da Nação Cariri, atrelado à história dos índios Kariris, e o mito da idade de Ouro,

75 JORNAL DO CARIRI, ano I, n.31, Juazeiro do Norte, Domingo, 18 de fevereiro de 1951, p.01. Os clubes

mencionados na matéria eram o Rotary Club de Crato e o Rotary Club de Juazeiro do Norte. Essas duas entidades tiveram grande atuação para conseguir trazer para a região a eletricidade produzida em Paulo Afonso.

destacando os eventos nacionais de que tinham participado, por exemplo, a Confederação do Equador (1924) e a Revolução Pernambucana (1817). A partir disso, estas questões nos parecem pertinentes: Como buscaram forjá-la por meio de palavras de ordem? Quais os acordos efetuados para constituir as bases de legitimação de suas reivindicações por esse insumo?

Primeiramente, construíram uma mitologia da unidade. Para isso, escavaram os baús de sua história, procuraram fatos, datas e homens para servirem como seus símbolos. Antes de continuarmos a discorrer sobre essa edificação de mitologias no Cariri nos anos 1950, consideramos oportuno esclarecer qual o sentido da palavra mito que adotamos. Conforme Girardet (1987), o mito se constitui em uma correlação de explicação, dinamicidade e mobilização. Enquanto profético, evoca levantes, desestrutura o dado e a ordem. Por isso, para esse historiador, deve-se levar em consideração a singularidade de uma realidade psicológica, verificando também seus pontos comuns. Essa dinâmica do mito é construída por imagens que se encadeiam e desencadeiam formando outros quadros; Girardet chamou isso de “jogo complexo de associações visuais”. Tal particularidade não permite lançarmos definições fechadas por causa de sua fluidez e imprecisão, mas apenas conceitos abertos que serão diluídos e transformados ao longo de estudos particulares e específicos.

Os mitos políticos, como os mitos religiosos, são polifônicos, possuidores de múltiplas ressonâncias e significações, mas também ambivalentes. Por isso, faz-se necessário verificar o diálogo entre a singularidade e a totalidade, a fluidez mítica e a necessidade de dá- la corpo racional, através de uma narrativa histórica e de um campo disciplinar. Para Girardet, “reconhecer ao imaginário seu lugar não significa de modo algum abandonar-lhe a totalidade do campo de análise. A focalização da atenção sobre os fenômenos de ordem mítica apresenta, e no seu próprio movimento, uma virtualidade de arrebatamento redutor que seria condenável não assinalar. A constatação tem valor de advertência” (1987, p.23). Uma característica importante é que o mito, conforme o referido autor, constrói códigos de veracidade e imutabilidade que partem da sensibilidade, das paixões, dos símbolos atrelados aos sonhos, desejos, esperanças e frustrações.

Dessa forma, o acontecimento não tem sentido em si mesmo, o seu deciframento deve ser correlacional e a sua sintaxe associativo-singular, procurando, portanto, o fio condutor por onde se iniciaria a caminhada da investigação, ou seja, reconhecer a existência de uma lógica do imaginário enquanto apoio fundamental à inteligência crítica e ao desejo de tentar compreendê-lo objetivamente. Contudo, essa lógica não é fechada, mas possuidora de vários fios como uma teia de aranha preparada para pegar a presa. Sabermos, igualmente, qual

o fio que iniciou a sua construção é o desafio, não é uma proposta de buscar a origem, mas torná-lo inteligível.

Dessa maneira, para Girardet, a constituição de um banquete e de uma cerimônia fomenta a unidade de um território como uma “rede singularmente densa de representações oníricas, de imagens e de símbolos” (1987, p.146), a qual não se dava passivamente, mas em um confronto entre forças. Portanto, consoante ele, “é em função do critério de unidade, ou mais precisamente de participação em uma mesma obra de unificação, que se acha construída a figuração legendária de nossos soberanos, de seus ministros e de nossos homens de Estado” (1987, p.160). Segundo Girardet, haveria uma dicotomia conflitiva de dois grupos opositores, fundamentada pelos mecanismos simbólicos que a balizam. Essa luta se fazia entre “as forças benéficas, por um lado, que são as de convergências, da reunião, da coesão, e as forças

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