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CAPÍTULO II METODOLOGIA DE COLETA DE DADOS: UM PERCURSO

2.1. Sob uma linguística aplicada pós-virada linguístico-discursiva

Os estudos e reflexões na área da Linguística Aplicada (LA) na contemporaneidade vêm passando por um processo de revisão de suas bases epistemológicas, uma vez que se reconhece que o aspecto transitório da realidade afeta às práticas discursivas de todos (FABRÍCIO, 2006; PENNYCOOK, 1998), pois somos heterogêneos e mutantes. Essa virada linguística, como atenta Moita Lopes (2015, p. 17), teve seu início quando o campo começou a pesquisar contextos de ensino-aprendizagem de língua materna, deixando um pouco de lado os contextos de línguas estrangeiras. Sendo assim, passou-se a tratar a língua materna também do ponto de vista dos letramentos.

Nesse sentido, é importante mencionar que essa trajetória, ainda segundo Moita Lopes (2015), conta com dois momentos marcantes de revisão de suas bases epistêmicas: aquele que diz respeito a essa preocupação com a língua materna, e o outro, na verdade o primeiro deles, que se configurava pela passagem de uma concepção de aplicação de Linguística à Linguística

Aplicada (LA), embora ainda haja na atualidade uma vertente que vivencie essa aplicação. Esse último momento tomou forma no trabalho de Widdowson diante da proposta de autonomia da LA em relação à Linguística:

[U]ma restrição da LA a contextos educacionais e a necessidade de uma teoria linguística para a LA que não seja dependente de uma teoria linguística. Ou, como ainda diz Widdowon (1979, p. 235): “a Linguística Aplicada só pode ser uma área autônoma de investigação na medida em que se livrar da hegemonia da linguística e negar as conotações de seu próprio nome” (MOITA LOPES, 2015, p.15).

No entanto, Widdowson não está propondo um descarte total da teoria linguística, como esse fragmento poderia insinuar. “Essa discussão vai, então, estabelecer um campo de investigação que começa a se formular como área mediadora” (MOITA LOPES, 2015, p. 16), acrescenta o autor, entendendo que há outros tipos de conhecimento que podem ser relevantes para a investigação dos processos de ensino de línguas que não sejam exclusivamente formulados pela Linguística, como, por exemplo, os advindos das Ciências Sociais28, questão que trataremos mais adiante.

Dessa forma, construo o presente trabalho em meio a um constante repensar sobre si da LA que lhe propicia e faz dela um campo que busca seus arcabouços teóricos de modo inter(trans)disciplinar de maneira a dar conta da complexidade de fatos que envolvem a linguagem. Portanto, essa lógica da interdisciplinaridade, ratificada pela questão da pesquisa se dá em uma variedade de contextos de usos da linguagem, possibilita então ao constructo de LA, no qual me situo, escapar de visões preestabelecidas.

Envolto nessa fluidez, que entendo ser uma característica da LA, meu trabalho intenta focalizar a linguagem como prática social e observá-la em uso, reconhecendo fatores contextuais que não permitem uma delimitação de domínio, ou seja, não limitar as discussões que envolvem a linguagem ao único domínio da Linguística. E, para dar conta da complexidade de fatores envolvidos com a linguagem, situo este trabalho num movimento contínuo e autorreflexivo de seus (des)caminhos e o construo, por sua vez, em convergência com o papel problematizador e intervencionista da LA em sua concepção mais atual.

Nessa esteira, atento ainda para o fato de que me proponho a desenvolver esta pesquisa com base numa LA que foge da tradicional visão de aplicação dos conceitos linguísticos somente, da ideia de que as teorias linguísticas forneceriam a solução para problemas relativos

à linguagem, tendo em vista que, segundo Moita Lopes, “uma teoria linguística pode fornecer uma descrição mais acurada de um aspecto linguístico do que outra, mas ser completamente ineficiente do ponto de vista do processo de ensinar/aprender línguas” (2006, p. 18). A partir disso, posso falar numa LA transdisciplinar, como um processo fluido entre as áreas do conhecimento com o objetivo de se problematizar ou criar inteligibilidade sobre os problemas com os quais se defronta ou constrói, “de modo que alternativas para tais contextos de usos da linguagem possam ser vislumbradas” (MOITA LOPES, 2006, p. 20).

A esse respeito, compartilho do entendimento de que no mundo contemporâneo, “não podemos mais depender de grandes argumentos e ideias transcendentais infalíveis” (BULTER, 2002 apud MOITA LOPES, 2006, p.21). Todavia, “precisamos justificá-los, discuti-los e considerá-los à luz de escolhas éticas para as práticas sociais que vivemos, ao pensar alternativas para o futuro (MOITA LOPES, 2006, p. 21). Por isso, trabalho com uma LA que se propõe a dialogar com o mundo contemporâneo, com construções desenvolvidas pelas pessoas, denominadas neste trabalho de práticas sociais, e que pensa em si enquanto se constrói como ciência, uma LA do século XXI. Quero dizer com isso, no que diz respeito às práticas sociais, que atores sociais produzem sentido em seus contextos de interação como resultado da relação entre suas ações individuais e o contexto em que estão inseridos. As práticas sociais, que resultam das ações coletivas dos atores sociais, não são baseadas, unicamente, no modelo da ação individual, mas resultam de toda uma lógica de comportamentos sociais, o que significa que os atores sociais trazem consigo suas histórias, culturas etc. (BOURDIEU, 2009 apud SOUZA et al., 2011).

Essa perspectiva da LA começa a se constituir no que se chama de “virada linguística e cultural”, “virada crítica” ou “virada icônica” (FABRÍCIO, 2006, p. 49), termos referidos ao fenômeno da revisão epistemológica pelo qual passou a LA. Seu cenário de construção começa, segundo Rampton (2006), no momento que as humanidades e as Ciências Sociais passaram a focalizar novos tópicos. Houve um crescente interesse em fluxos culturais, em fronteiras e margens, em incertezas e ambivalências; a discussão passou a contemplar a economia política da linguagem, a produção, circulação e distribuição desigual dos recursos simbólicos e culturais, a ideologia, a exclusão, a legitimação e a resistência. Isso por sua vez, resulta numa LA que compreende que: a) a linguagem deve ser vista como uma prática social e, consequentemente, como parte constituinte e constitutiva da sociedade e da cultura; b) nossas práticas discursivas não são neutras; e c) há na contemporaneidade uma multiplicidade de

sistemas semióticos em jogo no processo de construção de sentidos, segundo Fabrício (2006, 48).

Desse modo, a LA, ainda segundo Fabrício, pode ser entendida “como prática interrogadora [...]inseparável da enorme reorganização do pensamento e das práticas sociais correntes na contemporaneidade” (2006, p. 49). Nesse sentido, ela caminha em harmonia com o aspecto transitório da realidade, com a ideia do “sempre movente”, que não é nova e é bem exemplificada com a famosa proposição de que o homem não se pode banhar-se duas vezes no mesmo rio.

Por conseguinte, reconhecendo que é papel da LA “examinar a base ideológica do conhecimento que produzimos” (PENNICOOK, 1998, p. 24), empreendo este estudo, uma vez que, ao lidar com dois aspectos essencialmente políticos da vida, a linguagem e a educação, tal estudo intenta fazê-lo pedagógica e politicamente, ou seja, refletir e criticar (problematizar) ao mesmo tempo em que se posiciona como modificador (intervencionista) da realidade. Portanto, baseando-me ainda nas discussões de Pennycook (1998), vale a pena ratificar que construo minhas reflexões sob uma LA que tem uma visão de linguagem política e histórica, uma LA mais sensível às preocupações sociais, culturais e políticas e que, consequentemente, trabalhe com a possibilidade de realização de mudanças.

Sendo assim, entendo que essa LA que faço, tendo em vista que atentei anteriormente para o seu pensar sobre si a medida em que se constrói como ciência, coaduna-se com o viés de uma LA transgressiva, nos dizeres de Pennycook, “como uma abordagem mutável e dinâmica para questões da linguagem em contextos múltiplos” (2006, p. 67), e simultaneamente a uma LA que busca a desaprendizagem, como nos mostra Fabrício ao falar de uma “desaprendizagem de qualquer tipo de axiomática como um refinamento do processo de conhecer” (2006, p. 61 – grifo do autor).

Logo, ciente de que tenho desenvolvido este estudo dentro do viés de uma LA transgressiva, de desaprendizagem e, como Moita Lopes nomeia, indisciplinar, pois que “ela é indisciplinar tanto no sentido de que reconhece a necessidade de não se constituir como disciplina, mas como uma área mestiça e nômade” (2015, p. 19), discuto no item seguinte a não neutralidade desta pesquisa e a compreensão que tenho sobre os participantes dela como seres respondentes e não meros receptivos passivos diante de um emissor.

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