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2 A INTEGRAÇÃO IBERO-AMERICANA: CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS

4.4 SOBRE A CULTURA: ENCAMINHAMENTOS PARA AS CONSIDERAÇÕES

Com esse capítulo, tivemos como objetivo analisar como é construída discursivamente a cultura ibero-americana nos documentos que são nossos objetos de análise: a Carta Cultural Ibero-Americana e Documento de Desenvolvimento da Carta. Para tanto, foi necessário dissertar como a noção de cultura foi teoricamente mobilizada para começar a compreender, como os distintos desdobramentos que essa noção sofreu através dos tempos, podem influenciar no modo como a cultura é vista atualmente. O que, certamente, também influencia a perspectiva de cultura

ibero-americana. Em seguida, problematizamos outras noções, tais como a de pluriculturalidade, multiculturalidade e interculturalidade, para analisar se a proposta de integração ibero-americana realizaria uma abordagem baseada numa perspectiva multicultural e intercultural, como os documentos afirmam. Seguindo essa linha metodológica, tratamos essas questões por um viés discursivo, trazendo, portanto, um pouco do modo da AD pecheuxtiana de considerar a noção de cultura a partir de alguns autores como Esteves (2013), De Nardi (2007) e Rodríguez-Alcalá (2004).

Compreendemos, inicialmente, que a ambiguidade acompanha a noção de cultura, devido à banalização do seu uso ou pelo modo como foi concebida em distintas disciplinas. Com Eagleton (2005) e Bauman (2012), vimos que essa noção foi se desenvolvendo desde uma abordagem mais restritiva e hierárquica até ser entendida como um modo de vida e criação artística, sendo, portanto, considerada como elemento da subjetividade e como instrumento de ordem social.

Desse modo, pensando nas noções de pluriculturalidade, multiculturalidade e interculturalidade, entendemos que por serem derivadas, de certo modo, da noção de cultura, também carregam um pouco dessa ambiguidade. De tal maneira que esses três termos são usados às vezes de modo indistinto, erroneamente, já que cada uma tem uma significação específica. Assim que pluriculturalidade indica a coexistência de culturas sem uma interação efetiva; a multiculturalidade diz respeito a uma coexistência sem uma interação efetiva, mas com o reconhecimento, a partir de políticas públicas de garantia de direitos iguais; e interculturalidade indicando a coexistência com uma interação efetiva.

Com isso, vimos que, apesar da interculturalidade demonstrar um deslocamento significativo com relação às outras noções, ela pode ter seu campo de atuação diminuído por ser tomada, às vezes, como um meio de manutenção do sistema neoliberal, vigente na América Latina, por exemplo. Com relação a isso, Walsh (2007, 2008, 2010) define três tipos de interculturalidades, interessando-nos a interculturalidade crítica, por acreditar que os documentos constroem a cultura ibero- americana com essa perspectiva. Dessa forma, para esta perspectiva, a principal questão é combater a colonialidade, algo citado pelos documentos, porém de forma muito superficial, do mesmo modo que os dizeres das diferenças, que identificamos desde o segundo capítulo, como um assunto citado, mas não desenvolvido, não ficando claro o que, de fato, seriam essas diferenças.

Com relação a esse vazio que causa o fato das diferenças não serem mais exploradas, entendemos que encontramos o funcionamento de silêncios (ORLANDI 2007), que se comportam no discurso como não-ditos, mas que significam, interferindo nos efeitos de sentidos sobre como entender a cultura ibero-americana. Desse modo, as diferenças são silenciadas por serem indesejadas, visando evitar que certos sentidos que não interessam à proposta de integração ibero-americana venham significar.

Então, embora as línguas indígenas e a miscigenação sejam citadas como exemplos dessas diferenças, elas não são suficientemente desenvolvidas, pois, logo aparecem dizeres pela unidade e pela semelhança, dando-se destaque a isso, por exemplo, quando citam o português e o espanhol como o elemento linguístico que aproximaria toda a região ibero-americana. Com efeito, observamos que, na verdade, quando esses elementos são citados, ao invés de serem usados como uma causa que tem como consequências a heterogeneidade, acontece, o contrário, são usados para justificar as semelhanças, já que a maioria dos países têm marcas da miscigenação e línguas indígenas, por exemplo.

Por fim, entendemos que isso é resultado de um processo chamado “efeito cultura”, que tem como objetivo a homogeneização de uma cultura, quando esta é usada para justificar a construção de um Estado nacional, no caso dessa proposta, na criação do espaço cultural ibero-americano. Para tanto, ocorre uma mudança de sentido do cultural de popular para popularidade, uma vez que esse último responderia a uma exigência da globalização. Portanto, o “efeito cultura” atua na proposta de integração ibero-americana favorecendo a criação de processos de identificação, nos quais o sujeito deve se reconhecer. Desse modo, o que vemos nos documentos é a descrição de uma práxis cultural, através da qual podemos compreender a cultural ibero-americana definida por uma multiculturalidade e uma interculturalidade relativa, constituída por silêncios e mobilizadas por narrativas identitárias determinadas por esse efeito de homogeneização e popularização.

5 A INTEGRAÇÃO IBERO-AMERICANA

O caminho feito até aqui nos ajuda a entender como é construída discursivamente a ideia de uma integração ibero-americana. Vimos que, ao se criar um imaginário sobre um espaço e uma cultura comum, tem-se como objetivo despertar o sentido de pertença no outro, nos indivíduos que pertencem aos países da Ibero-América, a fim de que eles se reconheçam sujeitos ibero-americanos e ocupem como tais esse espaço cultural ibero-americano.

Nos capítulos anteriores, o que fizemos foi discutir os conceitos de espaço e cultura e observar como eles foram trabalhados no discurso pela integração ibero- americana. A partir do observado, podemos afirmar que, embora nesse discurso haja um processo constante de "definição" desses conceitos, de delimitação de seus sentidos, num trabalho de construção de uma trajetória fechada de interpretação que deveria levar à compreensão do espaço e da cultura como elementos de unidade ibero-americana, há, nesse dizer, deslizes que fazem surgir sentidos outros e memórias, até então apagadas. Isso se dá quando olhamos para além do texto, considerando, pois, o discurso, sendo possível encontrar sentidos outros não dados nos documentos, mas ali presentes.

Tal como no diz Pêcheux “não há ritual sem falhas” ([1975] 2009, p.277), e é através dessas falhas que vimos trabalhando até aqui. Falhas através das quais se faz possível apreender outros efeitos de sentidos, entender o objetivo real dessa proposta e suas determinações históricas. Ou seja, estamos em um movimento de discussões e análises olhando para um passado que se faz presente na atualidade dos documentos e de um futuro possível, o qual tem a chance de existir a partir do que é desenhado no presente, isto é, na temporalidade (GUIMÃRES, 2005) específica da enunciação da Carta Cultural Ibero-americana e do Documento de Desenvolvimento da Carta.

Continuando com essa perspectiva de análise, discutiremos, nesse capítulo, sobre a terceira noção basilar do nosso trabalho, que é o conceito de integração Ibero-americana. Tomamos essa noção por último por acreditar que as outras duas, ou, melhor dito, os efeitos de sentido que as outras duas produzem tem como objetivo culminar com a ideia de integração ibero-americana. Com isso, queremos dizer que tudo o que foi construído e dito sobre o espaço e a cultura tem como

objetivo reafirmar e legitimar a integração, como pudemos ver na SD19 “Todas estas razones apuntan a la importância de facilitar los intercambio de bienes y servicios [...]”.

Sendo assim, partiremos para a análise do termo integração nos documentos, uma vez que percebemos que essa designação é retomada várias vezes com articulações distintas, como também é aproximada com outros nomes, como cooperação e intercâmbio, sugerindo uma vinculação direta e significados semelhantes. Desse modo, nesse capítulo, analisaremos como se dá a construção discursiva da ideia de integração ibero-americana a partir dos efeitos de sentidos desses termos, considerando-os como designações, tal como Guimarães (2005) define esse fenômeno na semântica enunciativa dialogando com o discurso, sendo nosso objetivo também aproximar essa discussão da Análise do Discurso de linha pecheuxtiana.

Para tanto, nosso objetivo para esse capítulo é o de analisar os efeitos de sentidos das designações integração, cooperação e intercâmbio na construção da proposta de integração ibero-americana. Porém, antes de nos debruçarmos sobre essas designações especificamente, é necessário pensar a designação que identifica essa integração, a de ibero-americana. Dessa forma, faremos uma breve exposição histórica sobre a escolha dessa designação e sua relação com outras duas, a de América Latina e a de Hispano-América. Esse critério metodológico se justifica uma vez que entendemos que um nome recupera uma memória que reverbera nas designações, que serão o foco da análise. Assim, veremos como a escolha do nome é um ato político, construído por discursos que são naturalizados na materialidade da língua, portanto, sendo a designação um lugar privilegiado para analisar como isso se produz20.

20

Ao fazer essa afirmação, estamos nos aliando ao que diz Guimarães (2005), como também Zoppi-Fontana (1999), quando definem a designação como uma materialidade possível de rastrear como o político e o ideológico se inscrevem na língua.